Intervenção, violência e políticas de segurança em terra de Marielle
No Brasil, a estrutura social e de poder está profundamente marcada pelo colonialismo, pelo escravismo e pela segregação. Não é preciso que o assassino de uma parlamentar negra deixe um bilhete escrito expressamente “made by a racist”, para que se justifique falar de racismo como parte integrante da motivação
É típico no Brasil que a questão racial não faça parte da discussão. É comum que quem queira introduzir, em qualquer debate, o recorte racial, a menos que o racismo esteja explícito, seja visto como aquele que “vê racismo em tudo”. Curioso, já que a questão racial sempre marcou o Brasil e a composição da sociedade brasileira. A herança da história colonial-escravagista do Brasil se espalha em toda história de nossa formação social, e não estaria ausente da construção das políticas que aqui são empreendidas. Não seria diferente com as políticas públicas para a segurança. E não seria diferente para pensar a efetividade e os rumos da intervenção federal-militar no Rio de Janeiro.
O que dificulta identificar como políticas de segurança no Brasil sempre foram, e são, construídas com perfis racistas é que, na base, onde está a ponta das ações de repressão e operações ostensivas e os confrontos armados, brancos e negros se misturam. Diferente da segregação racial nos Estados Unidos, ou do apartheid na África do Sul, no Brasil, o corpo de policiais militares, ou de soldados do Exército, recrutados para operações ostensivas de repressão ou controle em territórios pobres e periféricos, são compostos de brancos e, majoritariamente, negros. Na segregação americana, policiais que reprimiam manifestações pelos direitos civis com cães, jatos d’água, cassetetes, socos e pontapés, eram brancos. Policiais e soldados que mantinham negros e negras confinados nos territórios periféricos sul-africanos, como Soweto, eram brancos.
No Brasil, essa imagem é impossível. Essa “mistura” acabou por mascarar um poderosíssimo racismo estrutural, que jogou pardos e pretos aos montes para as frentes de batalha no passado, e para as operações de combate a violência de hoje. A cúpula, de Michel Temer à Walter Braga Netto, é branca. No Brasil, o Exército tornou-se, para a parte mais pobre da população jovem e suas famílias, uma possibilidade de emprego estável. Para muitos pais, ter o filho, saindo da adolescência, sendo aceito pelas Forças Armadas torna-se o primeiro passo para que ele tenha condições melhores que as suas. Ingressar nas Forças Armadas sempre foi visto como um destaque profissional para as famílias dos jovens de favelas e comunidades do subúrbio.
De racismo, defesa e armas
Guardada as devidas proporções, estamos na mesma linha temporal que nos trouxe do período imperial, durante a Guerra do Paraguai (1865-1870), em que o Exército era a “grande oportunidade” de negros se “livrarem” da condição de escravizados. Negros alforriados sem rumo, e sem perspectiva de um lado. Negros escravizados, com o açoite e a tortura como companhias permanente do outro. A elite rica e branca, que amava o país mas não a ponto de morrer por ele, mas enriquecer explorando nele, entregavam negros escravizados em troca de si mesmos e dos filhos. Não por acaso, o Comando do Exército rejeitou, em 2017, a proposta de criação de uma unidade militar com trajes históricos que pretendia homenagear os soldados negros que lutaram na Guerra do Paraguai. Em outras palavras, na Guerra do Paraguai, negro era para morrer. Nos Estados Unidos ou na África do Sul, o racismo é uma ferida aberta. No Brasil, o racismo é uma gangrena que corrói por baixo do tecido social, do corpo social, e segue destruindo por dentro, até que partes deste corpo sejam amputadas.
Como bem disse Achille Mbembe em seu Políticas da Inimizade, “de um ponto de vista histórico, nem a república de escravos, nem o regime colonial e imperial eram corpos estranhos à democracia”. Não há porque imaginar que a democracia como está sendo conduzida no Brasil seja estranha a própria construção da ideia de democracia e quem dela realmente faz parte. A ideia de segurança, ou seguridade, intrínseca na democracia, vai recorrer permanentemente à disciplina e ao controle, ou quando necessário, à repressão, contra o inimigo que a ameaça. É preciso que haja sempre inimigos que a ameaçam. O racismo no Brasil deu à política de segurança, ao longo da história brasileira, os seus inimigos preferenciais. Diz ainda Mbembe que “está na natureza do racismo a constante tentativa de não se esclerosar”, ou, em outras palavras, o racismo, como um sistema estruturante eficiente, sempre encontrará formas de se renovar, metamorfosear, mimetizar relações equânimes, mas que na realidade concentram e mantêm profundas desigualdades e injustiça.
