Jornalismo sistêmico no século da fragmentação
Se queremos contribuir para as mudanças necessárias, precisamos procurar por causas profundas e estabelecer conexões entre os problemas. Mas como entender o que é prioritário no século 21?
Estamos a caminho do primeiro trilionário da história. Dos 150 maiores patrimônios do mundo, 67 pertencem a pessoas e empresas, e não a países. Um punhado de 2.668 bilionários concentra US$ 13 trilhões, quase equivalente ao PIB da China – com sua população de 1,4 bilhão de pessoas. E, no entanto, o jornalismo cobre o século 21 como se fosse o século 20.
A humanidade jamais foi tão global quanto é hoje:
– estamos na era das mudanças climáticas
– temos um destino em comum a discutir
– nunca um único sistema econômico operou sem rivais sobre virtualmente todos os cantos do mundo
– atravessamos uma globalização que abriu guerra contra as culturas locais, o pensamento singular, os outros mundos possíveis
– vivemos problemas semelhantes, causados pelo mesmo punhado de forças econômicas, muito embora o grau do drama varie de acordo com raça, classe, gênero, território.
E, no entanto, não temos qualquer coesão social. Justamente quando ser sistêmico é urgente, o jornalismo segue preso à armadilha da fragmentação criada pela viralização à base de piadas e apelações. Criada pela longa construção neoliberal de que tudo é individual e isolado.
Tentando sobreviver como um peixe num mar de mentiras e deturpações, o jornalismo se faz irrelevante. Resgatar e valorizar um olhar amplo sobre os problemas do nosso século é fundamental não apenas para o jornalismo, como para mover as agendas políticas, econômicas, sociais e ambientais necessárias para esse tempo histórico.
Hoje, na maior parte do tempo, investigamos o cimento, e ignoramos os tijolos, as vigas e o telhado. O jornalismo precisa ser sistêmico[1]. Ou seja, deve buscar compreender o sistema capitalista no qual está inserido. O jornalismo sistêmico (ou estrutural) busca as conexões entre os vários elementos que conformam o sistema: economia, política, ambiente, cultura, sociedade. Trabalha para explicitar as interdependências entre todos esses elementos. Concentra-se em entender as causas profundas dos problemas, e não apenas as consequências ou as explicações superficiais.
As corporações são o foco
Em 30 de maio de 2020, um foguete da SpaceX partiu de Cabo Canaveral, na Flórida. Foi a primeira vez que uma corporação privada enviou astronautas ao espaço. Assim como no século 20, voar para fora da Terra serve como fronteira simbólica a povoar o imaginário.
O voo da empresa de Elon Musk é um dos marcos de que estamos em uma nova era. A era na qual empresas privadas têm tanto ou mais poder quanto o Estado: o fato de que a Nasa, poucos meses depois, tenha firmado um contrato bilionário para que um megafoguete da SpaceX leve astronautas ao espaço é mais um sinal de como privado e público se misturaram – sendo mais específico, de como o público se tornou submisso ao privado.
O poder de inovação está nas grandes empresas, que, praticamente livres de amarras, conseguem criar com muito mais rapidez. E aqui, como de costume, é preciso fazer jus ao pensador Milton Santos, que nos anos 80 e 90 já assinalava que a tecnologia havia se concentrado, e agora estava a serviço das fortunas, e não das necessidades humanas.
As corporações são a grande força do século 21. Se vivemos uma pandemia, não há dúvida de que grandes empresas do sistema alimentar ajudaram a criar as condições para o surgimento e o alastramento do vírus. As fabricantes de ultraprocessados são vetores de doenças – e, no Brasil, causadoras de ao menos 57 mil mortes anuais. Empresas das mais diversas áreas são causadoras de problemas ambientais. Deveríamos ter tantos jornalistas investigando iFood, Amaggi, Carrefour e Volkswagen quanto jornalistas investigando Arthur Lira, Rodrigo Pacheco e o clã Bolsonaro.
Jornalismo industrial na era do capital financeiro?
O eixo do capitalismo mudou de lugar. E isso muda tudo. O capital produtivo (as fábricas e o comércio, por exemplo) já não é o que estrutura o sistema. A equação se inverteu: não é o capital financeiro que dá apoio ao capital produtivo na forma de empréstimos e investimentos. Mas o capital produtivo que serve como mero balcão, espaço de passagem para o capital financeiro (não por acaso também conhecido pelos apelidos de “improdutivo” ou “fictício”).
