Jerusalém, o erro fundamental
Ao quebrar o consenso internacional em torno do estatuto de Jerusalém, cidade santa para judeus, cristãos e muçulmanos, o presidente Donald Trump conduziu seu país ao isolamento. Uma ampla maioria da Assembleia Geral da ONU criticou a decisão que coloca um obstáculo à paz. No terreno, porém, a política do fato consumado continua
Em 24 de outubro de 1995, o Congresso norte-americano adotou por ampla maioria um texto que determinava a transferência da embaixada dos Estados Unidos em Israel de Tel Aviv para Jerusalém até, o mais tardar, 31 de maio de 1999. Embora essa transferência fosse uma de suas promessas eleitorais durante a campanha de 1992, o presidente Bill Clinton recusou-se a assinar o “Ato da Embaixada de Jerusalém”, apesar de sua entrada em vigor em 8 de novembro de 1995. Os sucessores de Clinton, George W. Bush e Barack Obama, fizeram o mesmo, achando também que os Estados Unidos deveriam aguardar a regulamentação do conflito israelo-palestino e atender ao consenso internacional sobre o estatuto de Jerusalém.
Para evitar que essa lei entrasse em vigor, os presidentes norte-americanos assinavam sua suspensão provisória de semestre em semestre, tal como fez Donald Trump em junho de 2017. Decidindo, em 6 de dezembro último, reconhecer a cidade como capital de Israel, o novo presidente pôs termo a essa abordagem ambígua. Sobretudo, ela contraria a Resolução n. 476 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a qual, em 30 de junho de 1980, declarou nulas e sem efeito todas as medidas adotadas por Israel que “modificam o caráter geográfico, demográfico e histórico da Cidade Santa”. Um mês depois, o Knesset (Parlamento israelense) votou uma “lei fundamental” declarando a cidade, “inteira e unificada, capital de Israel”. O Conselho de Segurança reagiu no 20 de agosto seguinte, votando1 a Resolução n. 478, que pedia aos Estados-membros a retirada de suas missões diplomáticas de Jerusalém. Depois disso, com raríssimas exceções – a Costa Rica e El Salvador conservaram ali uma embaixada até o início dos anos 2000 –, Jerusalém só acolheu alguns consulados: as embaixadas permaneceram em Tel Aviv.
Em Israel, a iniciativa de Donald Trump foi recebida com alegria pelo público2 e com euforia pelo poder. Poucos comentaristas perceberam que a Casa Branca evita resolver a questão da soberania plena e exclusiva de Israel sobre Jerusalém ao deixar claro que seus limites concretos deverão ser definidos no quadro das negociações sobre o estatuto final da cidade. Acrescente-se a isso que, nos termos de sua edificação e da compra do terreno onde possa ser construída, a Embaixada dos Estados Unidos não será transferida tão cedo para Jerusalém. Em diversas ocasiões, o secretário de Estado norte-americano, Rex Tillerson, declarou que essa transferência não ocorrerá antes de dois ou três anos. Isto é, após o fim do mandato de Trump…
Para a Autoridade Palestina, porém, trata-se de uma ruptura da legitimidade internacional sobre a qual ela se apoia desde o início das conversações de paz. Trata-se também de um novo fracasso da estratégia da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) diante de Israel – fracasso cujas causas são múltiplas. Alguns o remontam ao começo do processo de Oslo. Em 29 de julho de 1993, no auge das negociações secretas em Halversbole, na Noruega, Yoel Singer, consultor jurídico israelense, escrevia em seu relatório ao primeiro-ministro Yitzhak Rabin e ao ministro das Relações Exteriores, Shimon Peres, em Jerusalém: “A OLP pretende rejeitar a transferência dos poderes civis até a retirada de Tsahal de Gaza e Jericó. Explicaram-nos que esses poderes devem ser transferidos à autoridade da OLP-Túnis, quando de sua chegada a Gaza, e não a palestinos do interior”.3 Na época, a Autoridade Palestina estava em Túnis e queria se encarregar das negociações, limitando a influência de personalidades políticas que viviam nos territórios. Como consequência dessa rivalidade, a ausência, na equipe de negociadores, de dirigentes do interior (que conheciam melhor a situação local) se fez sentir desde o início das conversações.
