Mídias sociais e violência policial: influenciadores “policialescos” disputam as eleições em todas as regiões do país
Pesquisa realizada pelo Intervozes identificou 25 candidaturas de influenciadores, a maioria militares
Das ruas às redes. Das redes às urnas. Nas eleições municipais de 2024, ao menos 16 estados brasileiros contarão com “influenciadores policialescos” disputando a prefeitura ou um cargo de vereador. Levantamento realizado pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social mapeou 25 candidaturas de influencers com projeção nas redes sociais e que abordam o universo policial ou da segurança pública. Esse é o segundo resultado da pesquisa divulgado na série Eleições 2024: mídia e violência nas disputas municipais, que já publicou dados sobre candidatos ligados a programas policialescos de rádio e TV.
O mapeamento levou em consideração as informações divulgadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), além de consultas às redes sociais dos candidatos. Cerca de 68% deles informaram ser policiais ou agentes de segurança. Em parte, esses candidatos identificados utilizam seus canais no YouTube ou páginas pessoais em outras redes para divulgar sua atuação e o cotidiano da corporação. Há também os que reproduzem conteúdos de violência explícita similar aos exibidos pelos programas policialescos da televisão. Apresentadores de podcast e perfis com visibilidade e que se posicionam sobre ocorrências policiais ou políticas de segurança também foram mapeados. A pesquisa buscou candidaturas com essas características em ao menos três municípios por estado.
Dentre as candidaturas identificadas, apenas uma é feminina, de Amanda CSI, que concorre à vice-prefeitura de João Pessoa (PB). Todos os candidatos que declararam ao TSE identidade de gênero e orientação sexual afirmaram ser cisgêneros e heterossexuais. Em relação à raça, 68% se declararam brancos e 24% pardos, além de um preto e um indígena. Dos 25 candidatos, dez são do Partido Liberal (PL), quatro do Progressistas (PP), três do Republicanos e dois do Partido Social Democrático (PSD). As legendas MDB, Podemos, PRD, PSDB, Solidariedade e União Brasil tiveram um registro cada.
São Paulo é o estado com mais influenciadores policialescos identificados, com quatro registros em Campinas, Guarulhos e na capital paulista. Cuiabá (MT), João Pessoa (PB), Goiânia (GO), Maceió (AL), Manaus (AM), Natal (RN), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e Vitória (ES) também são capitais com candidaturas identificadas pela pesquisa. Além dessas cidades, constam registros de candidatos influenciadores em Ananindeua (PA), Campina Grande (PB), Caruaru (PE), Feira de Santana (BA), Ji-Paraná (RO), Joinville (SC), Maringá (PR), Serra (ES) e Vila Velha (ES).
Uso político das instituições públicas de segurança
De acordo com levantamento divulgado pelo jornal Folha de S.Paulo, 6.649 candidatos nas eleições de 2024 declararam ser policiais, militares ou ligados a forças de segurança. Apesar de ser uma quantidade 23% menor que o registrado nas eleições de 2020, o número ainda é considerado elevado. Em 2018, eram apenas 961 candidatos com esse perfil. Aproximadamente 18% das atuais candidaturas são ligadas ao PL.
A participação de agentes de segurança pública nas eleições não é novidade, no entanto, um fenômeno crescente é a presença de influenciadores policialescos que apostam na conversão de seguidores em eleitores. Em disputas eleitorais anteriores, alguns nomes se destacaram, a exemplo do Delegado Da Cunha, que alcançou a Câmara Federal após ser eleito pelo estado de São Paulo. O delegado, youtuber e deputado federal possui 1,9 milhão de seguidores no Instagram e um canal no YouTube com 6,62 milhões de inscritos. Foi por lá que ele ganhou projeção, compartilhando vídeos de operações policiais de que participava.
Réu por violência doméstica, Delegado Da Cunha já foi indiciado por utilizar a estrutura da Polícia Civil para gravar vídeos para o seu canal. Em busca de projeção, o youtuber já admitiu ter forjado operações para encenar flagrantes supostamente realizados por ele. Seu caso é um exemplo do uso de instituições públicas de segurança para fins privados e eleitoreiros. O atual deputado não disputará o pleito municipal, mas, em suas redes, tem declarado apoio a outros candidatos.
Em alguns estados, as instituições vêm normatizando a utilização das mídias sociais por policiais, para evitar o uso da imagem e da estrutura da corporação sem consentimento. É o caso do Acre, Alagoas, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e o Distrito Federal. Em Alagoas, chegou-se a aprovar a lei 9.028/2023 que “dispõe sobre a vedação ao uso de imagens de investigação e operações policiais para fins de divulgação em perfis pessoais das redes sociais por parte de agentes da segurança pública do estado”.
