Jersey, o paraíso sem medo
A quantia total dos fundos depositados na ilha, até hoje vinculada à Coroa britânica, seria superior a R$ 1,7 trilhão. O montante ainda é pequeno, mas em um contexto de concorrência desenfreada entre os 70 paraísos fiscais recenseados no mundo, Jersey está consolidando sua participação no mercado
Soltando gargalhadas em ritmo irregular, o homem de colarinho branco apaga o cigarro e entra apressadamente no edifício. Sobre o mármore da entrada, cerca de 50 placas douradas identificam os ocupantes desse prédio de escritórios: firmas de contabilidade, agentes de câmbio, advogados de negócios, administradores de sociedades de fachada…
A engenharia da evasão fiscal invadiu todo o litoral de Saint Helier. A capital de Jersey é um amontoado de concreto plantado em alto-mar e protegido por falésias que desaparecem em meio à névoa. Dos 90 mil habitantes da pequena ilha anglo-normanda, mais de 12 mil trabalham no setor das finanças, ou seja, um quarto da população ativa.
Quem esperava que a ofensiva verbal da presidência francesa contra os paraísos fiscais fosse semear o medo entre os interessados precisa rever seus planos. No final da tarde de 15 de outubro, o chefe do Estado francês fez um “discurso impactante e intransigente”, no qual apelou à “eliminação das zonas sombrias” existentes no mundo das finanças internacionais.
No dia seguinte, o Jersey Evening Post, que é o único jornal da ilha, preferiu dedicar a sua manchete principal aos maus resultados obtidos pelos atletas locais nos Jogos da Juventude do Commonwealth, realizados na Índia. Nenhuma palavra sequer a respeito das declarações de Nicolas Sarkozy, apesar do empenho da mídia francesa em sublinhar seu impacto planetário. A atitude seria uma demonstração de inconsciência em relação ao perigo que está à espreita, ou é fruto de uma avaliação lúcida da relação de forças?
Situados a apenas 20 quilômetros da orla francesa, os Estados de Jersey – a denominação oficial desse território é de “formalmente independente”, ainda que vinculado à Coroa britânica – gozam de um produto nacional bruto que, quando cotejado com o número de habitantes, faz deles o terceiro país mais rico do mundo depois do Luxemburgo e das Bermudas. Segundo o analista americano Martin Sullivan, a quantia total dos fundos depositados na ilha seria superior, em 2006, a 500 bilhões de libras (cerca de R$ 1,7 trilhão)1.
Facilidades para os investidores
Vale reconhecer que esse montante é um pouco magro se comparado aos US$ 11,5 trilhões (R$ 26,2 trilhões) que possuem os homens mais ricos do planeta na totalidade dos paraísos fiscais (conhecidos como centros offshore)2. Mas Jersey tem tudo para ver a sua parte do bolo crescer: em meio a um contexto de concorrência desenfreada entre os cerca de 70 paraísos fiscais recenseados no mundo3, está decidida a consolidar sua participação no mercado. Até o ano passado, ela cobrava das companhias estrangeiras uma taxa magnânima de 10% sobre os montantes depositados ali. Mas quando a ilha de Man, uma de suas rivais mais implacáveis, deu mostras de maior ousadia, suprimindo todo imposto sobre riquezas, Jersey decidiu fazer o mesmo. Dessa forma, abriu mão de exigir impostos das multinacionais, cobrando apenas das sociedades locais de serviços financeiros os encargos de 10%.
Na esteira dessa reviravolta, a ilha recuperou sua vantagem na disputa, criando novas facilidades para atrair os hedge funds. Desde 1º de janeiro de 2008, os interessados que dispuserem de um capital para investimento mínimo de US$ 1 milhão de dólares podem especular nos mercados de risco por intermédio de uma shell company (companhia concha) construída sob medida em Jersey, sem autorização nem controle de natureza alguma.
Essa inovação “atende a uma solicitação dos fundos especulativos e de outros gerentes de investimentos alternativos, que desejavam um produto livre de regulamentação”, explicou um responsável da Jersey Finance Limited, o organismo parapúblico encarregado de promover as vantagens oferecidas pela ilha aos investidores.
