Liberdade de empresa ou de imprensa
A Lei de radiodifusão que se tenta substituir na Argentina é uma espécie de confissão: imposta em 1980 pelo ditador Jorge Videla, um de seus artigos proíbe expressamente que as organizações sem fins lucrativos possuam ou administrem ondas de rádio e televisão
Os meios de comunicação – principalmente os que se julgam mais prejudicados e qualificam de “atentado à liberdade de imprensa” a proposta do governo argentino de substituir uma lei imposta pela ditadura – escamoteiam a reflexão sobre o marco global e os antecedentes internacionais nos quais deveria inscrever-se o debate sobre a nova Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, aprovada pela Câmara dos Deputados e atualmente em discussão no Senado.
O paradoxo segundo o qual a mídia oculta do público informações que lhes digam respeito mostra a importância do debate. O marco global de análise e os antecedentes existem, e vêm sendo apontados há anos por vários especialistas, universidades, organizações e meios de comunicação alternativos. Mas já se sabe que, na sociedade moderna, o que não aparece na televisão ou nos grandes jornais simplesmente não existe. A memória escolhe o que esquece, dizia o escritor Jorge Luis Borges.
Entretanto, a polêmica sobre o significado e a aplicação da liberdade de expressão em um sistema de propriedade privada cada vez mais concentrado tem enorme relevância. Acontece que a centralização crescente dos meios de comunicação em poucas mãos se articula com outro fenômeno contemporâneo: a crise capitalista, que reproduz as crescentes desigualdades econômicas no sistema educativo – melhor educação (embora menos cultura, no sentido clássico do termo) para elites cada vez mais estreitas, e empobrecimento educativo, ou analfabetismo puro e simples, para camadas cada vez mais amplas da população. O desmantelamento dos Estados durante o período neoliberal acentuou essa tendência, inclusive nas sociedades mais avançadas.
Neste quadro, a explosão tecnológica e produtiva, que coloca à disposição de um público cada vez mais amplo grande variedade de suportes informativos – com conteúdos dos quais se duvida serem de interesse do cidadão – outorga aos proprietários desses meios de comunicação um poder que excede o da informação.
Uma vez deteriorado o espaço educativo que confere sentido crítico aos cidadãos, e diversificada e vulgarizada ao extremo a informação, os meios de comunicação se tornaram algo como o Oráculo de nossos tempos. Porém, no lugar de revelar os mistérios do Universo, como acontecia entre os caldeus, realizam agora o milagre de ocultar todo problema, toda pergunta, todo futuro – sob um manto de trivialidades, escamoteações e meias verdades, quando não absolutas falsidades. No extraordinário e indestrutível presente que os meios de comunicação refletem, o essencial não apenas é invisível aos olhos; também o é ao entendimento.
O relatório MacBride
Diante disso, é apropriado apresentar as principais recomendações do “Relatório MacBride”1, trabalho muito conhecido pelos especialistas, mas ignorado pelos grandes meios de comunicação, apesar de seus extraordinários antecedentes. Há razões para tal postura.
Em 1977, a Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura) entregou à presidência de uma Comissão Internacional encarregada de desenvolver um estudo planetário sobre os problemas da comunicação ao advogado irlandês Sean MacBride, entre outras coisas, ex-ministro de Relações Exteriores de seu país; prêmio Nobel da Paz de 1974 e prêmio Lênin de 1977; fundador, em 1946, do Partido Republicano Irlandês e ex-Alto Comissário das Nações Unidas na Namíbia.
A origem da Comissão foi exatamente um discurso de MacBride na Unesco, em junho de 1977, centrado na fragilidade e na vulnerabilidade da imprensa em consequência das pressões econômicas, financeiras e políticas. MacBride sugeriu que a organização analisasse o tema, elaborasse um relatório e, inclusive, um marco normativo para proteger o direito à liberdade de expressão dos cidadãos do mundo.
A repercussão do discurso fez com que a Unesco decidisse criar a Comissão e nomeasse MacBride como presidente. Este logo se cercou de colaboradores com antecedentes inatacáveis: o fundador do jornal Le Monde, Hubert Beuve-Méry; o escritor Gabriel García Márquez; Leonid Zamiatine, porta-voz do governo soviético, e o sociólogo canadense Marshall MacLuhan, entre outros. Os trabalhos da Comissão começaram em dezembro seguinte e duraram três anos, em um clima que, segundo afirmou o próprio MacBride, não lhe “inspirava o mínimo otimismo. Nos anos 1970, as discussões internacionais sobre o problema da comunicação haviam chegado ao estágio do enfrentamento direto”.