Ainda assim, são recorrentes os casos de influenciadores que ultrapassam os limites do serviço público. Um exemplo vem de Salvador (BA), onde o policial Alexandre Tchaca já chegou a ser preso pela Polícia Militar (PM) em 2022 por associar a corporação às suas redes sociais, em que promovia candidaturas de aliados. O militar, que foi réu pela participação na Chacina do Cabula, na qual 12 pessoas foram executadas e outras seis baleadas aleatoriamente, apresenta um podcast policialesco e concorre ao cargo de vereador pelo PSDB.
Outro influenciador que se tornou nacionalmente conhecido em eleições anteriores é Gabriel Monteiro, terceiro vereador mais votado do Rio de Janeiro em 2020. No mesmo ano, o ex-policial foi expulso da PM. Ele possui um canal no YouTube com 6,6 milhões de inscritos. Com diversos vídeos de operações militares, o youtuber chegava a faturar até R$ 300 mil por mês com postagens na plataforma, de acordo com depoimento de um ex-funcionário. Segundo a denúncia, o então vereador utilizava a estrutura da Câmara Municipal, incluindo o pagamento de assessores parlamentares, para a produção de seus vídeos, que eram monetizados pela plataforma.
Gabriel Monteiro foi cassado em 2020 por quebra de decoro, após acusação de estupro, assédio sexual e moral. Preso desde 2022, o youtuber não disputou as eleições daquele ano, mas aproveitou sua influência nas redes para ajudar na eleição de seu pai e sua irmã aos cargos de deputado federal e estadual, respectivamente. Já em 2024, o Supremo Tribunal Federal manteve sua prisão por estupro. Novamente fora das eleições, Gabriel será “representado” na disputa à Câmara Municipal do Rio de Janeiro por seu advogado Sandro Figueiredo, que se apresenta na urna como Dr. Sandro Família Monteiro. O candidato também já foi policial militar, mas foi expulso da corporação em 2006, sob acusação de cobrar dos moradores uma “taxa de segurança”.
Discurso que viraliza
Seguindo a lógica das plataformas digitais, muitos dos candidatos apelam para polêmicas e violências em busca de repercussão e seguidores (ou futuros eleitores). Em Cuiabá (MT), o candidato a vereador Rafael Ranalli (PL), publica em suas redes entrevistas e vídeos em que defende mais assassinatos cometidos pela polícia. Com perfil similar, o deputado estadual Capitão Assumção (PL), candidato à prefeitura de Vitória (ES), também já “viralizou” ao oferecer dinheiro para quem assassinasse um homem suspeito de um crime em Cariacica, durante discurso no plenário da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, quando estava fardado com trajes militares.
A incitação à violência e ao cometimento de crimes por agentes de segurança é presente em diversos canais. Além disso, muitos candidatos apelam para publicações sensacionalistas em busca de alcance e engajamento nas redes – e consequente promoção de seus perfis. É o caso do Coronel Urzêda (PL), candidato a vereador de Goiânia (GO), que costuma compartilhar em suas redes vídeos de pessoas reagindo a assaltos ou matando suspeitos. Já em Ji-Paraná (RO), o candidato a vereador Jornalista Jean Lemos (PRD) apela, em suas redes, para cenas de acidentes e de violência explícita, incluindo um vídeo recente em que um indivíduo tenta o suicídio ao atear fogo em si mesmo.
O oportunismo em torno da segurança pública para alcançar promoção pessoal também é recorrente nas candidaturas pesquisadas. Um exemplo curioso vem de Caruaru (PE), em que o candidato à vereança Delegado Lessa (Republicanos) reproduz em suas redes uma estética similar à dos programas policialescos da televisão. Ele faz uma dobradinha com Adielson Galvão, que se define como repórter policial e produz matérias para o seu canal Adielson Galvão no Face. Em frequentes “reportagens” da página, Lessa é entrevistado, simulando um ar “jornalístico”, apesar da nítida promoção do candidato pelo “repórter”. Em uma dessas “matérias”, por exemplo, ao comentar sobre a segurança pública no município, Lessa anuncia durante a entrevista a sua pré-candidatura. “A reportagem é sobre violência, ele aproveitou para falar de política”, foi uma das críticas que ele recebeu nos comentários.