Esse novo eixo altera todas as nossas relações sociais. Pela primeira vez na história do capitalismo, o trabalho já não é o espaço de produção da acumulação – os trabalhadores são irrelevantes e, portanto, são irrelevantes os direitos laborais, a capacidade de consumo, a distribuição dos lucros.
A reforma trabalhista de 2017 é um momento de sinceridade extrema: distribuir um mínimo de capital pela via dos salários tornou-se desnecessário à reprodução desse mesmo capital. A cada dia surge uma nova plataforma, alavancada pelo capital financeiro, com a motivação de uberizar mais uma área do trabalho.
Tanto faz se estudamos ou não, se temos emprego ou não, se compramos ou não, se estamos felizes ou não: a realização capitalista abraçou os algoritmos e se descolou da realização humana. Se o economista Ladislau Dowbor prega a necessidade de resgatar a função social da economia, o jornalismo tem estado aquém dessa tarefa – na verdade, faz muito mais o contrário, reforçando a primazia do mercado financeiro por sobre a Natureza e a vida humana.
Para citar um exemplo corriqueiro, cobrimos deputados e senadores como se fossem atores avulsos, ignorando que, hoje, a maioria dos mandatos parlamentares está a serviço do poder privado, e não de qualquer poder privado: estamos falando de corporações.
Apelando a outra metáfora possível, estamos cobrindo as ondas, que são importantes porque produzem estragos e mudanças. Mas são apenas a parte mais visível de um imenso oceano. Em certa medida, é compreensível: às ondas chegamos com pouco dinheiro e por terrenos conhecidos. Além disso, não ver o oceano reflete uma decisão política – a criminalização das instituições públicas é expressão dessa mesma expansão corporativa, em conflito cada vez mais constante e profundo com a democracia e seus mecanismos. Chegar às profundezas custa caríssimo e nos leva a espaços inexplorados, por onde de fato podemos nos perder. Esse é o desafio: como entender o que é prioritário no século 21?
Pensar sistemicamente
No geral, não sou favorável à ideia de adjetivar o jornalismo. Jornalismo investigativo, por exemplo, seria em tese uma redundância, porque todo jornalismo investiga, mas se tornou necessário devido ao uso inadequado da profissão para produzir cacos de informação que não têm nada de jornalístico ou que são publicidade disfarçada de jornalismo.
Na mesma toada, o jornalismo sistêmico demarca uma oposição ao jornalismo fragmentário, neoliberal e descontextualizado. Ao jornalismo que enfatiza o individualismo e as “soluções” que passam pelo consumo. Ao jornalismo que olha a parte e não o todo. Ao jornalismo que fecha os olhos às estruturas que têm constantemente oprimido mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTQIA+, pobres, indígenas e moradores de regiões com menos dinheiro.
Isso passa por repensar nossos focos de investigação e os caminhos que percorremos. Longe de ser um ponto de chegada, esse texto é um convite a repensarmos coletivamente o que precisamos fazer melhor para dar conta dos desafios do século 21.
Um exemplo. No segundo semestre de 2021, nós notamos, no Joio, que havia uma movimentação atípica de dinheiro em instrumentos do mercado financeiro ligados ao agronegócio. Por si, seria uma notícia. Mas, pensando sistemicamente, decidimos dar alguns passos além. Queríamos entender o porquê, e de onde vinha esse dinheiro.
Ao final, notamos que novas leis sancionadas pelo governo Bolsonaro explicavam esse volume de recursos. Mas não só: havia uma coincidência entre picos e os dias de notícias desfavoráveis ao meio ambiente e aos povos indígenas, numa sinalização de que o mercado financeiro estava eufórico com o sinal verde do presidente a crimes como grilagem e desmatamento.
Em outra frente, investigávamos a guerra cultural que busca legitimar o agronegócio e ocultar os problemas criados por esse setor. De novo, ao pensar sistemicamente, entendemos que as duas frentes caminham juntas: o boom de instrumentos do mercado financeiro depende da legitimação de um setor que responde por desmatamento, crimes fundiários e trabalho escravo.
