Justiça ambiental ameaçada
Enquanto os EUA naufragam na política suicida de Trump, a crise climática se aprofunda aumentando as ameaças de calor extremo, do nível do mar e chuvas catastróficas, trazendo perigo para a segurança das pessoas
Donald Trump e seus assessores estão desenvolvendo uma intensa campanha para desregulamentar medidas de segurança ambiental e eliminar, das políticas públicas, o conceito de justiça ambiental. Isso aumentará o impacto de poluentes, principalmente sobre os menos favorecidos.
Tudo incompreensivelmente anunciado como celebração: “Hoje é o dia de desregulamentação mais importante da história norte-americana”, disse Lee Zeldin, administrador da Agência de Proteção Ambiental (EPA).
A agência anunciou mais de 30 medidas de desregulamentação, em uma sucessão de comunicados de imprensa separados. Além disso, o governo colocou em licença 160 funcionários da EPA que trabalham com justiça ambiental. Rescindiu ordens executivas de Joe Biden que priorizava esse trabalho e pressionou para encerrar, “na extensão máxima permitida por lei”, todos os escritórios e cargos de justiça ambiental até 21 de março.
Atacar a normativa ambiental e o conceito de justiça ambiental significa aumentar os impactos ambientais e bloquear a amplitude de direitos fundamentais que a legislação de proteção da vida deve oferecer.
Estudos globais demonstram que componentes raciais e de status econômico são elementos determinantes em áreas de maior risco, vulneráveis a eventos climáticos. Já na década de 80, estudos do General Accounting Office (1983) e da United Church of Christ (1987) sugeriam que comunidades predominantemente minoritárias e de baixa renda estavam sendo expostas a níveis desproporcionalmente mais altos de riscos ambientais.

É evidente que populações economicamente desfavorecidas convivem amiúde com exposições ao risco bem mais acentuadas. São muitos os exemplos no Brasil: o caso de Vila Parisi, em Cubatão (SP); da Cidade dos Meninos, no Rio de Janeiro; o entorno dos polos industriais como o de Capuava, na região do ABC paulista; e mais recentemente impactos climáticos com deslizamento de encostas, como ocorreu na cidade paulista de São Sebastião.
Os mais pobres são os mais vulneráveis à poluição e aos eventos climáticos extremos. Com menos recursos, seu acesso a territórios seguros, boa nutrição, moradias de qualidade e recursos médicos é mais limitado.
Avaliar o contexto de vulnerabilidade social e ambiental permite diagnósticos mais próximos da realidade tanto para adaptação climática como para salubridade. Ao considerar mais determinantes, com visão sinérgica e integrada, o setor público pode responder com maior eficiência e ir além da abordagem permitida por legislações específicas.
A proteção constitucional em muitos países abriga o conceito de que todos devem ter o mesmo nível de proteção à saúde e contra riscos ambientais. Há quase meio século, a Conferência Internacional de Alma Ata, realizada em 1978, pela OMS e Unicef, representou um marco de influência nos debates sobre os rumos das políticas de saúde no mundo, reafirmando a saúde como direito humano fundamental.
O ataque à política de justiça ambiental demonstra que Trump está na contramão do processo civilizatório. Desde o início de sua gestão, como afirma o Le Monde, o noticiário americano é “tomado por uma fúria extravagante e todas as manhãs surge a avalanche da loucura do dia anterior”.
Nada que não tenha sido previsto em boa ficção. “Não pode haver dois mestres: o Partido e a ciência. Para que a autoridade do Partido se torne absoluta, a ciência deve desaparecer”, afirma o filósofo Jean-Jacques Rosat em O Espírito do Totalitarismo, George Orwell e 1984 em face do século XXI (no prelo). “A guerra de Trump contra a ciência é a fase terminal de uma longa doença cujos primeiros sinais foram ignorados”
Ao atacar a política de justiça ambiental americana, Trump retira a proteção dos menos favorecidos. A perda de foco e percepção estatal sobre vulnerabilidades ambientais e sociais resultará na liberação de mais poluição em terras norte-americanas.
Motivações econômicas predadoras são evidentes. Petróleo, gás e processos industriais poluentes são determinantes subjacentes neste contexto. Se há algo de ideológico nessa discussão, é o culto ao lucro a qualquer custo, onde muitos, principalmente os mais pobres, pagarão com a saúde e a própria vida.
Estatísticas apontam que os negros nos EUA estão expostos a um nível 38% maior de dióxido de nitrogênio do que pessoas brancas e comunidades de baixa renda são desproporcionalmente visadas por locais de resíduos perigosos. Pessoas pobres e negros são os que mais sofrem com os impactos climáticos, como inundações e calor extremo.
