Indignação social, voto à direita
Enquanto na Escócia o referendo sobre a independência em relação ao Reino Unido (rejeitada no dia 18 de setembro) cristalizou a desaprovação à política de austeridade imposta por Londres, ao sul o mesmo sentimento de rejeição infla as velas do partido antieuropeu de direita de Nigel Farage, UKIPOwen Jones
Um espectro assombra a política britânica: o do Ukip (United Kingdom Independence Party, Partido da Independência do Reino Unido). Nas eleições europeias de maio de 2004, o partido, estridente e símbolo de um populismo de direita,1 infligiu uma humilhante derrota às três formações dominantes: não somente aos partidos Conservador e Liberal Democrata, no poder, mas também ao Partido Trabalhista, na oposição. É a primeira vez há um século que uma formação destrona trabalhistas e conservadores em uma votação nacional. Nigel Farage, o dirigente do Ukip – que cultiva cuidadosamente uma imagem de homem do povo de fala alta e amante de uma boa cerveja –, tinha previsto um “terremoto político”; sua profecia se realizou.2
Acoplamento político singular, o Ukip se distingue da Frente Nacional francesa e de outros partidos de extrema direita europeus. Fundado em 1993 por Alan Sked, um universitário que exibia convicções de centro-esquerda, o partido lutava essencialmente para que o Reino Unido saísse da União Europeia. Na época, a oposição ao projeto europeu não se restringia à direita radical.
Em 1973, a entrada do país na Comunidade Econômica Europeia (CEE) foi selada pelo governo conservador de Edward Heath. Então ministra, Margaret Thatcher fazia parte dos entusiastas; a esquerda do Partido Trabalhista desferia as mais virulentas críticas. Para esta última, a CEE fincava suas raízes na Guerra Fria e só tinha um objetivo: consagrar a vitória do liberalismo econômico e enterrar de uma vez por todas as aspirações dos socialistas. Assim, após sua vitória nas eleições em 1974, o Partido Trabalhista propôs um referendo: expoentes emblemáticos como Tony Benn apressaram-se em defender a saída, sem sucesso. Apesar de uma grande adesão popular à CEE, os opositores se tornaram majoritários entre os trabalhistas. Nas eleições de 1983, o partido viria a propor inclusive a saída do Reino Unido.
Depois veio Thatcher, e tudo mudou. Os anos 1980, marcados por sua chegada ao poder, se caracterizaram pela amputação do direito dos trabalhadores e pelo desmantelamento do Estado de bem-estar social, sobre um fundo de desindustrialização maciça. A esquerda e os sindicatos viram então em Bruxelas sua única esperança de colocar em prática uma legislação progressista suscetível de proteger as comunidades operárias devastadas. Para a Dama de Ferro e seus partidários, em contrapartida, o projeto europeu representou dali em diante uma ameaça crescente, que poderia frear seu impulso. Quando a Comissão Europeia propôs uma carta visando garantir a proteção dos sindicatos, a igualdade dos sexos e normas de saúde e seguridade, Thatcher denunciou o que seria uma “carta socialista”. “Não conseguimos fazer recuar as fronteiras do Estado para as vermos novamente impostas a nós em um âmbito europeu por uma potência supranacional que exerce seu domínio a partir de Bruxelas”, declarou em Bruges em 1988.
Desse modo, uma fissura apareceu no seio da direita britânica: de um lado, aqueles que sustentavam a participação na CEE; de outro, eurocéticos, que exigiam uma renegociação ampla, até mesmo uma saída pura e simples. Primeiro-ministro nos anos 1990, o conservador John Major foi confrontado com uma dissidência interna crescente levada a efeito pelos opositores do Tratado de Maastricht e das instituições europeias. Ele logo foi levado por essa onda de contestação, que contribuiu para a derrocada dos Tories (Conservadores) em 1997 diante de um Partido Trabalhista então decididamente pró-europeu.
Consciente do fato de que a obsessão dos conservadores pela Europa se voltara contra eles, fazendo-os parecer distantes das preocupações cotidianas, o conservador David Cameron mudou de estratégia. Quando assumiu o comando do partido, em 2005, ele prometeu um processo de modernização e abandonou a fixação antieuropeia em favor de um conservadorismo menos agressivo, mais compreensivo, em suma, “descontaminado”.3 Resultado: nas eleições de 2010, a popularidade do Partido Conservador dirigido por Cameron chegou às alturas. Uma ruptura…
Então, como diabos o Ukip – militante enlouquecido pela saída da União – pôde se içar ao nível de força política maior, desencadeando um arrepio de medo no seio da classe política? Segundo as pesquisas, a Europa preocupava muito pouco o britânico médio. Mais perturbador ainda: não se dava mais importância aos estudos que sugeriam que Bruxelas não figurava entre as três principais preocupações políticas de três quartos dos eleitores do Ukip.