Por exemplo, criar a ilusão de que é o agro quem alimenta o mundo oferece legitimação para a atração de investimentos de pessoas físicas e um discurso de aceitação social para bilionários fundos de investimento. Em complemento a isso, é necessária a criação de inimigos contra quem recaem todos os problemas – basicamente, qualquer força econômica ou social que imponha críticas ao agronegócio.
Dando mais um passo, essa história nos evocou a perseguição às bruxas na Europa no início da Idade Moderna. Lá, as bruxas foram o instrumento de guerra cultural que criou legitimação para a privatização dos campos, especialmente na Inglaterra, condição para a acumulação de dinheiro – exatamente como se está dando no Brasil.
Se tivéssemos parado na primeira reportagem, sobre o boom de investimentos stricto sensu, não teríamos errado. Mas não teríamos contado a história mais importante. Porque a consequência de retratar esse processo de casamento entre agro e mercado financeiro é concluir que, nas condições atuais, nada pode parar a máquina de destruição e privatização das florestas públicas.
Portanto, a agenda brasileira de combate às mudanças climáticas, e por consequência a agenda global, têm um obstáculo gigantesco diante de si. Se nós, enquanto sociedade, não entendermos e inventarmos maneiras de bloquear essa máquina, evitar os cenários mais trágicos relacionados ao aumento das temperaturas globais será uma tarefa praticamente inviável.
Recuperar os sentidos
Os jornalistas estamos, como todos, bombardeados por informações. Já não nos é fácil fazer o que fazíamos no passado: hierarquizar e editar o que recebemos dentro de uma ordem lógica, apresentada de forma coerente a leitores, ouvintes e espectadores. Estamos lidando com uma quantidade de informações milhões de vezes maior, e renovada a cada segundo. Como diz o filósofo português João Pedro Cachopo, estamos tomados pela torção dos sentidos.
Então, como podemos abandonar a ideia de que tudo é igualmente relevante, de que devemos estar online 24 horas por dia, sete dias por semana? É uma tarefa difícil. O mundo pede urgência, entender o mundo pede calma. Mas, se formos sistêmicos, talvez a tarefa se torne viável. Recuperar algumas perguntas simples pode nos ajudar.
– O que eu estou cobrindo é realmente relevante? E relevante para quem?
– Será que eu estou olhando para o problema como um todo, ou para uma fatia do problema?
– O que estou investigando ajuda a entender as estruturas do problema?
– Será que eu cheguei ao teto, ou seja, expus a camada de poder onde realmente se tomam as decisões?
– Estou atrás dessa história por audiência ou por interesse público?
Precisamos entender quais são os sentidos do jornalismo. E como podemos ajudar a criar uma vida que faça sentido para a humanidade.
As máquinas que movem o dinheiro são robôs
Precisamos voltar a Elon Musk porque é um caso emblemático. Mesmo vendendo muito menos carros que General Motors e Ford, a Tesla tem um valor de mercado muito maior – e cada vez mais descolado das concorrentes. A aposta de que a empresa será líder na venda de carros elétricos é a explicação superficial. Uma demonstração, entre tantas, de que no século 21 criar bolhas especulativas pode valer mais do que fabricar objetos. O jornalismo brasileiro poderia ter aprendido a lição quando ficou claro que a especialidade de Eike Batista era comercializar ilusões: imagens.
Além disso, Musk e alguns outros bilionários têm buscado criar legitimação para a ideia de que a desigualdade social é “natural” e que, em caso de catástrofe global, existe um grupo seleto que tem o direito à salvação. Como analisa o economista francês Thomas Piketty, diante de uma desigualdade sem precedentes, o capitalismo retoma as linhas de argumentação do século 19, que tratavam a propriedade privada como algo absoluto e incontestável – a escravidão, inclusive.
A facilidade com que Musk transformou, em poucos dias, o Twitter em um feudo autocrático dominado por bizarrices e exposições gratuitas de poder macho, sem qualquer contrapeso, é uma demonstração emblemática do desarranjo de forças do século 21.
Questionar as estruturas
O jornalismo hegemônico tem partido do pressuposto de que o mundo deve seguir como está. No máximo, são necessários alguns pequenos reparos – todos para lidar com casos isolados que ocorrem diariamente aos milhares ao redor do mundo, mas isolados. A visão de que não devemos questionar as estruturas naturaliza uma série de opressões.[2]
O jornalismo sistêmico se preocupa em entender não apenas as leis e as regras, mas em entender
– como e por que foram criadas
– em qual contexto político, econômico e social
– mobilizadas por quais forças.
