Itaquera, muito além da Copa do Mundo
A escolha de Itaquera como sede da abertura de um dos eventos midiáticos mais importantes do mundo pode ser entendida como uma homenagem simbólica aos habitantes do bairro e, contraditoriamente, como o ponto culminante dos processos de valorização fundiária, os quais se desdobrarão na expulsão dessa mesma populaçãoTiarajú D’Andrea
(Copa referenda o processo de apagamento do passado operário e nordestino de Itaquera)
Desde que foi anunciada a construção do estádio do Corinthians no bairro de Itaquera, em São Paulo, em setembro de 2010, o local virou assunto e centro das atenções mundiais. Nunca antes a região teve tanta visibilidade. No entanto, a exposição midiática não tem levado em consideração muitos aspectos da história de Itaquera.
A trajetória do bairro é antiga. Foi no longínquo ano de 1620 que surgiram algumas das primeiras referências à denominada Roça Itaquera, situada nos limites do Aldeamento de São Miguel. Dois séculos e meio se passaram até o acontecimento que moldou o desenvolvimento econômico da região: a inauguração da estação de trem de Itaquera, em 1875, pelo ramal da Central do Brasil. O impacto da chegada da estrada de ferro foi enorme, propiciando o transporte de seus moradores a outras regiões e das mercadorias produzidas em Itaquera para o Centro de São Paulo. Foi também ao redor da estação que se consolidou um pujante centro comercial.
A partir da década de 1920, imigrantes japoneses passaram a residir nas glebas rurais existentes na região. A principal atividade econômica dessas famílias era a produção de pêssegos em uma extensa área circundante à Mata do Carmo.
No transcorrer do século XX, processos econômicos foram aos poucos substituindo as áreas de roçado por vilas e loteamentos. Grandes levas populacionais provindas sobretudo da região Nordeste assentavam-se em Itaquera, atraídas pelos terrenos baratos e pela estação de trem, que possibilitava o deslocamento até o Centro.
De fato, o ambiente semirrural da região configurou-se como uma reserva de terras a serem incorporadas nos circuitos periféricos de valorização, expressos nos loteamentos e vilas, cujos terrenos seriam vendidos para a população de baixa renda. Esse processo foi lento e ocorreu fundamentalmente entre as décadas de 1940 e 1970. No alvorecer da ditadura militar, Itaquera era um bairro periférico não consolidado,1 ou seja, com pouca infraestrutura urbana. Sua população era composta de operários e trabalhadores assalariados no comércio e no ramo de serviços. Grande parte dessa população pagava em parcelas o sonho da casa própria. Urbanisticamente, os terrenos vazios, produtos da especulação imobiliária, contracenavam com muitas ruas de terra e precariedade.
A ocupação de Itaquera nos moldes aqui apresentados ocorreu mais ou menos até a década de 1970. Foi nessa década também que surgiram as primeiras favelas da região. Contudo, a partir de 1980 ocorreu uma explosão demográfica potencializada principalmente por um fenômeno urbanístico e social que marcaria para sempre a história do bairro: a construção das Cohabs.
Chegam os conjuntos habitacionais
Inaugurada em 1980 pelo então ditador João Batista Figueiredo, a Cohab José Bonifácio localiza-se em um enorme terreno ao lado das já citadas plantações de pêssegos. Não é casual que o local escolhido para a introdução dos edifícios tenha sido distante da centralidade representada pela estação. Na tarefa de ligar urbanística e socialmente a Cohab à mancha urbana já existente, uma série de agentes lucrou: o dono da empresa de transporte; as empreiteiras e construtoras, contratadas para realizar obras de infraestrutura urbana; os pequenos e os grandes especuladores imobiliários, apostando na valorização dos vazios urbanos entre uma e outra região. Essa é a história da periferia, uma lógica da desordem2em que a ordem foi o lucro fácil de diversos setores que atuaram no filão da urbanização.
Em outro âmbito, cabe destacar que o beabá do planejamento urbano prevê que primeiro se instale a infraestrutura para depois os moradores habitarem determinado local. No entanto, devido à já citada ordem da desordem, em Itaquera ocorreu o contrário: primeiro chegaram as pessoas, depois a infraestrutura estatal e num terceiro momento a iniciativa privada, desejosa de auferir renda em uma localização valorizada pela intervenção estatal.3 Após a inauguração do primeiro conjunto habitacional, vários outros passaram a ser construídos.4 Os edifícios foram rapidamente povoados e a população pressionou o poder público por serviços essenciais como escolas, hospitais e postos de saúde, sendo em parte atendida, uma vez que até hoje a prestação de serviços públicos é deficitária. De certo, há toda uma construção social de apagamento da luta desses moradores por melhorias urbanas, e Itaquera foi e é um local fértil em lutas.