O partido de Farage se vangloriava de representar o “Exército do Povo”, defender os pequenos diante dos poderosos. No entanto, ele tinha feito seus estudos em uma prestigiada escola particular (a Dulwich College) antes de se tornar corretor de commodities na City. Ficaríamos tentados a comparar o Ukip com o populismo e a demagogia pujadista, exceto pelo fato de que o partido britânico não se apoiava na pequena burguesia, a qual constituía o eleitorado principal do movimento francês dos anos 1950. Como o mostram os estudos regulares do instituto YouGov, o eleitorado do ex-trader travestido de homem do povo é o mais popular dos quatro grandes partidos políticos do país.
Sem um programa coerente à esquerda
Um fosso político separa o partido de seu eleitorado. O primeiro se diz francamente libertário e prega um neoliberalismo desenfreado. No passado, o Ukip flertou com a ideia de uma flat tax, um imposto único que colocaria a operadora de caixa de supermercado e o bilionário na mesma faixa de descontos. De volta à sua posição, o partido promete raspar a taxa marginal (que se aplica às mais altas rendas). O Ukip gostaria de suprimir 2 milhões de empregos no seio do setor público, baixar as contribuições sociais dos empregadores (ou seja, uma redução de impostos de 50 bilhões de euros oferecida ao patronato) e privatizar o sistema público de saúde.
Aspirações bem diferentes animam os eleitores do partido: cerca de oito em cada dez deles desejam a renacionalização da indústria energética, dominada por seis empresas impopulares cujos benefícios recordes não as impedem de fazer pesar regularmente a conta de seus clientes. Três em cada quatro apoiam a renacionalização de um sistema ferroviário fragmentado, oneroso e perigoso. Dois em cada três esperam uma alta da renda mínima e a abolição dos contratos conhecidos como “zero hora”, que não garantem aos trabalhadores nenhuma hora de trabalho, privando-os assim de seus direitos fundamentais. Por fim, metade se diz favorável ao controle dos aluguéis.4
O Ukip, porém, se beneficia de outros fatores. O primeiro deles é a questão migratória. A rejeição à imigração se tornou cada vez mais sensível ao longo dos últimos anos. Nas eleições europeias de 2009, cerca de 1 milhão de eleitores (num total de 15 milhões) votou a favor do British National Party (BNP), um partido neofascista (do qual Farage tem o cuidado de se distanciar, como o fez ao recusar aliar-se ao partido de Marine Le Pen no Parlamento europeu). Essa hostilidade não se limita à extrema direita. Segundo as pesquisas, três quartos dos britânicos desejam limitar a imigração, um assunto que retorna regularmente à boca das pessoas interrogadas sobre os principais temas da campanha de 2015.
O agravamento da insegurança econômica e social explica em grande parte esse fenômeno. No Reino Unido, o declínio do nível de vida precedeu largamente a queda do Lehman Brothers e a crise de 2007. A remuneração da metade dos assalariados menos bem pagos começou a estagnar a partir de 2004; e a dos 30% menos afortunados começou a cair. As empresas apresentaram, no entanto, lucros recordes à época. Essa evolução encontrou suas raízes na fraqueza dos sindicatos, em uma globalização que favorece a corrida ao menor valor salarial e em um salário mínimo muito frágil.5 Paralelamente, empregos estáveis de remuneração média desapareceram, criando uma sociedade em forma de ampulheta: no alto, profissões liberais bem remuneradas; embaixo, um setor de serviços cada vez mais importante que se caracteriza por empregos mal pagos e precários. Ainda por cima, o país foi atingido por uma crise de moradia. Os governos sucessivos não substituíram as habitações sociais que foram vendidas desde os anos 1980, deixando milhões de candidatos definhando em listas de espera.
Agora que a cólera popular não encontra resposta nem articulação política à esquerda, a imigração emerge como uma temática unificadora. Estigmatizados por tabloides e pelos líderes políticos, os imigrantes representam bodes expiatórios cômodos para explicar a queda dos salários, a precariedade do emprego e a crise de moradia.
