Impressões do campo em Roraima
Apesar de os migrantes não terem direito ao voto no Brasil, fazem parte da sociedade brasileira e são foco de grupos da extrema direita
Dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM) mostram que 5,6 milhões de venezuelanos deixaram seu país desde 2015. Entre janeiro de 2017 e agosto de 2021, o Brasil acolheu 635.257 venezuelanos, depois do fluxo disparar 922% no biênio anterior.. O governo brasileiro adotou a estratégia de abrigar e interiorizar os venezuelanos a partir da criação da Operação Acolhida (OPA), em 2018. A ação é levada a cabo pelo Exército Brasileiro, a ONU (Acnur e OIM) e ONGs que atuam no acolhimento em Roraima e em estados de diferentes regiões que recebem os migrantes.
Esse contexto motivou a execução de pesquisa conjunta das Universidades Federais de Pernambuco (UFPE) e de Roraima (UFRR) para trabalhar com um conceito alongado de fronteira, discutir a aproximação entre gestão militar e economia humanitária e também para ouvir migrantes, refugiados em Roraima e os interiorizados pela OPA.
Durante os dez primeiros dias de setembro de 2022, pesquisadoras da UFPE e da UFRR estiveram em trabalho de campo em Boa Vista e Pacaraima. A pesquisa “Fronteiras da mobilidade no Brasil contemporâneo: comunicação e experiência migrante na securitização do acolhimento e da integração social no âmbito da Operação Acolhida”, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), possibilitou que as pesquisadoras estivessem em ocupações e abrigos e permitiu a descoberta de um paradoxo do posicionamento político dos venezuelanos contatados.
As entrevistas seguiram o mesmo roteiro: pedia-se um relato sobre as condições de vida na Venezuela antes da crise, sobre a decisão de migrar e sobre a própria experiência migratória, ou seja, a saída, o percurso, a chegada e o acolhimento. As repostas, por sua vez, se assemelhavam quanto à experiência de vida no país de origem, a deterioração das condições de vida e as visões sobre o contexto político, econômico e social na Venezuela. Reconhecem-se a importância e as mudanças sociais empreendidas durante a permanência do chavismo na Venezuela e apontam-se as degradações ocorridas nos últimos anos, após a morte de Chávez e a ascensão de Maduro ao governo, incluindo suas parcerias militares e milicianas, com grupos envolvidos com o narcotráfico e a mineração. Após questionamento sobre o futuro do cenário político no Brasil, ainda às vésperas do primeiro turno das eleições no país: “apoiamos Bolsonaro”.
Segundo os interlocutores, caso Lula, parecido com Chávez, mas apoiador de Maduro, saísse vencedor no pleito, ocorrerá no Brasil o mesmo que ocorre hoje na Venezuela. “Para onde iremos?”, se questionam. Para eles, permanecer “do jeito que está” parecia ser o mais seguro. Além disso, apontavam-se razões que circularam nas rádios, nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp: Lula expulsará os migrantes venezuelanos do Brasil, assim como encerrará as atividades da OPA na fronteira.
É importante salientar que os entrevistados impressionavam pela eloquência e pela complexidade das análises que faziam sobre o contexto político, econômico e social da Venezuela, sobre as condições e experiência com o abrigamento e o trabalho das ONGs e das organizações humanitárias. Vale salientar que, quando apontavam que o Brasil se tornará a Venezuela, mostravam também as reformas sociais que serão combatidas por meio de sanções econômicas e que vão deteriorar o cenário político e social no Brasil. Essas mesmas pessoas, no entanto, pareciam ser vítimas fáceis das mentiras sobre a expulsão peremptória de migrantes. Durante o diálogo, ao serem confrontados com as semelhanças entre o bolsonarismo – sintetizada pelo apoio à participação militar no governo e a defesa da relação com as milícias – com o governo Maduro, as respostas poderiam ser sintetizadas com o silêncio ou com a anuência reflexiva. Ao apontarmos que no governo Lula, a legislação migratória começou a ser modificada – até 2016, vigorava a Lei de Estrangeiro, que criminalizava as migrações –, que houve anistia em 2009, durante o segundo governo Lula, além da instituição do visto humanitário, novamente, as respostas eram o silêncio e as reflexões.
O quadro aponta para algumas questões sobre a importância de se trabalhar a cidadania atento ao funcionamento do campo comunicacional: migrantes estão igualmente imersos no ecossistema midiático, que o pesquisador Muniz Sodré conceitua como bios midiático, caracterizado pelas junções entre o mercado, a financeirização e a retração de políticas públicas conduzidas pelo Estado. Esse ecossistema institui a escala informacional a um novo patamar, uma vez que se soma à experiência vinculativa do comum contemporâneo uma esfera pública inflamada desde as últimas eleições majoritárias de 2018 por mentiras que circulam em redes oficiais e no submundo das fake news.
Importante também levar em conta qual é a experiência que guia as presenças migrantes no Brasil. Em sua maioria, os migrantes que chegam pela fronteira são documentados, abrigados no que se poderia chamar de pedagogia neoliberal: as soluções duradouras apresentadas pelas ONGs e pelo Acnur passam todas pela formatação de uma subjetividade empreendedora, logo, individualista e apagadora de complexidades sociais; já a interiorização, por meio de trabalhos precarizados notadamente para frigoríficos, nas chamadas vagas de trabalho sinalizadas, urge ser investigada. “A crise está dentro da cabeça de cada um” foi uma frase emblemática ouvida também em campo de migrantes que conseguem se manter por meio de seus negócios. Esses negócios passam pela experiência física de um ponto de venda de comida, pelo trabalho como influenciador digital ou como intermediário no envio de remessas em redes sociais.
Apesar de os migrantes não terem direito ao voto no Brasil, fazem parte da sociedade brasileira e são foco de grupos da extrema direita. Alimentam e são alimentados por sentidos que se apoiam em mentiras e em insuflar medo como meio de manutenção de apoios em grupos já vulneráveis.
As pesquisadoras saíram de campo com a impressão, a ser aprofundada pelas etapas seguintes do estudo, de que o paradoxo das posições políticas dos interlocutores venezuelanos está muito mais próximo de retratar um problema estrutural – que não passa apenas pelo esclarecimento acerca de mentiras – mas pela restituição de soluções duradouras de fato asseguradoras de direitos e promotoras da cidadania. O empreendedorismo, se for a solução perseguida, precisa ser reformatado pela atuação do Estado, por meio de políticas públicas econômicas e sociais, que performem mais atos de cooperação do que atos de histórias de exceção.
Sofia C. Zanforlin é professora da UFPE, coordenadora do Núcleo Migra-Migrações, Mobilidades e Gestão Contemporânea de Populações da UFPE, do GT Diaspora and Media do IAMCR e doutora pela Escola de Comunicação da UFRJ.