Jair Bolsonaro: massa, vírus e poder
O encontro do anseio autoritário com o coronavírus evidencia o projeto de destruição em ampla escala de Jair Bolsonaro
A crise não é de “confiança”, não é “ética”, não é “financeira”; não é “política”, não é “institucional” e muito menos do “coronavírus”. É a crise de um padrão de sociabilidade que transforma tudo em mercadoria, inclusive saúde, educação e tempo de vida. A crise é do capitalismo.
Silvio Almeida
Queria começar este ensaio com três cenas distintas, seguindo uma ordem cronológica. São curtas, significativas e falam por si.
Bolsonaro e os 30 mil mortos
Estamos em 1999. Bolsonaro participa de uma entrevista ao programa televisivo Câmera Aberta, sentado lado a lado com o apresentador. Ele estava então no término de seu terceiro mandato como Deputado Federal. Seu tipo físico e sua forma de falar chamam atenção: bonito, poderia-se dizer, com um rosto jovial bem barbeado, cabelo liso com franja caindo para esquerda, camisa xadrez. Exibe uma acentuada monocelha que com a idade foi se apagando. Pese esse aspecto de bom-garoto, o deputado tem uma postura pouco polida, que em nada mudou com os anos: atropela as perguntas do entrevistador e responde com veemência a propósito de disputas políticas da época. “Eu até sou favorável, que na CPI do caso do Chico Lopes, tivesse um pau de arara lá. Ele merecia isso: pau de arara. Funciona! Eu sou favorável a tortura. Tu sabe disso”, exaspera Bolsonaro, apontando com as duas mãos semi fechadas para si. “E o povo é favorável a isso também”, continua.
Naquele ano, o ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes, foi convocado para uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apurava irregularidades no sistema financeiro. Lopes não assinou o documento em que se comprometeria a dizer a verdade na comissão. Alertado por senadores de que ele poderia sair de lá preso caso mantivesse sua atitude, Lopes não mudou de opinião, e terminou, de fato, preso. Na continuidade da entrevista, Bolsonaro é questionado se, caso fosse o Presidente da República, fecharia o congresso. Responde, sem titubear: “não há menor dúvida, daria golpe no mesmo dia! Não funciona!”.
Ele segue seu raciocínio virulento até chegar na parte que me parece mais relevante. “Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, no dia em que partir para uma Guerra Civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando pelo FHC, não deixar ele pra fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”, afirma Bolsonaro.
A guerra, a morte daqueles pelos quais Bolsonaro não tem apreço, surge aqui como uma proposta de limpeza da população, visando a criação de um novo e melhor país.

“Carta branca” para matar
14 de dezembro de 2017. Bolsonaro desfila pela capital amazonense. É o início de sua campanha eleitoral. Duas bandeiras do Brasil e uma de Israel adornam o carro de som em cima do qual se encontra o candidato, por sua vez envolto naquela que aparenta ser uma bandeira do estado do Amazonas. Uma pequena plateia o acompanha. Grita e aplaude cada frase de Bolsonaro. O então presidenciável faz uma saudação à Polícia Militar do Amazonas, afirma que vai defender o excludente de ilicitude e então conclama com ira: “se alguém disser que quero dar carta branca para policial militar matar, eu respondo: quero sim!”. A plateia vai ao delírio.
Em meados de 2019, o ex-juiz Sérgio Moro encaminha ao Congresso, na condição de Ministro da Justiça e da Segurança Pública, o seu projeto mais ambicioso. Acreditava na aplicação de medidas rígidas para diminuir tanto criminalidade quanto impunidade no Brasil. O Pacote Anti Crime, como ficou conhecido, tornaria mais dura as penas para corrupção, tráfico de drogas e organizações criminosas. Uma vez com o projeto tramitando no Congresso, Moro foi questionado quanto ao excludente de ilicitude. Neste item, estava disposto que o juiz encarregado de julgar policiais envolvidos em assassinatos poderia “reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. No legislativo o projeto foi visto como uma licença para que policiais país afora pudessem matar sem serem punidos.
Moro até tentou se defender, dizendo que aquilo não era uma carta branca, mas ainda podia se ouvir o eco das falas pronunciadas por Bolsonaro em cima do carro de som em Manaus. Este foi um dos principais trechos do pacote de Moro arquivados pela Câmara dos Deputados.
