O Brasil na contramão, de novo
No quinto artigo da série sobre o novo marco regulatório do saneamento básico, professor de planejamento e gestão do território sinaliza os riscos de o país andar na contramão das necessidades contemporâneas, e lembra que no último ano os conflitos envolvendo água pela primeira vez superaram numericamente os conflitos fundiários no Brasil
Em plena pandemia, com tudo o que isso implica em termos da dificuldade de realizar debates públicos qualificados e com ampla participação social sobre temas relevantes da vida nacional, foi aprovada e sancionada, com vetos, a Lei 14.026/2020, chamada por muitos como Lei do Saneamento. Ela altera marcos legais que vigoravam anteriormente e introduz mudanças supostamente voltadas a favorecer investimentos que permitam expandir o acesso dos brasileiros a esse serviço tão fundamental. A simples aprovação de lei tão controversa em momento atípico já é, em si, questionável. Esse açodamento e o tratamento polêmico dado a várias controvérsias deve gerar, inclusive, o contrário do que se havia buscado: uma situação de insegurança jurídica. Mas mesmo que entre em vigor como está, existem também boas razões para imaginar que o novo modelo será insuficiente para resolver o problema.
De partida, é preciso compreender a relevância do caso. O acesso ao saneamento não é uma questão de comodidade. O tema é parte das metas que conformam os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, que representam a principal agenda das Nações Unidas no período contemporâneo, elaborada em 2015 e assumida como um compromisso pela quase totalidade dos países do mundo. O ODS 6, especificamente, trata do acesso à água e ao saneamento. Nele se prevê que deveria haver acesso universal a toda a população até 2030. Nada indica, no entanto, que o Brasil alcançará essa marca. O próprio Plano Nacional de Saneamento Básico estabelecia um horizonte mais largo: 2033. E mesmo isso é improvável. No site da agência reguladora responsável pela área há uma menção a 2035.
A relação entre falta de saneamento e altas taxas de mortalidade infantil é conhecida. Mas isso não é tudo. Na comunidade científica é amplamente aceito que existe forte correspondência entre falta de saneamento e déficits cognitivos que acometem as crianças que escapam da morbidez precoce. Na sua primeira infância, elas precisam gastar boa parte da energia corporal que deveria estar sendo canalizada para o desenvolvimento do cérebro para, em vez disso, combater doenças facilmente evitáveis. Essas sequelas fisiológicas duram o resto da vida e afetam a capacidade de aprendizagem de maneira irreversível. No Brasil estima-se que nada menos do que metade do total das crianças nessa faixa etária está exposta a essa crueldade. Em uma sociedade que diz acreditar na meritocracia esse deveria ser um tema chave.
Desde a Constituição de 1988, na qual foram consagrados vários direitos, o país avançou mais em outros temas como educação e acesso a serviços de saúde, o que indica que há capacidade de expandir a oferta de bens e serviços que importam à vida humana. Mas o Brasil ocupa posição vergonhosa em qualquer ranking internacional sobre saneamento. E a comparação não envolve ricos países europeus e sim os vizinhos latino-americanos ou países árabes. Dados do IBGE apontam que a coleta de esgoto está disponível para apenas metade da população. Em quatro a cada dez municípios brasileiros simplesmente não existe coleta. E mesmo onde ela ocorre, a maior parte do que é coletado não passa por tratamento.
Falta de dinheiro e aspectos técnicos como insegurança jurídica ou fragilidade do sistema de metas em contratos, sempre alegados como causas para desempenho tão pífio, explicam apenas em parte essa dificuldade. Como em vários outros domínios, é sobretudo uma questão de desigualdades inseparavelmente sociais e territoriais, algo bem demonstrado em esclarecedor artigo recentemente publicado na revista Pesquisa Fapesp assinado por Diego Viana. Ele menciona, também apoiado em dados do IBGE, que enquanto 91% da população do Sudeste recebem água encanada, no Norte são apenas 57%. Mas mesmo nas grandes cidades das regiões mais ricas as diferenças importam: é nas periferias e favelas que corre o esgoto a céu aberto. E no Brasil rural os percentuais são ainda mais chocantes.
Por isso é difícil imaginar que os marcos instituídos com a nova Lei do Saneamento resolverão os problemas. As mudanças introduzidas visam: a) atrair investimentos privados, sob o argumento de que isso canalizaria recursos de que o Estado não dispõe; b) favorecer a formação de consórcios nos pequenos municípios, para com isso superar os problemas de capacidades e aglutinação de demanda; c) aprimorar as formas de contrato, com o intuito de viabilizar o cumprimento de metas. Mas ao menos três problemas seguem sem resposta.