Se nove em cada dez mortos pela Polícia Militar no Rio de Janeiro são negros ou pardos, isto não está se dá por conta de uma maioria negra na população, mas por uma orientação profundamente racializada para as formas de agir, abordar, prender e matar. Uma intervenção federal séria no Rio de Janeiro, já poderia ter sido feita, assim que estes dados foram divulgados. Se o governo federal não intervêm nas forças de segurança do Estado que mata nove negros, para cada uma pessoa branca, as orientações e prioridades políticas sobre segurança estão mais racializados do que nós imaginamos.
Quem matou Marielle
Aqui jaz Marielle Franco. Negra, mulher, lésbica, mãe, parlamentar. Enquanto segue em torno de mistérios, o assassinato brutal de Marielle Franco, junto com seu motorista, Anderson Gomes, vai expondo simultaneamente, a partir do Rio de Janeiro, nossa brutalidade política e nossa relação perturbadora diante da possibilidade de reconhecer o racismo como um agente presente (e influente). Nossa brutalidade política é a ousadia de assassinar uma parlamentar (do Parlamento da capital do estado) de uma maneira cruel e fulminante. Brutalidade política que torna o jogo político no Rio de Janeiro não apenas competitivo, mas também violento, com profundas relações dissimuladas entre política-polícia-milícia. Brutalidade política nas declarações de ódio e vingativas nas redes sociais contra Marielle, que na verdade é contra um simbolismo maior. De desembargadora à parlamentar-homem-cristão (mas branca, branco, sempre), o ódio a tudo o que Marielle representava foi imediato e inconsequente, espalhando falsas notícias, que mais do que as mentiras do conteúdo nelas contido, diziam mais sobre o que seus divulgadores pensavam e apoiavam.
Nossa relação perturbadora com o racismo está no desconforto causado por aqueles que se indignavam (quando não tentavam diminuir ou ridicularizavam) quando o racismo (bem como o gênero e a sexualidade) eram postos como fatores integrantes das razões do assassinato da vereadora. No Brasil, como dito no início do texto, nossa estrutura social e de poder está profundamente marcada pelo colonialismo, pelo escravismo e pela segregação. Não é preciso que o assassino de uma parlamentar negra deixe um bilhete escrito expressamente “made by a racist”, para que se justifique falar de racismo como parte integrante da motivação. Esta justificativa é histórica.
“Não foi por racismo”, mas Claudia Ferreira era negra. “Não foi por racismo”, mas Amarildo era negro. “Não foi por racismo”, mas o jovem Jeremias Moraes era negro. “Não foi por racismo”, mas Rafael Braga é negro. “Não foi por racismo”, mas os cinco jovens de Costa Barros fuzilados com 111 tiros eram negros. “Não é por racismo”, mas a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil. “Não é por racismo”, mas as mulheres negras são as que mais morrem durante o parto no SUS. “Não foi por racismo”, mas Marielle Franco era negra, e mulher, e lésbica, e cria da periferia. O assassinato da Mariele é o ponto mais extremo da cultura de hostilidade à mulher preta que no nosso arquétipo de linguagem racista foi descrita como “negrinha abusada”. Não deveria ser difícil considerar o racismo como parte da motivação de um assassinato num país em que se mata tantos pretos e pretas.
No contexto da intervenção, o assassinato de Marielle Franco acabou por dinamitar a possibilidade de uma ação que perderia força e atenção depois de suas primeiras semanas. Antes de ter servido como um recado aos movimentos sociais e ativistas pelos direitos humanos, o assassinato da vereadora serviu como uma rajada de frustração em qualquer possível teatro institucional do Estado sobre sua demonstração de controle. Não há controle. E ao perdermos Marielle, também soubemos que não há (e que não pode haver) silêncio. O silêncio e a conformidade deixaram de ser opção.
Discutir a intervenção federal-militar, sem permitir que o recorte racial emerja para nos orientar numa profunda percepção do que estão fazendo com o, e no, Rio de Janeiro, é atenuar uma intervenção que parece só ser pautada pelos números da violência. Não é, e nem pode ser. Se não há um confronto com a realidade em que o racismo estrutural aqui nos jogou, seguimos repetindo os erros de sempre. Aqui, política de segurança pública levada à sério deve ser aquela que reconhece os estragos que o racismo, fruto de nossa longa história colonial-escravagista fez.
*Ronilso Pacheco da Silva é graduando em Teologia na PUC-Rio; membro do Coletivo Nuvem Negra, formado por estudantes negros/as da PUC-Rio; ativista, evangélico, participa também da Campanha pela Liberdade de Rafael Braga Vieira desde o seu surgimento em 2013. É autor do artigo “É hora de racializar o debate sobre o sistema prisional no Brasil”, publicado no livro BR 111: a rota das prisões brasileiras (Le Monde Diplomatique Brasil/Veneta, 2017).