Integração popular continental: a hora é agora!
Em 2007, os governos integrantes da Alba sugeriram a criação de um Conselho de Movimentos Sociais como parte da estrutura da iniciativa. A partir de então, a Articulação Continental dos Movimentos Sociais pela Alba trabalha por uma integração solidária e anti-imperialista entre os povos do continente americanoJoaquin Piñero
Ao longo de todo o processo integrador construído pelos movimentos sociais e populares do continente americano, que a nosso ver se iniciou após o esfacelamento das experiências do socialismo real no fim do século passado, seguramente este é um período em que se abre a possibilidade de sairmos de uma posição de resistência e avançar rumo a posições mais propositivas. No entanto, também requer maior grau de atenção sobre os passos que devemos dar para não ocorrer um movimento de retrocesso.
Estamos atravessando um novo ciclo da luta de classes em nossa região e, se conseguirmos sair por um momento da perspectiva das lutas de quem está na trincheira diariamente, enxergaremos um momento histórico importante e complexo, determinado por uma nova correlação de força entre o capital, os governos e as forças populares.
Em nossa avaliação, comungada por várias organizações sociais reunidas na Articulação Continental dos Movimentos Sociais, estamos passando por um período de transição e disputas, no qual se percebe uma intensa movimentação de diversos matizes políticos que buscam a recomposição e a acumulação de forças para a manutenção do poder, visando hegemonizar o processo de integração continental a seu modo e interesse.
Observamos um cenário em disputa permanente entre três projetos, que se agudiza diante da crise do sistema capitalista. O primeiro é o projeto imperialista, de recolonização de nosso continente, encabeçado pelos Estados Unidos e corporações transnacionais e caracterizado por uma nova ofensiva econômica, política e militar e pela aliança com governos de direita, como os do México, Chile e Colômbia. O objetivo é que a América Latina seja um território de cujos recursos naturais o capital possa se apoderar. Esse projeto se articula com setores da burguesia nacional de cada país, por meio do apoio a candidatos de oposição aos governos progressistas, tentativas de golpes – como na Venezuela, Bolívia e Equador –, e golpes efetivados – como os executados em Honduras e, mais recentemente, no Paraguai.
O segundo projeto defende a ideia de uma integração latino-americana, mas que atenda aos interesses das burguesias locais. Gira em torno dos países que compõem o Mercosul, liderados pelo Brasil, e é caracterizado por uma política desenvolvimentista que prioriza as relações Sul-Sul – sem se subordinar totalmente às políticas imperialistas, mas também sem conseguir avançar rumo a uma política independente. Esse projeto dialoga com os países-membros da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba), por meio da construção do Mercosul, da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e, mais recentemente, com a formação da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).
O terceiro projeto é justamente o da Alba, que representa uma alternativa ao imperialismo ao buscar uma integração de novo tipo. Surgiu precisamente em contraposição à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), um projeto de integração imperialista. A nova etapa de colaboração solidária nos âmbitos sociais, econômicos e políticos entre os governos de Venezuela e Cuba se ampliou e passou a incluir outras nações, como Bolívia, Nicarágua, Equador, Honduras, Antígua e Barbuda e São Vicente e Granadinas.
A Alba propõe outras formas de intercâmbio além do mercantil e do monetário. Estabelece como centrais a solidariedade, a cooperação, a complementaridade e o respeito à soberania e à autodeterminação dos povos. Pelos princípios expressos em documentos firmados entre os governos integrantes, a iniciativa coloca-se em oposição às políticas imperialistas na região. É central também a concepção de que avançar na organização social e construir alianças estratégicas será decisivo para obter vitórias. Assim, a participação dos movimentos sociais e organizações políticas tem papel protagonista nessa construção.
Para a Articulação Continental dos Movimentos Sociais, a Alba é um projeto essencialmente político e alternativo ao projeto imperialista e suas vertentes de integração capitalistas. Pode acumular forças populares e institucionais rumo ao socialismo em Nossa América.
Articulação Continental dos Movimentos
A década de 1990 significou o renascimento das lutas sociais na América Latina. Movimentos e organizações se uniram em protestos contra a proposta dos governos neoliberais da região, que, em articulação com Portugal e Espanha, propuseram comemorar os quinhentos anos de descobrimento da América em 1992. O resultado foi a vitoriosa campanha pelos quinhentos anos de resistência indígena, negra e popular. Pusemos água nas comemorações oficiais, com protestos em todos os países.
O despertar dessas lutas históricas, conjugadas com as reivindicações mais urgentes em nossos países, afloraram a mística, o entusiasmo, a consciência política e as alianças. As mobilizações, que constituíram a base desse processo, nos deixaram importantes aprendizados. Não somente avançaram a partir da memória, resgatando o pluriculturalismo em meio ao discurso homogeneizador neoliberal do Consenso de Washington, como também nos mostraram novas formas organizativas, livres de verticalismos e hierarquias, e experiências políticas e econômicas solidárias e libertadoras.
Dessa aproximação surgiram organizações continentais como a Via Campesina, que se tornou mundial, a Coordenadora Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc), a Aliança Social Continental e a Marcha Mundial das Mulheres (MMM). Além disso, criaram-se redes – entre elas, Grito dos Excluídos, Jubileu Sul e Compa – que se fortaleceram em distintas campanhas contra o avanço do neoliberalismo e suas consequências.