Mas esse ataque à saúde vai além das fronteiras norte-americanas. Trump determinou a paralisação da ajuda humanitária aos países da região subsaariana da África, que dependem da doação de medicamentos e assistência médica para sobreviver. Sem essa ajuda substancial, o mundo se tornará mais injusto para as populações miseráveis da África.
Além do expurgo do conceito de justiça ambiental dos órgãos públicos, há evidente desregulamentação climática. A falta de sistemas de alerta precoce e outras formas de previsão para combater eventos extremos será um verdadeiro suicídio para extratos mais pobres da população americana.
Mais de 800 trabalhadores da Administração Atmosférica e Oceânica dos Estados Unidos (NOAA) já foram demitidos, em franca negação das mudanças climáticas. A vigilância de segurança que funcionava 24 horas por dia, sete dias por semana, foi desmantelada. Quem pagará a conta serão os atingidos pelos eventos climáticos, que perdem a capacidade de receber, com eficácia, alertas precoces sobre tempestades e furacões.
A negação do aquecimento global não se fará sem abrandamento dos conceitos e normas de proteção. Sob Trump, os riscos de desregulamentação são evidentes, a começar pelos danos à pesquisa científica. Por exemplo, com a proibição de cientistas trabalharem no relatório climático do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), ação liderada pela ONU que conta com colaboração contínua de cientistas norte-americanos desde 1990. Não resta dúvida de que esse ataque à ciência pretende deixar o campo livre para a expansão predatória dos combustíveis fósseis.
A Agência de Proteção Ambiental (EPA) corre o risco de mergulhar no obscurantismo e até mesmo desconsiderar suas bases científicas e conceituais, que reconhecem, há décadas, que emissões de gases de efeito estufa representam ameaças à saúde humana e ao meio ambiente. Esses princípios deram sustentação aos esforços climáticos internacionais dos Estados Unidos desde 2009.
Enquanto os EUA naufragam na política suicida de Trump, a crise climática se aprofunda — aumentando as ameaças de calor extremo, do nível do mar e chuvas catastróficas, trazendo perigo para a segurança das pessoas –, desguarnecendo comunidades em risco que podem sucumbir sem políticas de prevenção.
Nas zonas de vulnerabilidade, nas áreas de risco, os residentes, pobres e vulneráveis, se sobreviverem, sequer terão como arcar com os custos de reconstrução de suas moradias.
Solucionar os problemas de regiões poluídas com populações vulneráveis é um trabalho lento, em parte porque as leis federais americanas não abordam adequadamente males ambientais sobrepostos. A mesma lacuna metodológica em licenciamentos ambientais vem desguarnecendo comunidades vulneráveis no Brasil, ao deixar de considerar os efeitos sinérgicos da poluição.
A proteção legal das águas, do ar e do solo regula uma fonte de poluição por vez. Uma população exposta a muitas fontes de poluição simultaneamente, ou a um coquetel de toxinas, ou ao calor extremo, não conta com avaliação de saúde que considere todos esses determinantes ambientais.
O impacto cumulativo é um abismo regulatório no qual milhões de pessoas caem a cada ano. Nos EUA, os esforços federais de justiça ambiental visavam preencher essa lacuna com metodologia abrangente.
A falta de visão integrada sobre a saúde dos seres humanos e a totalidade dos determinantes ambientais aos quais estão submetidos são desafios que necessitam de diagnóstico multidisciplinar integrado. O conceito de justiça ambiental considera determinantes sociais e ambientais de forma conjunta, em sua totalidade. Nada mais acertado.
As escolhas de Trump prejudicarão comunidades negras e de imigrantes pobres, mas também afetarão todos, incluindo muitos dos seus próprios apoiadores que vivem em condições sociais precárias e sobrecarregados por múltiplas formas de estresse ambiental.
Sem leis para lidar com impacto cumulativo, com o calor extremo, sem abordagem sinérgica e abertura conceitual proporcionada pela justiça ambiental que possa suprir lacunas legais e sem políticas de alerta precoce, haverá risco de mais americanos ficarem doentes e morrerem mais cedo.
É certo que os tribunais terão muito trabalho para reverter a ofensiva antiambiental de Trump. Haverá forte reação da sociedade americana e dos estados mais progressistas.
Segundo o Marques de Sade, a única moral que um governo republicano deve considerar é sua própria manutenção, o que tem sido a política usual de Trump.
Sob as absurdas políticas de desregulamentação de Trump a poluição terá facilidade para se expandir — e as comunidades carentes menor capacidade para se defender.
Trump está tornando o mundo mais desigual e vulnerável.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).