As conclusões e propostas do “Relatório MacBride”, aprovado pela Unesco em 1980, provocaram uma crise na instituição, da qual ela ainda não se recuperou totalmente. Dois dados ilustram sua gravidade: o africano Mathar M’Bow, um dos grandes aliados de MacBride, foi afastado de seu cargo de Diretor-Geral; em 1984, o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, acabou retirando seu país da organização, a qual não retornou até 2003, quando todas as recomendações da Comissão MacBride haviam sido praticamente esquecidas2. O fato de um relatório sobre comunicações precipitar semelhante crise em um grande organismo internacional dá a medida da importância econômica e política do tema.
O que diz o Relatório, essencialmente:
• reivindica o direito de todos os países ao acesso às novas tecnologias e o de todas as sociedades a informar-se e informar;
• afirma o direito dos Estados (não dos governos) de dispor de meios de comunicação e seu dever de colocá-los à disposição das organizações cidadãs para equilibrar o poder das grandes corporações;
• propõe estritas medidas de controle internacional para os monopólios, entendendo que a concentração de meios atenta contra a liberdade de informação;
• promove mecanismos de proteção para os jornalistas, não apenas a respeito de sua segurança física, mas em relação ao seu direito à independência de critério frente às pressões empresariais e políticas, ao mesmo tempo em que requer para a profissão um código deontológico baseado no respeito à democracia e aos direitos humanos, na denúncia das injustiças e na promoção da igualdade.
O Relatório MacBride faz uma série de proposições, detalhadas em vários itens:
• Política de Comunicação para a independência e o autodesenvolvimento.
• Reforço das licenças para as tecnologias apropriadas.
• Novas tarefas sociais para os meios de comunicação.
• Integração da comunicação ao desenvolvi-mento.
• Normas éticas e de integridade profissional.
• Democratização da comunicação: componente essencial dos direitos humanos.
• Reforço da identidade cultural para a dignidade humana.
• Acesso à informação técnica: recursos essenciais para o desenvolvimento.
• Promoção da cooperação internacional.
• Membros associados do desenvolvimento: todos os atores implicados.
Por último, o Relatório considera chave instaurar uma Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação (NOMIC), para que os países do Terceiro Mundo – corriam então os últimos anos da Guerra Fria e dos processos de descolonização – se encontrem em igualdade de condições financeiras, culturais e tecnológicas em relação aos Estados desenvolvidos. Pelo menos no que diz respeito aos meios de comunicação.
Algumas das bases fixadas pelo Relatório para o NOMIC foram: eliminar os desequilíbrios entre o Terceiro Mundo e os países desenvolvidos; impedir os monopólios; garantir a pluralidade das fontes e dos canais de informação; respeitar a identidade cultural e o direito de todos os povos do mundo a participar dos fluxos internacionais de informação etc.
Como se vê, nada disso poderia entusiasmar a Fox News ou o Grupo Clarín. Ao colocar o problema das comunicações no marco dos direitos humanos, do desenvolvimento tecnológico equitativo e da igualdade de oportunidades, o Relatório MacBride desmascarou o discurso das empresas sobre “liberdade de expressão”, já que elas consideram a liberdade de todos como atentatória à sua própria.
A Lei de Radiodifusão que se tenta substituir na Argentina é uma espécie de confissão: imposta em 1980 pelo ditador Jorge Videla, um de seus artigos proíbe expressamente que as organizações sem fins lucrativos (universidades, cooperativas, sindicatos, ONGs, associações de bairro etc.), possuam ou administrem ondas de rádio e televisão3.
É por isso que, com todos os seus defeitos ou omissões, o projeto de Lei de Comunicações atualmente em debate no Senado argentino é preferível ao que acabamos de expor. Apesar dos modos lamentáveis, do imediatismo, das artimanhas e da incompetência da maioria dos dirigentes da política argentina, quase indistinguíveis da campanha suja dos grupos midiáticos, alguns aspectos do projeto foram favoravelmente modificados pelos deputados e o tema se instalou na opinião pública, que continuará debatendo seja qual for a sorte da nova Lei.
Distinguir entre “liberdade de expressão” e liberdade “de empresa”, tal como indicou há 30 anos o Relatório MacBride, é de vital importância para consolidar sociedades democráticas e igualitárias.
*Carlos Gabetta é o diretor da edição argentina de Le Monde Diplomatique.