Indonésia: eleições e religião
A Indonésia é hoje a terceira democracia do mundo. De população majoritamente muçulmana, o país é,no entanto, mais conhecido pelos atentados radicais do passado do que por seu presente. As organizações islâmicas comemoram a diminuição da ameaça jihadista, mas reclamam serem ignoradas pela mídia ocidentalWendy Kristianasen
“Os muçulmanos devem obedecer às leis do islã”. Estas poucas palavras poderiam ter tornado o então recém-criado Estado indonésio numa república islâmica. Inscrito no preâmbulo da Constituição, o artigo foi retirado na última hora, em 18 de agosto de 1945, e foi assim que a Indonésia tornou-se o Estado da Pancasila, dos “cinco princípios”: a crença num Deus único, o humanismo, a unidade nacional, a democracia e a justiça social. Um compromisso histórico entre o secularismo e o islã.
“A Indonésia é a sede de um islã moderado, sorridente”, garante Syafii Anwar, diretor do Centro Internacional em Prol do Islã e do Pluralismo (ICIP), em Jacarta. Ele acrescenta: “Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, temos observado uma radicalização e um crescimento do conservadorismo. Com os atentados de Bali (que causaram a morte de 200 pessoas) em 2002, nós passamos a ser alvo das preocupações da comunidade internacional. É por isso que o meu trabalho consiste em explicar que o islã e a democracia são compatíveis”.
A transição democrática do país aconteceu em 1998, no término de dois extensos períodos autocráticos. O primeiro, sob o jugo do fundador e presidente Sukarno (1945-1967), que tivera de se entender com três forças de peso: o nacionalismo, o islã e o comunismo. O segundo, sob a ditadura do general Suharto (1967-1998), que fora imposto no poder em nome da luta contra a ameaça comunista. Até hoje, o país permanece marcado pelos traumas causados por esses dois regimes, que mataram pelo menos 500 mil pessoas1.
Hoje, a Indonésia é a terceira maior democracia do mundo. “Fato que os observadores ocidentais tendem a ocultar”, lamenta Anies Baswedan, reitor da Universidade Paramadina de Jacarta. “Eles gostam de nos definir como o maior país muçulmano. O que nós dizemos é: ‘Somos uma democracia’, ponto final. Nós temos uma imprensa livre, uma vida política intensa, uma sociedade civil muito dinâmica. Existe corrupção, é verdade. Sempre teve. A nossa economia resiste à crise mundial melhor do que a de vários dos nossos vizinhos, e o país está mais próspero que há dez anos.” Ele também admite: “Claro, nós temos os nossos islâmicos e nossos fundamentalistas, mas eles foram, em parte, absorvidos pelo processo político e democrático”.
O país tem mais de 240 milhões de habitantes, dos quais 200 milhões são muçulmanos; em sua maioria, sunitas2. Dois terços da população vivem na ilha de Java, no coração da Indonésia. Duas vertentes de pensamento, uma tradicionalista e a outra modernista, reúnem a maioria dos crentes e são representadas por duas organizações de massa que foram engendradas em Java, muito antes da partida dos holandeses e da independência do país.
Fundada em 1926, a vertente chamada de tradicionalista, por ser impregnada por culturas e crenças anteriores, é principalmente representada pela Nahdlatul Ulama (NU). Ela conta com 40 milhões de fiéis; a maioria vive nas zonas rurais. “A NU tem mais de um porta-voz”, explica o escritor Endy Bayuni, um antigo diretor da publicação Jakarta Post. “O movimento tem vários dirigentes, tão carismáticos quanto independentes, que não raro contradizem-se entre si, mesmo quando o presidente já se manifestou a respeito de um assunto.”
Estado secular
A segunda organização, qualificada de modernista, conta com 30 milhões de membros. Fundada em 1912, a Muhammadiyah tem maiores afinidades com as classes urbanas educadas. Nela, participam fundadores de escolas, hospitais e universidades. “Como os salafistas, nós nos baseamos de preferência no Alcorão”, explica o secretário-geral, Abdul Muti. “Mesmo se as nossas conclusões divergem. Nós somos puritanos, porém tolerantes. A nossa referência é Muhammad Abduh, não os irmãos muçulmanos nem Maududi3. Nós cremos profundamente nos diálogos entre as diferentes confissões. Nisso, somos mais próximos da NU que dos salafistas. A Indonésia não é um Estado islâmico, é um Estado secular. E nós não estamos no Oriente Médio.”
Desde o início, tanto a NU como a Muhammadiyah exerceu um papel importante no desenvolvimento do país. No decorrer do tempo, elas optaram por se concentrar nas questões sociais e religiosas e reduzir seu papel político4. As duas possuem inúmeras ramificações (organizações estudantis, associações), dentre as quais algumas, como a Rede do Islã Liberal (Liberal Islam Network, JIL), preconizam ideias mais liberais. Tendência essa que não deixa de preocupar os veteranos, que se mostram contrariados por ver ideias “permissivas” serem disseminadas em nome do islã. Numa fatwa emitida em 2005, o Majlis Ulama Indonesian (MUI), Conselho do Culto Indonésio, os condenou.