Explorar as diferenças entre legitimidade e legalidade é fundamental. A Constituição chilena é um ótimo exemplo: ela é legal, não há dúvidas, mas foi construída pela ditadura de Augusto Pinochet. Ao considerar legítimo esse marco legal, o jornalismo empresta força a opressões hediondas que têm marcado a vida de indígenas, mulheres e pessoas pobres em geral naquele país.
Abandonar o negacionismo neoliberal
A escassez do uso da expressão “poder privado”, em contraposição à abundância da utilização da expressão “poder público” como sinônimo de problema, é um indicador de onde está posta a atenção do jornalismo. Depois de tantas décadas de propaganda, estamos tomados por um negacionismo neoliberal, que se recusa a tratar como sensatas as correntes que cobram uma mudança drástica de rumos. Precisamos desnaturalizar e pensar criticamente o glossário que nos foi imposto pelo mercado – vide o uso banalizado da palavra “eficiência” como sinônimo de privado.
Como atenta o economista Branko Milanović, estamos na era do capitalismo sem rivais: pela primeira vez, um único sistema político-econômico abrange virtualmente toda a face da Terra. O muro de Berlim caiu há mais de três décadas e, no entanto, seguimos a fazer jornalismo como se estivéssemos olhando as estruturas de poder do século 20.
Como repórter que investiga o poder privado, escuto com frequência a ideia de que “se as corporações são parte do problema, elas também podem ser parte da solução”. Será? O jornalismo, para ser sistêmico, precisa entender as armadilhas e os lugares comuns criados ao longo de cinquenta anos de neoliberalismo.
A indústria de alimentos, por exemplo, passou de virtude a problema. A industrialização de alimentos teve um papel importante na História da humanidade. Ao aumentar a durabilidade de certos alimentos, ajudou a assegurar fornecimento para uma população urbana cada vez maior. Não se trata de ser crítico à industrialização, mas de compreender que as corporações do setor passaram a fabricar formulações tecnológicas, e não mais alimentos. Os ultraprocessados são engenharias que têm como único pressuposto a obtenção do maior lucro possível, o que via de regra tem significado um grave problema de saúde. São uma mistura de açúcar, sal, gorduras e farinhas. Não há diferença substancial entre o Nescau Prontinho e um outro achocolatado qualquer, salvo os aditivos que conferem um sabor “singular” ao produto da Nestlé e a publicidade que cria a margem para impor um preço mais alto. São ilusões às quais nós, enquanto jornalistas, estamos também presos.
O fato de as doenças crônicas serem, hoje, a maior causa de mortes no mundo, e particularmente em países como o Brasil, já é evidência suficiente de que a situação mudou, e o jornalismo precisa mudar para dar conta disso. Em poucas palavras, corporações das mais diferentes áreas têm representado um problema grave de saúde.
Pudera: as corporações vivem para entregar aos acionistas lucros infinitos, num mundo cujos recursos são finitos e estão em disputa. Portanto, não podem ser parte da solução. O papel das empresas é produzir lucro. O que precisa existir são mecanismos de limitação, redistribuição e rastreamento desses lucros.
O capital mudou de figura nas últimas décadas. Hoje,
– circula com muito mais facilidade em direção a paraísos fiscais;
– está muito mais concentrado, já que sobraram poucas empresas, que por sua vez têm muito mais poder para moldar governos e leis a seus desejos;
– e essas poucas empresas são globais, e não mais locais ou nacionais, o que cria uma série de desafios e necessidades de repactuação social.
O mundo tem ao menos US$ 600 trilhões em ativos financeiros em circulação – seis vezes maior que o PIB de todos os países somados – e esse número certamente estará defasado, e muito, quando esse texto for publicado. Isso significa que máquinas, aviões, automóveis, alimentos, computadores, celulares e companhia representam uma parcela pequena do que se movimenta na economia. Em muitos casos, as grandes empresas se tornaram apenas uma fachada – um pretexto para a produção de lucros na forma de títulos, letras, ações e uma série de instrumentos incompreensíveis para a maioria da humanidade.