“O centro de promoção do turismo dos bilionários”, como é chamado, vangloria-se de ter registrado a fundação de 24 shell companies entre fevereiro e outubro de 2008. Por mais que o desmoronamento das bolsas tenha manchado sua reputação e alterado seus rendimentos, os hedge fundsparecem gostar de operar em Jersey.
Entretanto, a especialidade local continua sendo a indústria dos trusts. O trusté uma curiosidade jurídica de uma praticidade infinita, que faz com que todo cidadão possa subtrair sua fortuna pessoal do fisco do seu país – ou do seu cônjuge, ou ainda dos seus herdeiros – registrando-a sob um nome fictício. Formalmente, o dinheiro deixa de pertencer-lhe, mas, na realidade, ele permanece de posse plena e inteira do depositante: são as vantagens da riqueza sem os seus inconvenientes.
Apenas um conjunto de circunstâncias excepcionalmente infelizes pode motivar a “inquisição” a ir ao seu encalço. Esse foi o caso em julho de 2004, quando o divórcio problemático de um jogador de futebol do Arsenal conduziu a justiça britânica a seguir o rastro de movimentações de contas suspeitas efetuadas por intermédio de um trust em Jersey. Um inquérito apurou que este era utilizado para livrar de impostos os prêmios pagos ao técnico do clube e aos seus jogadores, entre os quais a estrela francesa Thierry Henry.
“É raro que um cliente seja pego”, explica um observador local bem informado que pediu para não ter o nome revelado. “As autoridades da ilha se deliciam com armações desse tipo. A vantagem dos trusts é que eles não apenas escapam de quase todo controle, como também das incertezas do mercado: com ou sem crise, sempre há uma grande quantidade de ricos e, portanto, continua grande a procura por um refúgio apto a proteger seu dinheiro.”
Contudo, esse sistema seria sólido o suficiente para sobreviver a uma “reforma profunda do capitalismo”? Será que ele não teme ser destruído pelas canhonadas disparadas pelo primeiro-ministro francês, François Fillon, que, em 14 de outubro, em discurso perante a Assembléia Nacional, trovejava: “Buracos negros tais como os centros offshore não devem mais existir”?
Falsa democracia
Em Jersey, não existe nenhuma oposição estruturada, nem mesmo uma mídia independente. Tampouco existe qualquer movimento sindical, excetuando-se o hospital e o setor dos transportes, onde a única organização de defesa dos assalariados – afiliada ao sindicato britânico Unite – está cambaleante diante dos riscos de sofrer represálias e dee uma legislação digna de uma República das Bananas. A lei não estipula nenhuma duração legal do tempo de trabalho, nem o pagamento de qualquer indenização por demissão. Não existe nenhum tipo de seguro desemprego, enquanto a limitação do direito de greve é draconiana.
“Aqui, nós não vivemos numa democracia”, afirma Nick Le C
ornu, o fundador da “Time4Change” (“Hora de mudar”), um dos raros grupos de oposição da ilha. Ele mesmo – um jurista que atua a serviço de uma sociedade financeira – argumenta: “A inexistência de liberdades sociais e políticas beneficia o sistema financeiro, que capturou o país e redige as leis que nos governam. As pessoas estão com medo. Os habitantes de Jersey são de origem rural e nunca tiveram qualquer consciência de classe nem das práticas sindicais tais como nós as conhecemos na Grã-Bretanha”.
Neil McMurray é um antigo pescador que perdeu uma mão no exercício do ofício. Nas horas vagas, quando não está cuidando dos filhos, ele realiza reportagens animadíssimas que disponibiliza no seu blog. “Quando eu era pescador, trabalhava no mar nove meses por ano e pouco ligava para o que estava acontecendo. Foi quando retornei que passei a ficar atento. Os nossos governantes não prestam contas para ninguém. Os pobres não votam, eles estão desanimados demais, enquanto apenas os ricaços vão às urnas para manter seus semelhantes no poder.
Tudo aqui está organizado pela ganância. Os jovens vão embora, porque fora os bancos não há nada para eles. A monocultura das finanças absorveu tudo: a agricultura, a pesca e até mesmo o turismo. As pessoas estão revoltadas, mas também apavoradas, o que é um grande problema”, analisa.