Bolsonaro não se furta a explicitar contra quem esta guerra estará destinada.
As massas e o mito
Domingo, 15 de março de 2020. Quatro dias antes a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou pandemia mundial pelo novo coronavírus. Sistemas de saúde de todo o mundo em crise. Países confinando milhões em casa. Fronteiras sendo fechadas. Economistas calculando prejuízos bilionários. Bolsonaro, por sua vez, contraria recomendações médicas e de seus próprios ministros. O agora Presidente decide por sair do Palácio do Planalto rumo a uma manifestação de simpatizantes seus que saíram às ruas, em meio à pandemia, contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro interage com estes. Sorri. Manuseia celulares da população. Em seus perfis virtuais compartilha vídeos de atos em todo o país, estimulando que pessoas estejam em contato e aglomeradas.
Bolsonaro havia estado na presença de contaminados pelo Covid-19 e médicos lhe recomendaram diminuir contatos – quando escrevo este texto, são 23 o número de pessoas próximas ao presidente contaminadas, incluindo ministros. Ele não parecia preocupado com a sua saúde, tampouco com a da sua massa mais fanática de apoiadores.
Que relações poderiam ser traçadas entre esta terceira cena e as duas que lhe antecedem?
O Covid-19 nos permite uma perspectiva diversa; auxilia a observar, a partir de ângulos inauditos, aspectos do projeto autoritário de Jair Bolsonaro. Há entre a situação social criada pelo vírus e o autoritarismo de Jair Bolsonaro, afinidades que cabem ser explicitadas. Ressalto três.
Política e paranoia
Massa e poder, do escritor Elias Canetti é um livro fascinante. “Tudo”, diz Canetti, veio parar neste livro. Seu pano de fundo é o que ocorre na Alemanha Nazista e as amplas mobilizações de massa que a sustentam. Disse pano de fundo, porque não acredito que seja exatamente uma obra sobre a Alemanha Nazista e o extermínio dos judeus da Europa. Hitler e o contexto do nazismo alemão são mencionados, mas não à exaustão. Canetti aposta que, para entender o fenômeno das massas, é preciso deixar uma certa racionalidade europeia de lado e analisa os sentimentos que movem as pessoas à compô-las. Reflete sobre as sensações de abertura de cada pessoa quando, incorporado à massa, passa a fazer parte de um todo, nele se apagando. Para isso, vai da psicologia à antropologia, da história à arqueologia, passando pela teoria política. Percorre povos indígenas das Américas, povos caçadores da África e Sultões muçulmanos para uma ampla reflexão sobre o assujeitamento.
Ao fazer uma radiografia das massas, destrincha seu principal mecanismo de funcionamento: toda massa tende ao crescimento. A massa é pensada à imagem do fogo, na sua capacidade de propagação, seu caráter contagioso irrefreável, que não respeita fronteiras nem barreiras. O fogo compartilha com as massas outra característica: tudo que existia antes do fogo, por mais heterogêneo e diverso que fosse, é igualado, ao ser transformado em cinzas. Também as pessoas, integradas às massas, perdem seus traços definidores. “Quanto mais vida algo abriga, tanto menos será ele capaz de defender-se do fogo; capaz de fazer-lhe frente é apenas o que há de mais inanimado; os minerais”, escreve Canetti.
Impossível não pensar nas semelhanças entre fogo e vírus, no que diz respeito à velocidade de propagação. Principalmente se levarmos em consideração as particularidades das formas de contato hoje, em que grande parte da massa toma corpo on-line, no qual viralizam fake-news, sentimentos e agressões contra determinadas pessoas, tornando indistinguíveis massas e hordas.
Ainda assim, é outro traço do livro de Canetti que gostaria de trazer para ajudar a pensar o Brasil sob essa dupla ameaça, coronavírus e Bolsonaro. O governante como paranoico.
O sultão de Delhi, Muhammad bin Tughluq (século XIV), emerge para Canetti como o caso puro de um paranoico detentor de poder, um exemplo que revela as relações entre a paranoia e os governantes totalitários europeus que deseja compreender. O sultão, possuidor de uma riqueza incomensurável, coordena exércitos em guerras inúteis, presenteia estrangeiros em detrimento de seus súditos, e termina por exterminar toda a população de sua cidade. Só assim, ao olhar pela janela de seu palácio e contemplar Delhi vazia, se sente satisfeito.