Assimetria intrínseca
Quando se discutiu a autonomia de Gaza e Jericó, em meados de outubro de 1993, no Egito (em Taba, ao sul do Sinai), pudemos constatar a frustração de Khalil Tufakji, o cartógrafo palestino de Jerusalém Oriental, que não teve autorização para entrar na sala de conferência. Os dirigentes vindos de Túnis cometiam erro após erro, enganando-se sobre o traçado do limite territorial de Jericó… Valia a pena observar a diferença de logística das equipes israelense e palestina. A primeira dispunha de notebooks de última geração e de pilhas de CDs com simulações preparadas por juristas do mais alto nível. A outra tomava notas em blocos de papel. Só mais tarde a OLP recorreria a juristas internacionais de maior gabarito profissional. Os palestinos não conseguiram quebrar essa assimetria intrínseca, durante as negociações, entre uma organização de libertação e um Estado.
A equipe de Faisal al-Husseini (1940-2001), o chefe que gozava de muita popularidade entre os palestinos do interior, não deixou de advertir contra a multiplicação das colônias israelenses nos territórios ocupados. Ainda assim, não há em nenhum dos acordos assinados pela OLP uma cláusula sequer que estipule expressamente o fim da colonização, no entanto considerada ilegítima à luz do direito internacional e das numerosas resoluções do Conselho de Segurança da ONU, das quais a última (n. 2.334) data de dezembro de 2016.
Os palestinos supõem que dois textos assinados com Israel proíbem a colonização. A declaração de princípios de setembro de 1993 estipula no artigo IV que “as duas partes consideram a Cisjordânia e a Faixa de Gaza uma unidade territorial única, cuja integridade será preservada durante o período de transição”. O Acordo Provisório sobre a Autonomia (às vezes chamado de Oslo 2), de setembro de 1995 (artigo 31-7), reza em seguida: “Nenhuma das duas partes tomará a iniciativa ou adotará medidas para modificar o estatuto da Cisjordânia e da Faixa de Gaza na expectativa dos resultados das negociações sobre o estatuto permanente”.
Todos os governos israelenses rejeitaram esses argumentos palestinos. Em 1996, membros do círculo do líder da OLP, Yasser Arafat, nos respondiam a esse respeito: “Pouco importa. De qualquer maneira, teremos nosso Estado em 1999 e as colônias não estarão mais lá!”. Em maio de 2001, fizemos esta pergunta ao presidente da Autoridade Palestina: “O número de colonos na Cisjordânia aumenta mês a mês… O que vocês acham disso?”. Sua resposta foi lapidar: “Eles irão embora! Sim, irão embora!”.
Arafat pensava poder regular a questão com uma transigência: uma troca de território entre Israel e a Palestina para permitir a instalação de colonos do centro da Cisjordânia em assentamentos situados na linha verde, a fronteira surgida do armistício israelo-jordaniano de 3 de abril de 1949. Após o fracasso das últimas negociações de Taba, em janeiro de 2001, as duas partes entregaram a Miguel Moratinos, o emissário europeu, uma lista de seus acordos e desacordos:4 “A parte israelense declarou não precisar manter assentamentos no Vale do Jordão por motivos de segurança, o que se reflete nos mapas por ela apresentados. Esses mapas se baseavam num conceito demográfico de assentamentos que incorporava 80% dos colonos. A parte israelense traçou um mapa que representava a anexação de 6% dos territórios palestinos. […] O mapa palestino previa a anexação, por Israel, de 3,1% da Cisjordânia, e isso no quadro de uma troca de territórios”. Diferença de 2,9%, apenas…
Com relação a Jerusalém, porém, a dificuldade não foi superada. As partes reconheciam ter concluído acordos parciais a propósito dos novos bairros israelenses da cidade oriental, com os palestinos se dizendo prontos a aceitar a soberania israelense sobre o distrito judaico da Cidade Velha, uma parte do subúrbio armênio e o muro ocidental (ou Muro das Lamentações), cujo comprimento devia ser delimitado. Mas foi impossível chegar a bom termo quanto à Esplanada das Mesquitas, ou Haram al-Sharif (“O Nobre Santuário”), lugar santo para os muçulmanos porque ali estão a Cúpula da Rocha e a Mesquita Al-Aqsa (de onde o profeta Maomé teria empreendido sua viagem noturna para o céu). Os judeus, porém, consideram aquele o sítio onde se erguia o Templo de Jerusalém, o local mais sagrado do judaísmo.