Olhar o Estado para além do Estado
O Estado segue a ser importante porque guia boa parte dos temas que afetam o cotidiano das pessoas: transporte, saúde, educação, trabalho, tributação. Além disso, como demonstra o bolsonarismo, o Estado, quando nas mãos erradas, tem uma enorme capacidade de produzir estragos. Porém, esse mesmo Estado é, de maneira cada vez mais explícita, um agente a serviço do poder privado.
A facilidade de empresas privadas para povoar ou minar o Ministério do Meio Ambiente, o Ibama, a Funai e o Incra; a apropriação de recursos da alimentação escolar por grandes empresas na cidade de São Paulo; a compra de parques públicos e nomes de estações de metrô a preço de banana; e as parcerias público-privadas por tíquetes de alimentação e doações de ultraprocessados em plena pandemia são alguns exemplos recentes de uma voracidade absoluta do poder privado em ocupar todos os espaços.
No orçamento da União, o que sobra para serviços públicos são, cada vez mais, migalhas, reminiscências daquilo que seria necessário. E nem isso fica em pé: torna-se alvo da voracidade do Centrão na força de Orçamento secreto, emendas, estatais, transferindo a interesses privados o pouco que restou de dinheiro público.
E, no entanto, enquanto jornalistas, temos acompanhado todos esses assuntos como se fossem casos isolados. São, antes, emblemas de como as corporações precisam de qualquer vintém para promover lucros maiores aos acionistas a cada trimestre, às custas do que quer que seja – nesse momento, a vida humana é obstáculo à produção desses lucros.
Compreender para explicar
O mundo está tomado por um enorme mal-estar. Nos Estados Unidos, filas quilométricas se formam em bancos de alimentos. Na Europa, a pobreza avança, e as favelas ressurgem. Na América Latina, o otimismo com o século 21 já fez água há algum tempo, e agora o que resta são fome e desolação. O fascismo cresce no mundo inteiro. Bolsonaro não foi apenas um chefe de Estado particularmente cruel: é a expressão de um momento de crise do capitalismo, no qual se demanda um processo de acumulação tão duro que precisa de um ser desprovido de qualquer empatia.
Explicar os resultados das eleições de 2022 olhando para os fatores internos é importante. Erros de Lula e do PT, o caminhão de dinheiro despejado por Bolsonaro na economia em pleno ano eleitoral e as correntes de WhatsApp são aspectos relevantes. Mas os fatores internos não explicam tudo. Jeff Bezos, Elon Musk e Mark Zuckerberg são tão centrais para a disputa brasileira quanto Ciro Gomes, Simone Tebet e Geraldo Alckmin. Em certa medida, são até mais relevantes.
Para citar apenas um entre tantos fatores, os maiores bilionários do século 21 estão remoldando as economias globais. A Uber desafiou as leis municipais de transporte mundo afora. A Amazon e a Uber desafiam as leis trabalhistas, alastrando a pobreza por onde passam. O Facebook, o Instagram e o WhatsApp, todos pertencentes a Zuckerberg, mudaram a maneira como as pessoas recebem e assimilam informações.
Para usar as palavras de Milton Santos, estamos tomados por uma certa confusão dos espíritos. As pessoas sentem raiva. Sentem que estão empobrecendo. Que não têm oportunidades. Que a vida não vale a pena. Mas não é fácil explicar os porquês. O papel do jornalismo sistêmico é explicitar esse processo.
Mas, para isso, precisamos antes entendê-lo. A velha máxima do jornalismo – “siga o dinheiro” – é mais atual do que nunca. O problema é que muitas vezes estamos seguindo o dinheiro pequeno. Precisamos entender como o orçamento secreto se liga ao mercado financeiro. Como a Emenda do Teto de Gastos e a revogação dos direitos trabalhistas transferiram dinheiro dos pobres para os ricos.
Em outras palavras, se o dinheiro não está circulando na economia real, em algum lugar há de estar. Mas o capital financeiro é tão sofisticado e incompreensível que perdemos a capacidade de compreender até mesmo essa regra tão básica: o dinheiro não desaparece, e sim muda de mãos. Ocupar-se dos grandes fluxos financeiros será fundamental se quisermos frear o crescimento do fascismo, do desalento e da pobreza no século 21. Porém, nenhuma agenda política se move se não sabemos para quê, para quem, e como. Essa é a nossa tarefa mais difícil. Eu, mesmo trabalhando há anos com investigação do poder privado, não me sinto capacitado para compreender algumas das regras que regem o mercado financeiro. E, no entanto, uma vez que tenhamos decifrado esses mecanismos, tudo se tornará mais rápido.