A diferenciação acentuou-se com a guinada islâmica operada pela Indonésia no decorrer dos anos 1990, quando os muçulmanos liberais quiseram dar continuidade à sua participação no debate público acerca de reformas nacionais de inspiração religiosa. A islamização havia começado durante os anos 1980 sob o regime Suharto. A tendência acelerou-se por efeito dos financiamentos vindos do Oriente Médio, que permitiram a construção de muitas mesquitas. Nos anos 1990, o país viu o surgimento e o desenvolvimento de uma classe média muçulmana, grande parte da qual recebeu sua educação nos pesantrens. Essa mutação tornou-se evidente com o aparecimento do lenço de pescoço (jilbab), com o qual muitas mulheres passaram a cobrir a cabeça. Mas não se veem mais nas ruas nem o niqab, nem a burca, nem vestidos pretos, enquanto as roupas brancas, que sinalizam uma piedade extrema, são vistas muito raramente. A maior parte das organizações muçulmanas preconiza o uso do lenço e rejeita o véu integral. Nesse sentido, Abdul Muti considera que “ver o rosto das mulheres é importante para a comunicação em sociedade”. Nos grandes centros urbanos, e em particular nos bairros populares, muitas mulheres seguem sem cobrir a cabeça.
Contudo, Eric Hiariej recorda-se: “Quando eu era estudante, no começo dos anos 1990, apenas uma moça em cada 60 trajava o jilbab. Agora, é um efeito de moda. No campus, os jovens gostam de fazer como todo mundo; eles estão abertos para as novas tendências; entre as quais, aquela dos movimentos radicais”. Fundado em 1998, o Hizbut Tahrir Indonesia (HTI) é um desses grupos prosélitos. Muito organizada, a rede tenta convencer os jovens da urgência de se retornar ao califado. O seu porta-voz, Ismail Yusanto, afirma condenar a violência: “A Indonésia não é uma terra de jihad”. Mas ele acrescenta prontamente: “No Iraque, no Afeganistão ou na Palestina, é diferente: nesses países, a violência não é terrorismo”. Um discurso que tem lá suas consequências em relação a certos jovens.
Acusada pela mídia de alimentar o fundamentalismo, a maior parte das escolas corânicas pertence à NU ou à Muhammadiyah. Embora nessas escolas o ensino seja misto, as meninas ocupam um lado da classe, e os meninos, o outro. Os pais pagam para que os seus filhos tenham, a partir do primeiro ano do ensino fundamental e ao longo de toda a sua escolaridade, uma dupla formação, acadêmica e religiosa. Depois disso, os diplomados do ensino médio podem seguir rumo às universidades muçulmanas públicas ou privadas.
Também existem – mas em número reduzido – escolas radicais, entre as quais a Al-Mukmin, em Ngruki, na região de Solo. Foi ali que estudaram o irrequieto imame Abu Bakar Bachir, chefe do Jamaat-i-Islami (partido prosélito), e seus companheiros jihadistas. Ele agora está preso. Expressando-se em seu próprio nome, o diretor do estabelecimento, Ustad Wahyuddin, não esconde seus objetivos: “Todo muçulmano aspira a um Estado islâmico. Nós queremos lutar pela charia, não podemos ficar esperando de braços cruzados. Este pesantren é o meio para propagar os novos valores da lei corânica. Se um ou dois dos nossos estudantes se tornaram radicais, foi porque eles viajaram ao Afeganistão ou ao Paquistão, onde se envolveram com a política”.
Acusado de ter financiado um campo terrorista em Aceh, Bachir foi preso em 9 de agosto de 2010, pela terceira vez desde os atentados de Bali. Nessa mesma operação, as autoridades descobriram outra rede, dirigida por Dulmatin, um dos terroristas mais procurados da região e o principal suspeito no caso dos atentados de Bali. Ele foi morto pela polícia, assim como sete dos seus companheiros. Em 2009, ela havia atirado também em Noordin Top, um súdito malásio considerado como o cérebro dos atentados perpetrados em Jacarta, em 2003, 2004 e 2009, e em Bali, em 2005.
Fortalecido pelos sucessos obtidos, o governo já está próximo de concluir que as atividades terroristas entraram em declínio. O analista Sydney Jones, do International Crisis Group, comenta que “cisões sucessivas enfraqueceram os grupos militantes compostos por elementos locais – entre os quais, os membros da frente de defesa do islã (FPI) –, ideólogos e terroristas organizados em rede entre a Indonésia, a Malásia e as Filipinas. Na Indonésia, o emprego da violência apresenta o risco de fazer Bachir perder a simpatia que o seu movimento contra a democracia, o Jama’h Ansharut Tauhid (JAT), inspirava parte da população5”.