(Des)Respeito às regras mundiais
Geoff Cook, um antigo diretor financeiro no banco HSBC, que se tornou recentemente o diretor-geral da Jersey Finance Limited, é conhecido por não ter papas na língua. Em 16 de setembro, em entrevista ao Jersey Evening Post, ele comemorou a falência do banco americano Lehmann Brothers, à qual todas as bolsas mundiais estavam reagindo, no mesmo momento, com gritos de horror: “Sob muitos aspectos, foi uma coisa boa. Os jogadores fracos demais vão ter de abandonar a mesa e é precisamente disso que o sistema precisa para se libertar”.
Libertar-se, o sistema financeiro? “Está havendo um mal-entendido”, responde Cook, o chefão das relações públicas da ilha. “Em primeiro lugar, Jersey não é um paraíso fiscal, mas sim um território fiscalmente neutro, o que é muito diferente. Nós já assinamos acordos relativos a intercâmbios de informações com os Estados Unidos, a Alemanha e a Holanda, e estamos nos preparando para fazer o mesmo com os países nórdicos e a França. Isso significa que, caso um dos nossos parceiros suspeitar de que um cidadão esteja aplicando seu dinheiro em Jersey para fraudar o fisco, ele pode nos solicitar informações a respeito daquele caso específico. É claro, o pedido deve ser justificado. Todo cidadão tem direito a ter a sua intimidade preservada, tanto os nossos clientes como os outros. Mas, se nós consideramos que o caso é sério, então nós cooperamos sem problema”.
Afinal, conforme nos disse Neil McMurray, “em Jersey, as finanças e a política pertencem a uma mesma profissão, a uma mesma carreira”.
Aliás, a comunidade internacional já estabeleceu essa distinção. Em 2002, a OCDE (Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico) retirou Jersey – além de 26 outras virtuosas localidades de veraneio, tais como as Bahamas, as ilhas Cook, Gibraltar ou o Panamá – da sua lista de paraísos fiscais, que desde então não comporta mais do que cinco países.
No mesmo ano, o Fundo Monetário Internacional (FMI) publicou um relatório felicitando Jersey pelo seu respeito “praticamente” irrepreensível pelas “normas internacionais em matéria de regulamentação financeira e de luta contra a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo”.
“Apesar disso”, prossegue Geoff Cook, contrariado, “alguns continuam afirmando que, em nossa ilha, as finanças não estão regulamentadas. Ora, isso é absolutamente falso. Nós temos a nossa própria instância de regulamentação, a Jersey Financial Services Commission, que trabalha de maneira plenamente independente.
Permitam-me ser absolutamente categórico: Jersey não encobre nem incentiva as práticas ilegais de evasão fiscal e de lavagem de dinheiro, nem nunca procedeu dessa forma”, salienta.
Um profissional experiente que domina as melhores técnicas de vendas, Frank Walker, não se furta a expor as vantagens atraentes do dinheiro vivo amontoado na ilha. “Valendo-se de um quociente de solvabilidade entre os mais elevados do mundo, os bancos de Jersey se encontram numa posição de força, de forte liquidez. E isso em um momento em que esta última ‘está cruelmente em falta’ no continente europeu”, conclui o dirigente, que espera “que num futuro próximo a França agradeça a Jersey pela sua ‘contribuição preciosa para a saúde econômica global da Europa’.”
O argumento do mealheiro se apóia também no fato de que a economia francesa conta na ilha com um bom número de detentores de capital de primeiro plano. Tais como o banco Société Générale, que todos conhecem sob o nome de SG Private Banking, ou BNP-Paribas, que, segundo Geoff Cook, “efetua transações perfeitamente honestas” a partir do seu estabelecimento situado na Rua Lamotte, em pleno centro de Saint Helier. É verdade que, na filial desse gigante europeu das finanças, ninguém cuida exatamente de negociar empréstimos para a compra de uma cozinha. Segundo a confissão em voz baixa de um assalariado da firma, num bar chique perto da sede, o BNP de Jersey dedica-se sobretudo ao financiamento de projetos petroleiros no Sudeste Asiático – um depoimento que não foi confirmado pelo serviço de imprensa da companhia.