No Rio Grande do Sul, durante as enchentes que ocorreram no primeiro semestre de 2024 e que vitimaram 183 pessoas, deixando mais de 500 mil desalojadas, muitos indivíduos foram acusados de utilizar suas redes sociais para autopromoção. De ex-BBB a empresários, de políticos a policiais, com boas intenções ou por puro oportunismo, fato é que as redes viraram palco para a cobertura da tragédia e a divulgação de benfeitorias. O brigadiano Soldado Arruda (PL), por exemplo, alcançou milhares de visualizações com publicações sobre as enchentes e operações de resgate. Há poucos meses da campanha, ele chegou a publicar um vídeo em que enaltece a si mesmo por tomar “uma decisão tão arriscada” e por, “mesmo sem condições financeiras e sem saber nadar”, arrumar um “barco modesto” e, com as “mãos que tremiam ao segurar um leme” e com a “mistura de medo e determinação”, não ignorar “os gritos desesperados por socorro” e se arriscar para “resgatá-las”. Agora, ele é candidato a vereador em Porto Alegre.
Das redes às ruas, das ruas às urnas
Todas as candidaturas pesquisadas possuem um alinhamento ideológico que enaltece a atuação policial. Além de utilizarem seus canais para construírem uma imagem de si mesmos como um “oficial linha dura”, “policial que não tem medo de ninguém”, “guerreiro que está combatendo a bandidagem”, “delegado revoltado com a impunidade”, os influenciadores também alimentam um discurso que oferece soluções fáceis para o problema de segurança pública, como mais violência, mais encarceramento, mais mortes. Prevalece a narrativa simplista do “bem contra o mal”, em que, obviamente, o influenciador é sempre o bonzinho e até mesmo o cometimento de crimes por agentes de segurança torna-se justificável.
Um levantamento divulgado pelo Datafolha, em dezembro de 2023, aponta que o conjunto “Segurança Pública”, “Violência” e “Polícia” são a segunda maior preocupação da população brasileira – atrás de “Saúde” e à frente de “Educação”. Segundo o jornalista Gabriel Veras, que participou da pesquisa realizada pelo Intervozes, “o Amazonas é um dos estados brasileiros com mais projetos de reconhecimento facial e promessas de ampliar e armar a guarda municipal se tornaram unanimidade entre os prefeituráveis, o que pode ser uma evidência de como a segurança pública, com o apoio dos policialescos, tem dominado a eleição”. Veras também afirma que “viver em Manaus é ser bombardeado por esse tipo de conteúdo policialesco, seja na rádio, na televisão ou nas redes sociais”.
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, a letalidade policial ceifou a vida de 6.393 pessoas, 82% negras, sendo 71,7% crianças, adolescentes ou jovens. De acordo com o relatório “Missão letalidade policial e impacto nas infâncias negras na Bahia e no Rio de Janeiro”, lançado pela Plataforma Dhesca Brasil em 2024, esse cenário de violência também tem sido aproveitado como palanque eleitoral por diversos influenciadores digitais, muitos deles produzindo conteúdos enquanto estão em serviço. O documento sugere a necessidade de “políticas públicas efetivas de combate às violações e abusos cometidos por agentes de segurança pública influenciadores digitais e toda a rede que os mantém e lucra com eles, incluindo as plataformas digitais”.
O Relatório Dhesca também apresenta recomendações, como a criação de um grupo de trabalho interministerial para promover “estratégias de enfrentamento às ilegalidades e práticas racistas cometidas por agentes públicos de segurança que produzem conteúdos como influenciadores nas redes sociais”. Outra proposta, direcionada às plataformas digitais, é o banimento do “impulsionamento, patrocínio e monetização de conteúdos danosos (…) que violem os direitos humanos e contenham ilegalidades”, além da criação de filtros para conteúdos que exponham crianças e adolescentes.
Relatora da Dhesca e coordenadora executiva do Intervozes, Iara Moura cita a falta de transparência na moderação de conteúdos pelas plataformas “que tem na violação de direitos, na promoção de discurso de ódio e desinformação uma base dos seus modelos de negócio, lucrando com esse tipo de conteúdo”. A jornalista também chama a atenção para a responsabilidade que as plataformas têm durante o processo eleitoral, por promoverem perfis que disseminam discurso de ódio, violência política e violação de direitos. “Elas não têm tomado nenhuma medida concreta de combate a esse fenômeno, pelo contrário, a gente observa vários candidatos com esse perfil e figuras públicas construindo carreira política por conta da difusão desse tipo de conteúdo”, complementa Moura.
Os dados foram coletados a partir de um trabalho coletivo realizado por membros do Intervozes: Clarissa V. M. de Moura, Franciani Bernardes, Gabriel Veras, Iago Vernek Fernandes, Mabel Dias, Nataly de Queiroz Lima, Paulo Victor Melo, Raquel Baster e Rodolfo Viana, sob coordenação de Alex Pegna Hercog e apoio de Olívia Bandeira. O levantamento faz parte do projeto Mídia Sem Violações de Direitos, uma iniciativa permanente do Intervozes.