Ameaça
Embora a ameaça jihadista não pareça estar totalmente afastada, a diminuição da sua intensidade foi recebida como um alívio pela maioria das organizações muçulmanas. Mas, a exemplo de um bom número de membros da Muhammadiyah, Abdul Muti diz-se preocupado: “Alguns dos culpados visitavam-nos em nossa casa; além disso, os radicais sempre podem se infiltrar, pois nós estamos abertos e, portanto, vulneráveis”.
De fato, os grupos extremistas, entre os quais o FPI e o Laskar Jihad, seguem perpetrando atos de violência contra as minorias religiosas. Desde o começo do ano, foram registrados 28 ataques no Oeste de Java e na região de Jacarta. O mais recente, em 12 de setembro, quando cristãos foram alvejados em Bekasi. A seita dos Ahmadi, que alguns se recusam a considerar como muçulmana, foi até mesmo o alvo de uma fatwa pronunciada pelo Conselho do Culto Muçulmano em 9 de junho de 2008.
Paradoxalmente, foi o processo de democratização conduzido após a queda do regime de Suharto, em 1998, que abriu o caminho para fortes reivindicações questionando o papel do islã na vida política e econômica do país. Foi então que se destacaram duas novas entidades políticas: o Partido do Crescente e da Estrela (PBB) e o Partido para a Prosperidade e a Justiça (PKS). Diante do fracasso de diversas tentativas para introduzir a lei corânica no nível nacional, os partidos fundamentalistas precipitaram-se na brecha aberta em 2000 pela promulgação das leis de descentralização. A partir de então, eles redobraram seus esforços no quadro das coletividades territoriais com o objetivo de fazer aplicar a charia na escala municipal ou distrital. Valendo-se das regulamentações locais, eles conseguiram a aprovação de um código jurídico corânico (perda charia) em 50 localidades das 500 que o país comporta6.
Aceh, que após 30 anos de luta separatista adquiriu um estatuto particular de autonomia por meio de um compromisso assinado em 15 de agosto de 2005, a instaurou e agora possui o seu próprio tribunal islâmico. Embora ele seja pouco representativo em relação ao restante do país, é improvável que outras províncias acedam a uma autonomia desse tipo. Este caso provocou debates intensos pelo país afora. Para Ahmad Suaedy, a instauração da charia em Aceh é artificial e equivale a transpor leis do mundo árabe medieval para o século XXI sem consentir ao esforço de reflexão (ijtihad) necessário. Contudo, o vice-presidente da NU, professor Masykuri Abdillah, assegura o contrário, argumentando que a charia foi instaurada porque um processo democrático assim decidiu.
Para muitos indonésios, a charia permanece um conceito vago. Quando questões de casamento, impostos ou herança são julgadas num tribunal, parece difícil discutir uma decisão de justiça supostamente ditada por Deus. No mais, os moderados não querem deixar a esses tribunais regionais o direito de pronunciar sanções penais.
A tendência dominante no conjunto do país consiste em deter a introdução da charia em nível local e em tentar abrandá-la nos locais onde ela existe. O número de perda charia parece ter alcançado um pico em 2003. Ele havia diminuído consideravelmente em 2007 e permanece estagnado desde as eleições legislativas de abril de 20097.
Eleições
Este último pleito, que foi seguido em 8 de julho pelas eleições no sufrágio universal do Presidente da República8– a segunda desde a independência –, passou despercebido da imprensa ocidental. Contudo, é interessante constatar que os resultados obtidos pelo conjunto dos partidos religiosos refletiram uma queda, passando de 40%, em 2004 e 1999, para 25%. Os três principais partidos seculares obtiveram a grande maioria dos votos. Apenas o PKS, criado a partir do modelo do Partido para a Justiça e o Desenvolvimento (AKP) no poder na Turquia, conquistou um resultado positivo, com 7,88% dos votos, ainda que atraindo o eleitorado dos outros partidos religiosos. Por ocasião do seu congresso, em junho, esse partido abandonou seu posicionamento islâmico em proveito de uma imagem de pluralismo e de abertura, prometendo se abrir em breve para cidadãos não muçulmanos. A militante feminista Kamala Chandrakirana diz-se otimista: “Após uma década de turbulências, o terrorismo, o tsunami, a crise econômica, a gripe aviária, talvez estejamos, enfim, vendo a luz no fim do túnel. Nós temos um país tão dinâmico, uma sociedade civil tão abundante e diversificada! É possível que os defensores da Pancasila tornem-se capazes de propor uma alternativa à islamização, própria para inflamar a imaginação dos jovens”.
Wendy Kristianansen é redatora-chefe da Edição Inglesa do Le Monde Diplomatique e autora de Voyages au couer de la planéte islam, éditions du Cygne, Paris, 2011.