Mortes, apertos e lógica individualista
O esquecimento das lutas é também o esquecimento das mortes produzidas por esse modelo de urbanização. Em 1987, uma batida entre dois trens próximo à estação de Itaquera tirou a vida de mais de sessenta pessoas.Foi o maior acidente ferroviário da história de São Paulo. A causa: uma falha técnica, ocasionada pelo descaso do Estado brasileiro. As vítimas: trabalhadores, crianças, negros, nordestinos. Moradores da região. Pobres em geral. Aqueles que conformam uma massa sem vez, sem voz e sem possibilidade de contar sua própria história. Como síntese do episódio, no dia seguinte à tragédia os trens circulavam normalmente. São Paulo não pode parar. As engrenagens econômicas precisam seguir funcionando. A mão de obra barata da zona leste deveria apinhar-se na lata de sardinha e seguir sua marcha ao Centro. Aos mortos, nem um minuto de silêncio ou uma cruz na beira da via. A morte em massa no transporte foi apenas um acidente de percurso, silenciado e esquecido.
Na breve tentativa de periodização realizada por este texto, pode-se afirmar que a batida de trens ocorrida em fevereiro de 1987 foi o ponto máximo das precariedades de um bairro periférico não consolidadoque transitava para se transformar em um bairro periférico consolidado, ou seja, uma localidade com infraestrutura urbana.5
O principal fato que evidencia essa transição dos padrões de urbanização do local foi a chegada do metrô, em setembro de 1988, um ano e meio após a batida de trens. A inauguração da Estação Corinthians-Itaquera colocou o bairro em um patamar diferente no que tange à sua relação com o Centro de cidade, diminuindo, mas não resolvendo, o problema da segregação socioespacial. Por outro lado, a abertura da estação referendou Itaquera enquanto centralidade da zona leste.
Com a chegada do metrô, o bairro também passou a ser palco de uma contraditória política de investimentos em infraestrutura viária. Começava-se um processo de transformação local, com a tentativa de substituição da antiga população moradora por uma população de classe média baixa. Se décadas atrás o bairro havia vivido a transição de um ambiente semirrural para um bolsão de loteamentos periféricos, foi no final da década de 1990 que se referendou o processo de aquisição dos terrenos baratos da periferia consolidadapara inseri-los em circuitos mais elevados de valorização fundiária. Um novo projeto se impunha a Itaquera.
Em 1995, o então prefeito Paulo Maluf inaugurou a Avenida Jacu-Pêssego, que atravessa o bairro de ponta a ponta; no ano 2000, foi inaugurada a linha de trem Itaquera-Guaianases, que serviu para desativar o trajeto da antiga estrada de ferro, tirando a linha férrea do centro do bairro e do local onde ocorreu a batida de trens. O trecho antigo foi abandonado por quatro anos, até que em 2004, por sobre seu traçado, foi inaugurada mais uma obra viária de grande porte: a Nova Radial Leste. Era um fato: o transporte individual havia sido priorizado em detrimento do transporte público. Nem a estação de trem de Itaquera se salvou. Enquanto tramitava o processo de tombamento da antiga estação, memória histórica do bairro, uma ação silenciosa da prefeitura a demoliu em 2004. Itaquera não tinha mais trem. Itaquera não tinha mais estação de trem. Aos poucos desaparecia tudo o que lembrava os pioneiros, os princípios, a raiz histórica do bairro. A memória era apagada. Uma outra história deveria ser contada…
A Nova Itaquera e o estádio da Copa
Como mencionado anteriormente,6 uma das faces da transformação de bairros da periferia é a chegada da iniciativa privada, desejosa de auferir lucro em localidades já beneficiadas com infraestrutura urbana. Ainda que vários padrões de urbanização existam de maneira concomitante em Itaquera, é evidente a ação de uma série de agentes visando à consolidação desse terceiro momento, que ocorre depois da chegada dos moradores e da introdução de infraestrutura urbana.
Como exemplo da “Nova Itaquera”, em 2007 foi inaugurado o Shopping Metrô Itaquera, explorando-se o potencial consumidor da população da região. No mesmo período, começou a ser inaugurada uma série de edifícios de médio padrão voltados à demanda da classe média baixa. Esses edifícios atraem os moradores de outros bairros interessados nos preços mais em conta que Itaquera oferece e atendem a uma parcela da população do bairro que ascendeu socialmente nos últimos anos. Dessa forma, é num momento histórico de transição e encarecimento do padrão de vida no bairro que é anunciada a construção do estádio do Corinthians, palco da abertura da Copa do Mundo.