A lei da maioria
Num dia de março de 2002, tarde da noite, após uma longa conversa com Yasser Arafat, um assessor do presidente palestino nos confiou, discretamente e pedindo-nos segredo: “Você sabe… O sonho de Abu Amar [nome de guerra de Arafat] é proclamar a independência da Palestina no Haram al-Sharif. Ele dirá: ‘Não há motivo algum para que um palestino decida voltar a Israel e se torne israelense. Os palestinos virão conosco a fim de construir [nosso] Estado!’”. Em suma, Jerusalém Oriental como capital em troca da renúncia ao direito de retorno dos refugiados à sua região de origem.
Já em 10 de dezembro de 2000, após uma rodada de negociações secretas no hotel David Intercontinental, em Tel Aviv, Yasser Abed Rabbo, o negociador palestino, nos revelava diante da câmera: “Agora, acho que eles querem mesmo chegar a um acordo, talvez por medo de uma vitória da direita nas próximas eleições. Devemos concluí-lo daqui a duas ou três semanas. Pela primeira vez, os israelenses aceitaram o princípio da soberania palestina sobre o Haram al-Sharif”. À tarde, Gilead Sher, principal negociador do primeiro-ministro trabalhista Ehud Barak, punha as coisas em seu devido lugar: “Não sei como os palestinos puderam crer que estivéssemos prontos a renunciar à soberania sobre o Monte do Templo”. Shlomo Ben-Ami, ministro das Relações Exteriores israelense, não estava autorizado a fazer essa concessão fundamental e, ao longo de todas as negociações seguintes, os palestinos esperaram – em vão – que ela fosse repetida pela delegação israelense.5
A reunião de Camp David, em julho de 2000, destinada a promover um acordo de paz definitivo entre israelenses e palestinos, havia fracassado na questão do lugar santo. Para o governo israelense, estava fora de questão aceitar a soberania palestina sobre a Esplanada das Mesquitas. Ehud Barak fora categórico: “Não conheço um chefe de governo que aceite assinar a transferência da soberania sobre o Primeiro e o Segundo Templo [a Esplanada das Mesquitas], que é a base do sionismo. […] A soberania palestina sobre a Cidade Velha seria tão dura [de suportar] quanto um luto, mas, se não nos separarmos dos palestinos, se não pusermos fim ao conflito, mergulharemos na tragédia”.6
Em agosto de 2003, Yasser Arafat autorizou vários de seus principais consultores, liderados por Yasser Abed Rabbo, a negociar com uma delegação da oposição de esquerda israelense presidida por Yossi Beilin e Amnon Lipkin Shahak, ex-chefe do Estado-Maior. Chegaram a um acordo em dezembro do mesmo ano. Chamado “Iniciativa de Genebra”, esse acordo baseou-se no princípio do trade off (permuta), recusado por Israel. Os palestinos renunciariam ao direito de voltar e receberiam em troca a soberania sobre o Haram al-Sharif/Monte do Templo. Ariel Sharon, o primeiro-ministro, chamou de “traidores” os signatários israelenses, enquanto Arafat, de seu lado, felicitou os negociadores de um texto sem nenhum alcance prático.
Eleito chefe da autoridade autônoma da OLP após o desaparecimento de Arafat, em novembro de 2004, Mahmoud Abbas só pôde dar conta, bem ou mal, do status quo. Recuperou sua polícia e seus serviços de segurança, destruídos pelo esmagamento da Segunda Intifada, restabeleceu a coordenação securitária com o Exército e o Shin Beth (serviço de segurança interna israelense) e obteve alguns êxitos diplomáticos, entre os quais a admissão na Unesco como Estado (em 2011). No ano seguinte, a Assembleia Geral da ONU concedia à Palestina o estatuto de Estado observador, não membro.
