Lei Aldir Blanc: um balanço socioeconômico
Mecanismo legal criado para proteger o setor cultural abalado pela pandemia requer análises de seus resultados; setor ainda em crise aguarda por soluções para a sua recuperação econômica
Na continuidade da série “A crise da cultura”, produzida pelo Observatório da Cultura do Brasil, esta reportagem apresenta uma análise dos quase dois anos de aplicação dos recursos da Lei Aldir Blanc, criada para minimizar a crise econômica e social dos setores culturais desencadeada pela pandemia. A aplicação destes recursos foi fundamental para oferecer alguma chance de vida aos agentes dos segmentos prejudicados. Ainda assim, ocorreram contradições, exclusões e irregularidades.
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O setor cultural, um dos maiores geradores de empregos no Brasil e relevante para o Produto Interno Bruto), ainda segue em crise. No horizonte são vistas ofertas de caridade, mas não existem planos de recuperação de um setor complexo, em que editais de arte surgem como soluções, mas que não resolvem de fato a questão.
A catástrofe em números atualizados
Desde que começou, a pandemia arrasou com setores culturais, de arte, entretenimento e turismo. Além do desemprego em diversas profissões, mais de 300 mil bares e restaurantes fecharam as portas. Mas os números podem ser piores, pois equipamentos culturais formais e informais não entram nestas contas. O mesmo ocorreu nos ramos de serviços, aluguel de equipamentos, infraestrutura, cenografia, gráficas, serviços de transportes, entre outros 300 setores e profissões. Todos foram atingidos com a paralisação da cultura. Portanto, a quebra de infraestrutura reflete diretamente na desestruturação de toda a cadeia produtiva da economia destes segmentos culturais, que pode demorar anos para ser reconstruída.
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Pesquisa do IBGE, divulgada em 09 de dezembro de 2021, apontou perda de 700 mil empregos somente no setor cultural e de entretenimento entre 2019 e 2021. O estudo ainda aponta que a informalidade subiu 41,2%, num setor estratégico que ocupava 4,8 milhões de empregos, que representavam 5,6% do total de trabalhadores ativos no Brasil. Os dados precisam de monitoramento, mas estudos localizados apontam tendência de esvaziamento, e até abandono de profissões relacionadas à cultura, pela falta de oportunidades, de renda, e devido à maioria dos trabalhadores não terem conseguido empregos ou mesmo recursos da Lei Aldir Blanc.
A arrecadação de direitos autorais do ECAD teve queda estimada de quase 50% entre 2020 e 2021, o que resultará em forte diminuição na distribuição de pagamentos para compositores e detentores de direitos conexos. De acordo com o Ipea, 900 mil trabalhadores da cultura foram prejudicados, ficando sem emprego, foram para a informalidade ou mudaram de profissão.
Os resultados da Lei Aldir Blanc foram eficazes?
Ainda não são totalmente compreendidos os resultados da Lei Aldir Blanc. Os recursos aplicados foram relevantes, isso não se discute no meio de uma crise humanitária, mas os impactos reais ainda não são quantificáveis. O Observatório da Cultura do Brasil, em um esforço coletivo com outros organismos e pesquisadores, vêm tentando compreender o fenômeno social. Parte dos pesquisadores apontam que a lei é vaga, com a justificativa de ter um texto genérico para atender as diferenças regionais. Contudo, isso permite usos controversos. Mas na prática, isso também resultou em editais estaduais com excessiva burocracia, exigências de currículo, mérito e certidões negativas que somente uma pequena parte de artistas e empreendedores consegue participar.
A pesquisadora Sharine Machado Cabral Melo tem uma visão mais positiva da lei. Segundo ela, “100% dos estados e cerca de 75% dos municípios tiveram planos aprovados para os repasses. Em média 92,5% dos recursos repassados foram executados pelos municípios não capitais até o momento. Já as capitais executaram 98,5% dos valores. A porcentagem de execução nos estados foi de 95,8%”. Os dados estão disponíveis no portal do Sistema Nacional de Cultura.
A pesquisa de Sharine fez parte do seu pós-doutorado na Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA/USP). Também integram o estudo os pesquisadores Juan Ignacio Brizuela e Mariana Martínez. As publicações já disponíveis e podem ser acessadas no site do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
Relatora da Lei Aldir Blanc em 2020, a deputada federal Jandira Feghali (PC do B/RJ) é otimista quanto a diversos aspectos da lei. A começar pela celeridade com que foi criada e aprovada. “A gente conseguiu em 19 dias ouvir o Brasil e aprovar a lei. Ao mesmo tempo em que a gente ouvia, havia uma intensa articulação interna na Câmara dos Deputados para conseguir aprovar a lei”, recorda. Quanto aos resultados, Jandira Feghali ressalta o alcance da Lei Aldir Blanc, que chegou a 4.176 municípios. “Até então o maior alcance foi da Lei Cultura Viva, da qual sou autora, que chegou a 1.300 municípios”. A deputada também aponta um salto na mobilização e organização do setor cultural em determinados municípios. “Em muitos lugares, o Conselho [de Cultura] começou a funcionar, teve gestão que criou Fundo, criou Fórum, então teve um legado organizativo da Lei Aldir Blanc impressionante. Gestores e sociedade começaram a conversar”, relata.