Exterminar indiscriminadamente, ainda que morram inocentes, como fala Bolsonaro, compõe o delírio do paranoico. Aos olhos do detentor do poder, a massa se revela em sua essência: todos são iguais, e todos lhe são igualmente perigosos. Por isso, como coloca Canetti, faz-se necessário o “seu amansamento mediante a miniaturização”. Aqueles subjugados pela violência, uma vez miniaturizados, ajudam na composição e no engrandecimento do corpo do governante, que confunde o seu próprio corpo com o daqueles que governa. O autor ressalta também o “sentimento do catastrófico”, a “ameaça à ordem universal”, que nutre o paranoico com relação às massas.
Vale traduzir as reflexões de Canetti para termos propriamente bolsonaristas. O vídeo compartilhado em redes sociais por Bolsonaro, em que figura um leão (ele) cercada de hienas (mídia, Congresso Nacional, STF e seu próprio ex-partido), dão uma dimensão palpável dessa paranoia. “Redentor do universo e soberano são uma única pessoa”, afirma Canetti sobre a visão do governante sobre si mesmo. “Mito”, como o chamam os apoiadores de Bolsonaro, coloca-o precisamente como única força redentora do país, dotado de uma aura divina, que não raro seus apoiadores encontram no nome do meio do presidente, Messias.
Outro aspecto concreto dessa paranoia, ao mesmo tempo real e calculada: demais políticos, como governadores e prefeitos, que tomam medidas para a contenção do vírus, são vistos por Bolsonaro como ameaças, trapaceiros que querem sabotar seu governo, diminuindo o crescimento do PIB e aumentando o desemprego.
A diferença entre o paranoico e o detentor do poder não existe em si, mas na sua relação com o mundo exterior. O paranoico se basta – lhe é suficiente a sua própria paranoia. Ao detentor do poder, sua paranóia é desenfreada. Ao paranoico, só ele importa. Os outros, a massa que o sustenta, não. A ponto de o presidente sair para tocá-la indiscriminadamente, mesmo com a possibilidade de estar contaminando seus próprios apoiadores.
Para Canetti: “a opinião do mundo nada representa para ele [governante ou paranoico, tanto faz]; seu delírio sustenta-se sozinho contra toda a humanidade”. O escritor búlgaro continua: “do único homem vivo, ele se transformou no único que conta”. É precisamente isso que revela Bolsonaro em uma de suas mais recentes reflexões públicas: “depois da facada, não será uma gripezinha que vai me derrubar”, afirmou o presidente, em meio ao crescimento exponencial do vírus no Brasil.
Não importam os outros. Ao mito, ansiando tornar-se plenipotente, o vírus pode ser um meio.
Higienização social
Como no capitalismo a morte segue o padrão da desigualdade, é de se esperar que nem todos venham a morrer igual com a crise do Coronavírus no Brasil. Basta atentar ao vídeo de Jandira Feghali de que a comunicação do governo para contenção do vírus se destina à classe média-alta. Como mostram inúmeras reportagens, como se proteger do vírus em locais onde sequer existe água na torneira para lavar as mãos? De que maneira isolar um doente em casa, em habitações de um só cômodo compartilhadas por toda uma mesma famílias, incluindo distintas gerações?
Vale a leitura do texto da filósofa e militante Djamila Ribeiro sobre a situação de vulnerabilidade de empregadas domésticas. A autora enfoca no violento caso da morte de uma idosa no Rio de Janeiro, que não foi dispensada após a patroa voltar contaminada com coronavírus da Itália.
Em um país com tamanha desigualdade, o vírus não matará de maneira igual. Se inicialmente a contaminação se deu de maneira primordial entre pessoas com acesso a viagens internacionais, sua disrupção em bairros pobres é de se temer. O vírus toma partido numa guerra já existente, e que muitos sociólogos dão o nome de “punição da pobreza”. A mesma lógica, vale dizer, do excludente de ilicitude defendido por Bolsonaro: punem-se os pobres, pouco importa a morte de inocentes. Limpa-se uns “30 mil”, como na guerra civil outrora, senão ainda, desejada pelo presidente. Não é senão isso que propõe também a Medida Provisória elaborada pelo governo de Bolsonaro: suspender contratos de trabalhadores por até quatro meses, deixando-os desamparados em um momento de aumento dos gastos com saúde. Poucas horas depois, e após protestos de políticos e sociedade civil, o presidente revogou este trecho.