O Fórum Social Mundial – criado em 2001 – e outros espaços propiciaram a convergência de propostas e ações. As distâncias entre os territórios, engrandecidas mais por mecanismos intervencionistas e de cooptação e por meios de comunicação do que pela própria geografia, começaram a diminuir. Distintos movimentos alcançaram uma proximidade graças ao reconhecimento de sentidos comuns em suas lutas. O diálogo se estabeleceu a partir da identidade de pertencimento à Nossa América.
As campanhas contra a dívida e contra a Alca seguramente nos elevaram a outro patamar: acumulamos experiência e força. Esse processo motivou a aliança entre diversos atores sociais em nossos países e abriu caminho para a superação das lutas setoriais e temáticas e para o impulso da integração desde baixo, baseada em projetos solidários entre nossos povos. Somente no Brasil, a campanha contra a Alca contou com a participação de mais de 10 milhões de eleitores, que votaram contundentemente contra a entrada do Brasil no bloco. Mais tarde, em 2005, em Mar del Plata, na Argentina, viu-se o enterro dessa proposta de integração.
Em 2007, durante a 5ª Cúpula da Alba, em Tintorero, Venezuela, os governos sugeriram a criação de um Conselho de Movimentos Sociais como parte da estrutura da iniciativa. Desde esse momento estamos envolvidos no processo de construção, que avançou para um espaço denominado Articulação Continental dos Movimentos Sociais pela Alba.
Inspiramo-nos nos princípios da Alba porque são os que historicamente, enquanto movimentos sociais, temos defendido: solidariedade; autodeterminação dos povos; aproveitamento racional e em benefício popular de nossos recursos naturais; complementaridade econômica e cooperação entre as nações; e direito à preservação da identidade cultural de Nossa América.
Em julho de 2008 iniciamos os encontros dos movimentos sociais. Delineamos questões que seriam incluídas na Carta dos Movimentos Sociais das Américas, construída de forma conjunta com várias representações de movimentos sociais – do Alasca à Terra do Fogo – e aprovada na Assembleia dos Movimentos Sociais do Fórum Social Mundial de 2009, em Belém do Pará.
Nessa carta, declaramos que nosso horizonte fundamental é a integração desde baixo, a partir dos povos, para impulsionar transformações antineoliberais e anti-imperialistas que resgatem as formas alternativas e solidárias de intercâmbio que temos criado em nossos territórios para enfrentar a dominação neoliberal. A memória e as lutas que temos compartilhado se convertem em um acumulado de forças que sustentam esse sonho de unidade para a construção de um continente justo, livre de hegemonias imperialistas, de poderes patriarcais e onde germine o bem-viver entre os povos.
Sentidos comuns e desafios da Articulação
Nossa pedagogia da libertação tem combinado mobilização e discussões dentro de nossos movimentos e espaços continentais. A partir de análises de conjunturas construídas por todos e do compartilhamento da vivência de nossas lutas e atuações em nossos movimentos e países, definimos áreas temáticas prioritárias para impulsionar as discussões em torno da construção de assembleias nacionais, com o propósito de reforçar e ampliar o debate sobre a integração de nossos povos.
A luta contra a militarização e as bases militares; contra a criminalização das lutas sociais e as agressões do imperialismo; a batalha contra as transnacionais, as privatizações e desnacionalizações; os direitos da Mãe Terra e dos povos originários e a luta pelo bem-viver; a solidariedade internacional entre os povos em luta; e a organização de um programa e uma rede de formação e comunicação têm sido os elementos essenciais para a construção de uma alternativa à dominação da região, promovida por um sistema em crise.
Três eixos sustentam na prática a integração entre nossos movimentos e organizações sociais: a solidariedade, a mobilização e a formação. Conformamos brigadas de apoio e solidariedade em vários países. Neste momento, estamos nos organizando para atuar conjuntamente com os movimentos paraguaios para denunciar o golpe de Estado perpetrado contra o presidente Fernando Lugo. Sabemos que é mais uma manobra do governo dos Estados Unidos em aliança com setores mafiosos e as oligarquias que sempre estiveram no poder no Paraguai.
Tendo em vista a construção de nossa 1ª Assembleia Continental dos Movimentos Sociais, que será realizada em novembro deste ano no Brasil, a secretaria operativa provisória começou um processo de visitas de trabalho a distintos países da região. O objetivo é a geração de encontros entre organizações sociais que permitam avançar na conformação e no fortalecimento de plataformas nacionais e discutir temas estratégicos sobre essa integração desde baixo.
Tais intercâmbios têm permitido a discussão sobre a Carta dos Movimentos Sociais das Américas, os projetos em curso da Articulação e as possibilidades e formas de fortalecer nosso projeto de integração. As análises de conjuntura particular desses países em geral coincidem na necessidade de que os povos atuem de forma unida diante da intenção imperialista de recuperar os espaços perdidos. O balanço realizado até agora é positivo, pois a Articulação começa a dar novos passos nos países onde se geraram debates, como Peru, Colômbia, Equador, México, El Salvador, Argentina, Honduras, Uruguai, Nicarágua e Brasil. Em breve, visitaremos Canadá e Estados Unidos, além de Venezuela.
Integrar nossas organizações populares e bases sociais é nosso objetivo e maior desafio. Precisamos dar um passo adiante, mobilizando nossas bases e os mais diversos setores da sociedade e recuperando a contribuição histórica de nossos pensadores que sempre defenderam a integração como único caminho para a libertação verdadeira dos povos de nosso continente.
A unidade e integração de Nossa América estão em nosso horizonte e são nosso caminho.
Joaquin Piñero é membro do setor de Relações Internacionais do MST e da Secretaria Operativa da Articulação Continental dos Movimentos Sociais.