Devido aos muitos dados, apontando resultados diferentes, não ficaram claros os números localizados nos relatórios e pesquisas, se estes dados se referem aos municípios que se cadastram no programa ou se representam a totalidade dos municípios brasileiros. Por outro lado, existe escassez de dados em órgãos estaduais e na Secretaria Especial de Cultura do governo federal. São raros os relatórios de transparência da Lei Aldir Blanc acessíveis nos entes estaduais e municipais. Foram localizadas inúmeras reclamações de entidades e agentes culturais que não são respondidos, mesmo as solicitações via Lei de Acesso à Informação (LAI).
A Secretaria Especial da Cultura revela em seus relatórios o índice de devolução de recursos por municípios sem execução em 2021, especialmente nas cidades menores. Esses resultados, segundo os relatórios localizados, se deram por motivos como a ausência de um plano municipal de execução da Lei Aldir Blanc, ou pelo fato de municípios não terem solicitado os recursos. Enquanto nas metrópoles e capitais isso não se repetiu, revelando que a desigualdade ocorre justamente em prejuízo dos municípios menos estruturados, enquanto os recursos chegam nas capitais com mais facilidade, de acordo com os dados fornecidos pela Secretaria Especial da Cultura feita ao Observatório da Cultura do Brasil.
Segundo o editor do Observatório da Cultura do Brasil, Manoel J de Souza Neto, “não se pode ainda ter dimensão dos resultados socioeconômicos da Lei Aldir Blanc , afinal os números não são claros ainda, de quantos foram atendidos pela lei entre 2020 e o começo de 2022, quanto receberam, que resultado este valor teve em suas vidas, e especialmente, o quanto isso representa do total de trabalhadores da cultura, das mais de 300 profissões relacionadas aos setores paralisados. Considerando que são artistas, criadores de conteúdo, técnicos, serviços de apoio e empresas, que integram as várias cadeias produtivas da economia da cultura, na soma estes setores produzem 2,67% do PIB, somando aproximadamente 5,8% do total de ocupados no país”.
Os apontamentos apresentados pelo Observatório da Cultura do Brasil mostram diferentes realidades, posto que ocorreram avanços, como maior participação social de conselhos de cultura, bem como melhora da institucionalidade de secretarias municipais de cultura e maiores repasses nacionais aos entes estaduais e municipais já registrados. Por outro lado, foram registradas exclusões de grupos sociais e corporativismo de setores engajados, acostumados com editais e próximos aos gestores de cultura. Mas, os maiores questionamentos se dão no aspecto de volume de prejudicados, comparado ao total de atendidos, considerando que os editais em algumas regiões criaram linhas de cortes, que em geral prejudicam os mais necessitados. Dados podem ser conferidos em outros artigo da série “A Crise da Cultura”.
Em um momento em que não se sabe se a pandemia vai perdurar ou não, existe enorme preocupação do setor cultural sobre seus rumos, o retorno efetivo do trabalho, em uma nação que não tem um plano efetivo de segurança e de recuperação do setor, muito menos de gestão da pandemia. Por outro lado, o fator ideológico do governo federal se revela em manifestações declaradas de ódio à cultura. O próprio secretário nacional de cultura, Mario Frias, afirmou ser contra a aprovação de mais recursos para o setor, sendo contra as Lei Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo. Um contrassenso, considerando que a pasta seria prestigiada com enorme volume de recursos. Essa recusa aos recursos talvez se explique pelas várias escorregadas da secretaria na atualidade, com polêmicas na Cinemateca e Museu Nacional devastados após abandono, ataques aos técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), postura contra a população negra apresentada pelo presidente da Fundação Palmares, desmontes da antiga Lei Rouanet de Incentivo à Cultura, do Conselho Nacional de Políticas Culturais, entre outros acontecimentos bizarros (e nem foi tocado no episódio protagonizado por Roberto Alvin). Essa instabilidade vem gerando angústia nos trabalhadores dos setores relacionados.
O que fica evidente é que o Brasil precisará bem mais do que recursos emergenciais para voltar a decolar com este relevante conjunto de atividades econômicas que compõem a cultura.