Antes de propriamente discutir o evento, cabe fazer uma importante ressalva: o problema não é em si o estádio. O torcedor merecia um estádio próximo de sua residência, levando em conta que a zona leste é um reduto de corintianos. O fato de o Corinthians mandar partidas de futebol no Morumbi ou no Pacaembu só referendava a segregação socioespacial a que está submetido o morador/torcedor da zona leste. Definitivamente, o Pacaembu não fica próximo dessa população.
A questão principal é a forma como o estádio do Corinthians em Itaquera está sendo imposto. Nesse ponto, foi crucial a construção discursiva que efetuou o imbricamento entre a construção do estádio e a Copa, como se fossem elementos indissociáveis. A partir dessa costura, setores desejosos de que o Brasil sedie os jogos, principalmente pelos ganhos financeiros decorrentes, passaram a ter o apoio acrítico de um importante ator no cenário futebolístico − a torcida do Corinthians − e de um ator social cada vez mais importante: o morador da zona leste.
As armadilhas desses apoios são várias. Do ponto de vista futebolístico, a Copa vem sacramentar o cerco ao torcedor comum e ao torcedor organizado. Nos últimos anos, o futebol passa por um processo de elitização capitaneado por empresas televisivas e pelo aparato estatal jurídico-repressivo. Expresso no aumento cada vez maior do preço dos ingressos e na repressão generalizada às torcidas organizadas, vê-se um quadro perfeito para os que manejam o futebol como negócio: a elite e a classe média indo ao estádio, pagando caro, e os mais pobres em casa consumindo futebol via televisão, sem circular pela cidade e dando audiência às emissoras. Do ponto de vista do torcedor organizado, defender a Copa nesses termos é apoiar seu próprio fim.
Do ponto de vista urbanístico, os investimentos na região novamente priorizarão a lógica individualista expressa nas vias para automóveis, fundamentalmente ligando o estádio ao aeroporto. Para além da propaganda, essas obras em nada resolverão os problemas estruturais do bairro. Itaquera, assim como toda a zona leste, precisa de mais linhas de metrô, mas isso não foi levado em consideração pelos governantes.
Cabe lembrar também que as obras viárias e o parque linear previstos para a região pressupõem a retirada de 4.500 famílias moradoras de favelas. Como vem sendo prática na atual gestão municipal, não existe uma política de reassentamento dessas famílias na própria região. A questão das remoções é a pauta principal do Comitê Comunidades Unidas, que se organiza em Itaquera e exige do poder público uma política habitacional efetiva para essa população.
Levando em conta os planos apresentados pelas diferentes esferas governamentais, configura-se o seguinte cenário: obras viárias de grande porte e política habitacional privada. Ambos visam atender à classe média baixa em detrimento do investimento em moradia popular e metrô. Moradias populares garantiriam a permanência dos atuais moradores no bairro, e mais linhas de metrô são necessárias, uma vez que se sabe há muito tempo que transporte público de qualidade é a solução para São Paulo, e não avenidas.
De fato, o estádio poderia fazer parte de um projeto realmente sério de desenvolvimento da região, que beneficiasse os moradores também enquanto habitantes da cidade e trabalhadores, e não só em sua face torcedora. O problema do estádio é ele servir como catalisador de apoio a uma Copa que está longe de ser em benefício das classes populares. Pelo contrário, o evento referenda o processo social de apagamento do passado operário e nordestino do bairro de Itaquera. Cabe lembrar que não se é contra processos de urbanização e melhorias urbanas, mas a pergunta a ser feita é: de fato são intervenções que visam à melhoria das condições urbanas para os atuais moradores ou são intervenções pontuais que reatualizarão os processos de expulsão e segregação socioespacial?
Que Itaquera também seja daqueles que, com seu suor, história e lutas, edificaram o bairro. Grande parte dos moradores da região está sendo induzida por uma forte propaganda midiática a apoiar um projeto de cidade e sociedade que não é o seu. Desvelar esse equívoco contribui para que a população periférica formule seu próprio projeto. Para começar, o morador do bairro é quem deveria deter o naming rightsdo estádio, que poderia se chamar Mártires de Itaquera, em memória dos mortos de sua história.
Tiarajú D’Andrea é Morador de Itaquera e corintiano. Doutorando em Sociologia pela USP, é autor da dissertação de mestrado Nas Tramas da segregação: o real panorama da pólis, São Paulo, Departamento de Sociologia (FFLCH – USP), 2008.