O historiador e filósofo best-seller Yuval Noah Harari escreveu um excelente texto para a revista norteamericana Time (trechos foram traduzidos ao português). Entre os questionamentos do autor está a ideia de que a pandemia só tomou as dimensões que tomou devido ao mundo interconectado em que vivemos.
Harari defende precisamente o contrário: a propagação de doenças em outras épocas era mais letal, e havia infinitamente menos conexão entre o mundo. Basta pensar na letalidade e dispersão da Peste Bubônica na Europa ou da varíola entre populações indígenas das Américas. Vale comparar a reação da ciência ao coronavírus com a reação à peste: “enquanto pessoas na Idade Média nunca descobriram o que causava a peste bubônica, cientistas levaram apenas duas semanas para identificar o novo coronavírus, sequenciar seu genoma e desenvolver testes confiáveis para identificar pessoas infectadas”, afirma o autor. Essas informações foram rapidamente compartilhadas entre países.
É com a disseminação de informação entre países, a troca de conhecimento científico e as técnicas especializadas que se garante um combate eficiente ao vírus. O caso da varíola é exemplar: foi apenas pela existência de um esforço que envolveu todos os países do globo que 1979 a doença foi erradicada. Se uma única pessoa permanecesse com o vírus, este poderia sofrer uma mutação genética em único gene (o que costuma acontecer com vírus, seja o Covid-19 ou o Ebola), e a humanidade teria ainda que lidar com a varíola.
Se o vírus tem o potencial de revelar as mazelas da desigualdade e do caráter paranoico do detentor do poder, ele também aponta que ninguém está a salvo. Não importa o quão rica uma pessoa possa ser, o quão afastada se encontre dos centros de pobreza. Sujeitar populações inteiras a péssimas condições de vida e acesso precário não imuniza ninguém das consequências dessa desigualdade. Esse único gene, de um único vírus, de uma única pessoa sem acesso a um bom sistema de saúde pode ser fatal.
Ainda assim, ricos aparentam manter a ficção de que não serão atingidos da mesma forma que pobres pelo vírus. Certamente não o serão da mesma forma. Mas a curva de crescimento exponencial do número de contaminados leva ao colapso tanto o sistema público de saúde quanto os mais luxuosos hospitais privados.
A ficção do controle total
Lidar com uma doença contagiosa, uma catástrofe ambiental, guerras ou situações extremas que coloquem a população em vulnerabilidade, sempre apresenta duas facetas. A ideia de que governantes possuem razões práticas para desempenharem seu poder de mando de forma excepcionalmente dura, é a concretização do poder sem limites em sua forma pura.
Em Vigiar e punir, Michel Foucault abre um dos capítulos centrais de sua obra, aquele dedicado à análise da visualidade e do controle do Panóptico de Jeremy Bentham, com uma impressionante descrição do sistema de controle de pessoas que vinha à tona com a peste bubônica na Europa. Relatórios, rede de informações capilarizada, controle de movimentações. Dominar a peste traz em si, de forma concentrada e acentuada, o objetivo de todo projeto autoritário de controle total.
Harari, no texto acima citado, aponta para uma estratégia virtuosa, de troca de informações científicas e esforços entre países. Isso não exclui o uso que governos possam fazer para lidar com a pandemia, recrudescendo liberdades em tempos de exceção, para não mais voltarem à normalidade. Em outro artigo do mesmo escritor, desta vez publicado na revista britânica Financial Times, aponta para o perigoso aprimoramento de medidas de vigilância de pessoas, colocadas em prática pela China e por Israel com relação a seus próprios cidadãos, acompanhando cada movimento, ou mesmo a proximidade com pessoas infectadas. Ainda mais grave, para o autor, é a possibilidade de governos monitorarem características fisiológicas como pressão arterial e batimentos cardíacos. Isso permite uma vigilância sem precedentes de nossos gostos, risadas e emoções. “O monitoramento biométrico faria as táticas de hackeamento de dados da Cambridge Analytica parecerem algo da Idade da Pedra”, afirma o autor.