Primeiro, como a demanda concentrada em regiões mais pobres, precárias ou distantes irá se traduzir em oportunidades atrativas de negócios para o investimento privado? Existe a possibilidade de se fazer a licitação em blocos, juntando áreas menos e mais cobiçadas pelas empresas. Ainda que isso ocorra, as condições menos favoráveis desses locais resultam em maiores custos o que, pela lógica adotada, significaria preços mais elevados ao consumidor. A consequência última é óbvia: se houver tais investimentos, a população mais pobre terá que usar parte de sua já comprimida massa salarial para acessar o que deveria ser um direito básico como cidadão, o acesso à água e ao saneamento.
Em segundo lugar, a atribuição à agência reguladora – a ANA, agora rebatizada como Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – das funções de elaborar normas de referência e diretrizes é obviamente coerente com a arquitetura institucional que vem sendo colocada em prática no Brasil nas últimas décadas. Mas significa dizer que boa parte das garantias para que haja efetiva expansão e melhoria do sistema ficam postergadas para a sua atuação. Isto é, a arquitetura da nova lei criou possibilidades, mas não os mecanismos que garantam sua aplicação nos termos da justificativa apresentada para as mudanças. Há um problema de frouxidão dos mecanismos institucionais para garantir que, efetivamente, os investimentos cheguem onde é preciso, com a celeridade necessária, e não apenas onde são rentáveis e em ritmo decidido por investidores.
Por fim, o cumprimento das metas de saneamento implica injunções em quatro temas delicados: água potável, tratamento de esgoto, coleta e manejo de resíduos e drenagem. É por isso que o ODS 6, já mencionado, aborda aspectos como recuperação ecossistêmica e gestão integrada de recursos. Isso não envolve apenas uma política setorial ou investimentos para expansão da rede de um serviço, mas sim desafios integrados para o planejamento urbano e territorial. Sobre isso, vale mencionar apenas duas coisas. O Brasil já tinha dificuldade para lidar com a diversidade territorial e a ausência de capacidades em muitos de seus municípios uma década atrás, quando ainda havia um Ministério das Cidades, muito voltado para as grandes metrópoles e sem instrumentos adequados para as cidades de menor porte, dificuldade que era assumida por alguns de seus próprios membros; hoje, então, a situação é incomparavelmente pior. Além disso, tudo o que envolve recursos hídricos tende a adquirir enorme relevância nos anos vindouros. Basta lembrar que no último ano os conflitos envolvendo água pela primeira vez superaram em número os conflitos fundiários no Brasil. O novo marco aprovado passa longe desse tratamento integrado ou do estabelecimento de formas sólidas de coordenação de políticas públicas, tema crescentemente enfatizado na literatura sobre arranjos institucionais.
A questão, portanto, nem é ser contrário ou favorável à presença de investimentos privados, simplificação que resumiu boa parte da controvérsia em torno da nova lei. O problema é reduzir a uma lógica de mercado aquilo que deveria ser tratado como direito. Ao deixar soltos, ou para tratamento posterior, aspectos decisivos como prazos, metas territorializadas, política tarifária, entre outros, sem falar na integração e coordenação de políticas, a nova lei incorre claramente em perigoso reducionismo.
Tudo isso ajuda a entender por que vinham aumentando tanto os casos de reestatização de empresas de água e saneamento, de Paris a Maputo, de Berlim a Buenos Aires, como indica mapeamento do Water Remunicipalisation Tracker. A pandemia de Covid-19 agrega mais um elemento. Com ela tem despertado em muitos segmentos a sensibilidade para a necessidade de novos contratos sociais, que alterem a forma de lidar com temas que deveriam ser tratados como bens públicos, entre eles o acesso a serviços que afetam decisivamente a saúde e o bem-estar humano. A palavra de ordem é diminuir riscos e incertezas, garantir direitos. Mas o Brasil, como vem sendo recorrente em tempos recentes, insiste em ir na contramão.
Arilson Favareto é sociólogo, professor no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território na Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
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Saneamento básico é condição mínima de dignidade e saúde. Parceria do Diplo Brasil com o Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer, esta série visa a colaborar com o debate sobre o novo marco legal do saneamento básico. Especialistas de diversas áreas evidenciam as implicações sociais, de saúde pública, jurídicas, econômicas e ambientais da gestão de água, esgoto e destinação do lixo urbano. Neste momento em que a pandemia ressalta a crise civilizatória que vivemos, o acesso à informação é essencial à transição para sociedades sustentáveis.