Os crimes não são casos isolados
Joesley Batista tem acesso ao presidente da República, na madrugada de Brasília, e mantém uma conversa “nada republicana”, para usar um eufemismo. A Samarco e a Vale se veem envolvidas em rompimentos de barragens e crimes ambientais. A Rumo, maior transportadora ferroviária do Brasil, é processada por trabalho escravo. Praticamente todas as grandes empresas do agronegócio têm condenações por desmatamento. Corporações cometem crimes diariamente. E, no entanto, o jornalismo trata todos esses casos como isolados.
A JBS não se viu afetada pelo passeio noturno de Joesley: de lá para cá, tornou-se a maior empresa alimentícia do mundo em faturamento. A Samarco e a Vale seguem operando. A Rumo bate recordes de lucro e recebe aval da direção do Ibama, que ignora sete pareceres contrários da área técnica, para construir uma ferrovia privada que corta o Mato Grosso e afeta duas terras indígenas. E, no entanto, o jornalismo do século 21 trata todos esses casos como isolados.
Cometer crimes, infrações e fraudes não é obra de diretores excepcionalmente corruptos: é parte fundamental do jogo. É estrutural. É, para usar o jargão corporativo, competitividade: quem não dribla as leis está fadado a perder a disputa por acionistas e investimentos.
Recuperar outros atores
Sindicatos, associações de moradores, entidades de classe, coletivos e movimentos sociais foram invisibilizados nas últimas décadas. Até há poucos anos, seria impensável discutir mudanças nas regras trabalhistas sem escutar as centrais sindicais. E, porém, hoje isso soa natural. A ideia tão bem construída de que não há divergência de interesses entre corporações e a sociedade faz com que sejam elas a supostamente evocar a voz da população.
A tomada de poder no Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) de São Paulo pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) e pela Sociedade Rural Brasileira (SRB), ocupando assentos que caberiam à sociedade, é um caso emblemático de silenciamento das vozes sociais.
É verdade que, em parte, o enfraquecimento das vozes contrárias diz respeito ao triunfo das corporações, num desequilíbrio de forças que se tornou absoluto. Sindicatos perderam potência para fazer um contrapeso às grandes empresas. Mas também é verdade que as corporações do jornalismo contribuíram para deslegitimar essas vozes, e silenciá-las. Hoje, uma nova leva de pessoas, organizações e ideias cobra espaço, oferecendo outros horizontes para o mundo. O jornalismo sistêmico deve ajudar a fazer prevalecer o interesse público no debate sobre interesses privados – e isso passa por abandonar falsas simetrias.
Desafios de distribuição
Fazer jornalismo sistêmico no século da fragmentação impõe óbvios limites. Textos longos têm menos chance de chamar a atenção das pessoas, e por vezes representam uma limitação em termos de audiência.
A própria estrutura de distribuição de conteúdo cria um imenso desafio. As redes sociais afunilaram o espaço para o diálogo – de certa forma, capturaram a internet. Convidam ao imediatismo, à fragmentação, ao isolamento.
O jornalismo tem sido enfraquecido constantemente por essa estrutura. Abandonar as redes sociais não parece viável num horizonte de curto prazo, mas criar novos ecossistemas soa fundamental.
Ao mesmo tempo, reconhecendo a capacidade limitada de o jornalismo em profundidade dialogar com setores amplos da população, é importante imaginar um horizonte de distribuição e debate que envolva outras organizações da sociedade.
Em resumo, se queremos superar as distopias, precisamos, enquanto jornalistas, renaturalizar as utopias. Elas não são motivo para vergonha: são o caminho necessário.
João Peres é editor de O Joio e o Trigo.
[1] Em uma consulta ao ChatGPT (sim, ele), a expressão jornalismo sistêmico é atribuída originalmente ao jornalista alemão Wolf Schneider, no livro Die Wahrheit und ihr Preis (“A Verdade e seu Preço”, em tradução livre). Infelizmente, não pude ler o trabalho original de Schneider.
[2] Recomendo a leitura do livro A pauta é uma arma de combate: Subjetividade, prática reflexiva e posicionamento para superar um jornalismo que desumaniza, de Fabiana Moraes, com quem dialoguei enquanto redigia esse texto.