Com Bolsonaro, tudo parece infinitamente menos refinado. O combate ao vírus assume a sua faceta mais desmascaradamente abjeta: o desmerecimento da ciência, a descrença de que o vírus seja de fato um perigo, a propagação de notícias falsas e os comportamentos infames do próprio presidente. Tamanha inépcia gera desconfianças, levantando suspeitas de que possa existir um projeto de instauração de um duradouro Estado de Sítio.
Bolsonaro vem dando inequívocos sinais de estar ensaiando um golpe. Isso desde antes de se ouvir falar em Covid-19. Se não o faz, é porque não tem certeza de ter o apoio que tal medida demandaria. Desejo, ao que indicam suas falas, não falta. O vírus pode, perigosamente, criar as condições para que Bolsonaro concretize seu delírio autoritário: colocar o exército na rua para conter pessoas e não mais tirar. Uma vez contido o vírus, garantir uma disciplina entre trabalho e casa: reprodução do capital e reprodução da massa que o produz.
É pouco provável que a cúpula do exército endosse tal movimento. A polícia, porém, pode ser incentivada a realizar motins contra governos estaduais, estabelecendo um duradouro toque de recolher. O motim de policiais militares ocorrido no início do Ceará – e as estranhas relações entre o executivo federal e os policiais amotinados – não deve ser esquecido.
Não acredito que Bolsonaro tenha força para tanto. Mas as três cenas selecionadas acima, entre tantas outras, fazem crer que este seja seu mais profundo objetivo. Graças aos republicanos franceses do século XVIII e XIX temos separação de poderes e um sistema de freios e contra-pesos. Governadores e prefeitos têm tomado medidas exemplares de fechamento de locais de grande circulação de pessoas e limpeza do transporte público – muito antes do que fizeram países europeus em relação às curvas locais da crescimento pandemia. Vale ressaltar também a atuação do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que compreende há muito a gravidade da situação.
Resta saber que uso político fará da crise Bolsonaro. Ao que tudo indica, o Presidente já não mais goza entre os liberais do apoio de outrora. Sua base no campo conservador também parece ter ruído. Panelaços e a palavra impeachment já não nos são tão estranhos. Bolsonaro terá de se haver com um país aos frangalhos, em um mundo assolado por mortes, recessão econômica e mais desigual do que nunca.
Nota geral sobre o imaginário da catástrofe
Leio reportagens, ensaios e crônicas diariamente. Poucas me marcaram como a matéria de Evan Osnos sobre como super ricos norte-americanos se preparam para o pior. Em “É o fim do mundo“, o jornalista mostra como estes se previnem contra o cataclismo. Não se sabe se em razão de alguma crise econômica, desastre ambiental, revolta popular ou uma caótica combinação destes fatores. Por isso existem corretores especializados em vender bunkers subterrâneos em desertos nos EUA e no interior da Nova Zelândia. Lá, debaixo da terra, seus clientes teriam autonomia para passar até vinte anos caso as coisas na superfície não estejam boas.
A catástrofe está sendo gerida e comercializada. Business as usual. Ou em bom português, negócios são negócios.
Pronunciamento oficial de Jair Bolsonaro sobre coronavírus em rede nacional
Terça feira a noite (24/03/2020). O presidente tem dificuldade em articular as palavras. Parece preocupado, e ao mesmo tempo sente que tem uma mensagem para passar. Tem ar contrariado. Fala em “pânico e histeria” a serem combatidos. Diz que a parte da grande mídia criou espalharam uma sensação de pavor em relação ao covid-19. Atacou governadores. Voltou a comparar o coronavírus com uma gripezinha. E na contramão do que afirmam especialistas por todo o mundo, exortou as pessoas a continuarem suas atividades regulares: ” “O sustento das famílias deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à normalidade”
Fábio Zuker é jornalista e antropólogo. Mestre em Ciências Sociais pela EHESS-Paris, realiza seu doutorado em Antropologia Social na Universidade de São Paulo, sobre as formas de destruição das formas de vida às margens do Rio Tapajós (Pará). É autor de “Vida e morte de uma Baleia-Minke no interior do Pará e outras histórias da Amazônia” (Publication Studio SP, 2019). Nos próximos meses, lançará seu segundo livro: “Em rota de fuga: ensaios sobre escrita, medo e violência” (Hedra/Quadrado Círculo, no prelo).