E pouco importa se as regiões mais atingidas pelo desemprego dos jovens – Hartlepool, Middlesborough, Knowsley, Blackpool ou ainda Hull – exibam taxas de imigração particularmente baixas. Paradoxalmente, é nos lugares onde a imigração é mais fraca que a rejeição aos estrangeiros se manifesta de maneira mais violenta. Nas eleições europeias de 2014, o Ukip obteve uma magra pontuação em metrópoles como Londres e Liverpool, onde a interação diária entre imigrantes e “britânicos da gema” permitiu facilitar as coisas.
A verdade, no entanto, é que questão europeia e imigração se tornaram dois temas ligados de forma intrínseca. Para o Ukip, a abertura das fronteiras impostas por Bruxelas conduz a um afluxo de mão de obra barata, notadamente proveniente do Leste Europeu. “Vinte e seis milhões de pessoas na Europa procuram trabalho. Que empregos elas vão arrumar?”, ameaçava um cartaz do Ukip durante a campanha de 2014. Uma mão gigante apontava para o leitor, enquanto à direita uma mensagem exortava os britânicos a “retomar o controle do [seu] país”. No mesmo espírito, Farage multiplicou as provocações, alegando sobretudo que os londrinos temiam que famílias romenas se instalassem no mesmo patamar que eles.
O bom senso indicava que o Ukip não teria nenhuma chance de chegar ao poder. A votação uninominal de um turno entravava consideravelmente os pequenos partidos que procuravam obter um lugar na paisagem política dominante. O Reino Unido foi dividido em 650 circunscrições eleitorais, em cada uma das quais o candidato não precisa de uma maioria relativa para ser eleito. Assim, os simpatizantes de um partido como o Ukip são dispersos. Ele poderia reunir 20% dos votos nas eleições legislativas sem conseguir mais de duas ou três cadeiras no Parlamento.
Entretanto, na iminência das próximas eleições gerais (previstas para 2015), o pânico toma conta do campo conservador. Que parte de seu eleitorado o Ukip conseguirá beliscar, favorecendo de fato a candidatura do trabalhista Edward Miliband? Cerca de um quinto dos eleitores que votaram no Partido Conservador em 2010 juntou-se às fileiras do Ukip. Farage também teria seduzido um eleitor trabalhista em cada dez. Para muitos britânicos, o escândalo das notas de despesas (que, em 2009, revelou a utilização abusiva de fundos públicos para despesas pessoais por deputados dos dois lados) ilustra o distanciamento dos “profissionais da política”.
Desejosos de resistir à onda Ukip, certos líderes políticos tentaram diversas incursões em seu território. Em janeiro de 2013, Cameron prometeu fazer um referendo sobre a participação do Reino Unido na União Europeia se os conservadores ganhassem as próximas eleições. No ano passado, o governo enviou aos bairros populares caminhões lotados de cartazes convidando os imigrantes a… “ir para casa”. Desde então, trabalhistas e conservadores rivalizam em imaginação para aplicar novas medidas que assinalam sua determinação de lutar contra a imigração.
Essa disposição para copiar joga naturalmente a favor de Farage, capaz de manter o debate político num terreno familiar. Os “especialistas” prometiam que a bolha Ukip explodiria depois das eleições europeias; eles se enganaram. Ilustrando a insolente saúde política do partido, o deputado conservador Douglas Carswell surpreendeu ao se juntar às fileiras do partido de Farage em agosto de 2014, dando origem a uma eleição parcial longe de ser ganha por antecedência pelos conservadores.
Além disso, a ascensão do Ukip destaca as fraquezas da esquerda. Na Escócia, a atração do partido eurocético se mostrou mais limitada:6 a indignação social ligada à insegurança econômica e social se exprimiu pela emergência de um movimento favorável à independência do país, que levou 44,7% dos votos no referendo de 18 de setembro.
No entanto, na Inglaterra, Miliband não soube apresentar um programa coerente de ruptura com a austeridade nem inspirar as classes populares que constituem o pedestal de seu eleitorado tradicional. Os outros partidos de esquerda também não avançaram significativamente nem conseguiram fazer emergir líderes capazes de devolver a esperança aos desencantados. Enquanto os trabalhadores britânicos conheceram a mais grave degradação de seu nível de vida desde os anos 1870, as inquietudes econômicas e sociais das quais Farage fez seu fundo de comércio não estão perto de se dissipar. O Ukip poderia então continuar a prosperar, preconizando medidas que vão contribuir para guarnecer o portfólio dos britânicos mais bem afortunados.
Owen Jones é autor de Chavs: The Demonization of the Working Class [Chavs: a demonização da classe trabalhadora]. Londres: Verso, 2011.