No entanto, Israel mudou muito no curso dos anos. Mahmoud Abbas enfrenta um dos governos mais direitistas da história do país, no qual os elementos religiosos e messiânicos dão o tom. No plano interno, o governo israelense, chefiado por Benjamin Netanyahu, considera a democracia a lei da maioria, com proteções mínimas às minorias. Pretende definir Israel como um Estado judaico e democrático – nessa ordem –, onde só os judeus teriam plenos direitos. Em março de 2016, 79% dos judeus israelenses interrogados numa pesquisa eram favoráveis a “um tratamento preferencial para os judeus”. Ou seja, uma forma de discriminação contra os não judeus.7 Portanto, a perspectiva da solução dos dois Estados não passa de uma miragem.
A ocupação da Cisjordânia vai se eternizando, com os quase 400 mil israelenses que habitam hoje as colônias situadas em 60% do território, anexadas de fato – sem contar os 200 mil residentes nos novos bairros judaicos de Jerusalém. Compare-se esse número com os 151.200 israelenses que moravam nas colônias da Cisjordânia e Gaza em 1996. A esquerda e as ONGs israelenses que ousam criticar e combater a ocupação são o tempo todo qualificadas, pelo poder, de antipatrióticas ou mesmo de traidoras. Leis são votadas para restringir suas atividades.8
Tudo isso leva Matti Steinberg, ex-analista principal do Shin Beth,9 a afirmar: “O status quo não é estável, mas evolui na direção que leva inexoravelmente as partes para as areias movediças de uma realidade binacional onde Israel, dominador, tentará impor sua vontade aos palestinos apinhados em enclaves territoriais”.10
*Charles Enderlin é jornalista e autor, entre outras obras, de Au nom du temple. Israël et l’irrésistible ascension du messianisme juif (1967-2013) [Em nome do Templo. Israel e a irresistível ascensão do messianismo judaico (1967-2013)], Seuil, Paris, 2013.
BOX- Sob a ótica do direito internacional
Por Akram Belkaïd*
Em 4 de julho de 1967, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma resolução (n. 2.253) que invalidava “as medidas tomadas por Israel a fim de modificar o estatuto da cidade de Jerusalém”. Reiterou essa posição em 14 de julho, com a Resolução n. 2.254. De seu lado, o Conselho de Segurança das Nações Unidas se pronunciou várias vezes sobre esse tema. Em 21 de maio de 1968, a Resolução n. 252 considerou que “todas as medidas e disposições legislativas ou administrativas tomadas por Israel, inclusive a desapropriação de terras e bens imobiliários, que tendem a modificar o estatuto jurídico de Jerusalém são inválidas, não podendo alterar esse estatuto”. Essa posição foi repetida pelas resoluções n. 267 (3 jul. 1969), 271 (15 set. 1969) e 298 (25 set. 1971). Em 1º de março de 1989, a Resolução n. 465 considerou que “todas as medidas tomadas por Israel a fim de modificar o caráter físico, a composição demográfica, a estrutura institucional ou o estatuto dos territórios palestinos e de outros territórios árabes ocupados desde 1967, inclusive Jerusalém, ou partes destes, não têm nenhuma validade jurídica. A política e as práticas de Israel que consistem em instalar elementos de sua população e novos imigrantes nesses territórios constituem violação flagrante da Convenção de Genebra [12 ago. 1949], relativa à proteção das pessoas civis em tempos de guerra”.
Em 30 de junho de 1980, o Conselho de Segurança reafirmou, na Resolução n. 476, “a necessidade imperiosa de pôr fim à ocupação prolongada dos territórios árabes ocupados por Israel desde 1967, inclusive Jerusalém”, e concluiu: “Todas as medidas que modificaram o caráter geográfico, demográfico e histórico do estatuto da Cidade Santa de Jerusalém são nulas e sem efeito”. Em 20 de agosto de 1980, a Resolução n. 478 decidiu “não reconhecer a ‘lei fundamental’ e as outras ações de Israel que, em virtude dessa lei, procuram modificar o caráter e o estatuto de Jerusalém; e pede […] aos Estados que instalaram missões diplomáticas em Jerusalém que as retirem da Cidade Santa”.
Enfim, em 23 de dezembro de 2016, o Conselho de Segurança reafirmou que “a criação, por Israel, de colônias de povoamento nos territórios palestinos ocupados desde 1967, inclusive Jerusalém Oriental, não tem nenhuma base jurídica, constituindo uma violação flagrante do direito e um grande obstáculo à solução dos dois Estados, bem como à instauração de uma paz global, justa e duradoura”.