Até mesmo quando os prestadores de serviços da ilha não são franceses, eles não raro cultivam relações frutuosas com Paris. Esse é o caso da Pricewaterhouse Coopers e da Deloitte, dois gigantes multinacionais da auditoria e da contabilidade. Onipresentes na ilha graças ao seu alto grau de perícia em matéria de evasão fiscal, ambas têm como cliente o Estado francês, que lhes confiou os principais mercados de auditoria da Revisão Geral das Políticas Públicas (RGPP).
Além do mais, não se deve julgar apressadamente um sistema fiscal que é de fato pitoresco, mas incentiva o voluntariado. “É verdade”, admite Geoff Cook, “em Jersey, os ricos pagam menos impostos do que os pobres. Mas essa é uma diferença de cultura. No seu país, muitos pensam que os ricos são úteis apenas por causa dos impostos que pagam. Aqui, eles dispõem de outros meios para prestar serviços à coletividade, por exemplo, contribuindo com obras de caridade”.
Perto do poder
Com orgulho, o patrão do marketing de Jersey se vangloria da simplicidade do imposto sobre a renda em sua versão autóctone: 20% para todo mundo, exceto para os mais ricos, que se beneficiam de descontos proporcionais à sua fortuna. “Os correntistas donos das maiores rendas pagam 20% sobre o seu primeiro meio milhão, e depois cada vez menos, por parcelas sucessivas”, explica Cook. Eles podem até mesmo não pagar absolutamente nada.
Com efeito, para drenar uma quantidade ainda maior de bilionários em seu solo que já congrega uma superpopulação deles, o governo de Jersey criou uma categoria fiscal à parte, chamada de “1 (k) 1”, que faz com que esses residentes mimados possam negociar diretamente suas taxas de imposto com as autoridades. A pechincha se conclui em geral com a outorga de um redondo 0%, concedido em troca do pagamento de uma taxa fixa anual de 100 mil libras (cerca de R$ 338 mil), “ou seja, não mais do que o montante dos honorários que eles pagam a cada um dos seus advogados”, comenta Nick Le Cornu. Outra condição do governo, para a grande satisfação de Geoff Cook, estipula que os beneficiários “se comprometem também a servir a terra que os acolhe, efetuando doações para associações”.
Nessas condições, não surpreende que a palavra “regulamentação” provoque risadas de escárnio entre os iniciados. “Pouco importa qual seja a legislação – os contadores e os advogados sempre darão um jeito para contorná-la4”, deixou escapar em 2004 um conselheiro fiscal da Moore Stephens, uma
das maiores companhias de contabilidade do mundo.
“Qualquer um que chegou a trabalhar nesse setor conhece a minúcia com a qual as tropas de juristas dissecam cada nova medida de controle publicada em edital por um governo, com o objetivo de explorar suas falhas e fraquezas”, confirma John Christensen, um profissional que no passado atuou no mundo das finanças de Jersey.
“Mesmo nos casos em que os investigadores encontram a pista de uma transação duvidosa, as sociedades offshore sempre dispõem de uma artimanha para antecipar qualquer iniciativa. No primeiro sinal de alarme, os mandatários redirecionam os fundos para uma nova conta secreta, e o problema está resolvido. É o que nós chamamos de cláusula de fuga. Vale acrescentar que os valores cobrados por esses serviços são obviamente muito elevados. Mas o custo não é nada se comparado com as fortunas que eles permitem construir5”.
Será mesmo real e verdadeira a vontade de “eliminar” Jersey? Terry Le Main, o ministro da Habitação da França, não acredita nisso. Sua própria fortuna não é imensa, mas ele a deve a uma economia bem ancorada na realidade, a do comércio de carros usados. Esse negócio pode não ter a mesma dimensão da engenharia das finanças offshore, mas até que é bastante lucrativo numa ilha de 13 km de comprimento por 7 km de largura, lotada de carrões que chamam a atenção pelas cores berrantes. Esse homem de 70 anos, que já viu muitas coisas acontecerem neste mundo, confia plenamente no futuro das relações entre a França e Jersey: “O que deixa os franceses preocupados não são os paraísos fiscais, mas a impossibilidade de montar um negócio sem serem arruinados pelas taxas. Na França, as empresas são dirigidas pelos sindicatos. Sarkozy quer pôr um fim a essa situação. É por essa razão que nós, no governo, apoiamos totalmente suas reformas”.
*Olivier Muller-Cyran é jornalista