Longo caminho rumo à dignidade
Os Estados-membros da ONU estão engajados em defender quais liberdades fundamentais? A leitura da Declaração Universal dos Direitos Humanos dá vertigem: ela garante quase todos os direitos políticos e sociais. Mas com quais meios? Resultado de um longo combate, contudo, a Declaração continua sendo uma eficaz ferramenta de progresso
Pensar o universal e transformá-lo em direito: é com essas poucas palavras que podemos tentar descrever o imenso objetivo daqueles que, logo após a Segunda Guerra Mundial, conceberam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Seria necessário algum tempo para que os princípios oriundos de uma visão religiosa e filosófica do mundo abrissem caminho até o direito. Podemos, é claro, remontar à Magna Carta (“Grande Constituição”) na Inglaterra (1215), que introduziu a noção de igualdade perante a lei e deu origem ao habeas corpus,1 garantia da liberdade individual. Mas o verdadeiro ponto de partida daquilo que seria o corpus dos direitos humanos da era moderna deve ser buscado em Emmanuel Kant e na filosofia das Luzes, e depois na Revolução Norte-Americana, cuja Declaração de Independência, em 1776, já proclamava: “Todos os homens são criados iguais” – conceito retomado alguns anos depois na França, sem referência religiosa ao Criador, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direito”.
No entanto, os direitos humanos repousam ainda hoje em outro alicerce, poderoso e contemporâneo: a guerra. Primeiro, a Guerra da Crimeia, que revelou ao suíço Henry Dunant o abandono dos feridos no campo de batalha de Solferino, em 1859, e o levou a fundar a Cruz Vermelha; a primeira Convenção de Genebra, em 1864, se inspirou diretamente em suas ideias. A guerra de 1914-1918, em seguida: matanças entre soldados, massacres de milhões de civis. Após a assinatura do Tratado de Versalhes, a Sociedade das Nações (SDN) tentou por todos os meios impedir a repetição do conflito, inclusive declarando a guerra “ilegal”. Ninguém ignora o que se seguiu. Contudo, a SDN, antes de se esfacelar nos anos 1930, impôs a ideia de que a segurança coletiva só poderia se fundar no multilateralismo, nunca na diplomacia secreta.
Depois de 1941, os futuros vencedores haviam imaginado as bases sobre as quais seria possível edificar um direito menos utópico. Num navio de guerra, o presidente norte-americano Franklin Roosevelt e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill assinaram a Carta do Atlântico, primeiro esboço da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), adotada em São Francisco em abril de 1945. Já no preâmbulo, o documento atribui à nova organização mundial a tarefa de “preservar as gerações futuras do flagelo da guerra” e proclama “a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana”. A essência do que iria constituir, três anos depois, a Declaração Universal dos Direitos Humanos já está contida nesse preâmbulo. No intervalo, desenrolou-se o processo de Nuremberg, que levou à condenação dos principais responsáveis do Terceiro Reich em virtude de duas noções radicalmente novas, nascidas precisamente dos direitos humanos: o crime de genocídio e o crime contra a humanidade.2
A fim de afastar quaisquer acusações de controle por parte dos vencedores da guerra, o comitê de redação da Declaração, presidido por Eleanor Roosevelt, viúva do presidente anterior dos Estados Unidos, incluía, numa dosagem prudente, dezoito membros, entre os quais o chinês Peng-chun Chang, o libanês Charles Malik, o chileno Hernán Santa Cruz, o britânico Charles Dukes, o soviético Alexandre Bogomolov, o haitiano Émile Saint-Lot e o francês René Cassin.
As discussões de então prefiguraram os debates de hoje: é importante, para o ser humano, dispor das liberdades políticas caso esteja morrendo de fome? Podemos desafiar a diversidade cultural afirmando a universalidade dos direitos? A paz constitui a primeira garantia dos direitos humanos? Apesar das divergências originais, o texto responde com otimismo a essas perguntas, e sua adoção por cinquenta Estados-membros da ONU, de 58, foi imediatamente percebida como o maior êxito diplomático do pós-guerra. Entre os que se abstiveram figuravam a África do Sul, hostil ao princípio da igualdade de raças, a Arábia Saudita, contrária à igualdade entre homens e mulheres, e a URSS, ansiosa por afirmar a primazia dos direitos econômicos e sociais sobre os direitos políticos.
Diversos princípios fundamentais permeiam a declaração: os direitos humanos são universais e indissociáveis uns dos outros; os direitos do indivíduo prevalecem sobre os da comunidade; todos os seres humanos, sem exceção, são iguais. De todos esses princípios, o da “dignidade humana”, presente desde o artigo 1º (mas que não constava da declaração de 1789), é sem dúvida o mais fecundo, ressalta Christine Lazerges, presidente da Comissão Nacional Consultiva Francesa dos Direitos Humanos: “A igualdade em dignidade e em direito de todos os homens fundamenta por definição o princípio de universalidade. Por si só, permite rejeitar a pena de morte, a tortura, a escravidão; por si só, alicerça a alteridade, o reconhecimento do outro”.
A partir de 1948, as Nações Unidas sentiram a necessidade de transformar essas noções em um conjunto de normas coercitivas, ou seja, em tratados de direito internacional. “Foi preciso dar a esses conceitos um conteúdo em direito, e não pura e simplesmente em moral”, explica Jean-Bernard Marie, diretor de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), em Estrasburgo. “Esses princípios – o da universalidade, por exemplo – não são meras noções contemplativas; é, pois, imperioso encontrar meios de garantir sua eficácia.” Foi com esse objetivo que a Assembleia Geral da ONU criou imediatamente a Comissão dos Direitos Humanos, encarregada de elaborar esses instrumentos. Dois pactos – um em torno dos direitos civis e políticos, e outro em torno dos direitos econômicos, sociais e culturais – foram adotados em 1966, quando 172 países ratificaram o primeiro e 169 confirmaram o segundo. Uma miríade de convenções específicas acompanharam-nos ao longo dos anos, das quais podemos citar as mais importantes: sobre o genocídio (1948), o estatuto dos refugiados (1951), a discriminação racial (1965), os direitos das mulheres (1979), a tortura (1984), os direitos das crianças (1989), os trabalhadores migrantes (1990)… A esses tratados acrescentou-se uma dezena de declarações sobre os assuntos mais diversos, todos ligados a aspectos específicos dos direitos humanos.
Paralelamente, as Nações Unidas estruturaram os órgãos encarregados de velar pela aplicação desses textos. A Comissão dos Direitos Humanos, rapidamente envolvida nos conflitos da era pós-colonial, foi abolida em 2006 e substituída pelo Conselho dos Direitos Humanos, dotado de mais poderes. Sediado em Genebra, esse conselho, composto por 47 Estados eleitos segundo critérios geográficos, acabou também alvo de críticas constantes, por acolher em seu seio alguns países pouco recomendáveis. Os Estados Unidos retiraram-se dele com estardalhaço em junho de 2018, denunciando “uma cloaca de parcialidades políticas”, nos termos da embaixadora norte-americana (hoje demissionária) nas Nações Unidas, Nikki Haley, enquanto o secretário de Estado, Michael Pompeo, julgava “inadmissível” uma “prevenção contínua e documentada do conselho contra Israel”.
Maré de ceticismo
Todos os Estados-membros da ONU devem apresentar publicamente a esse conselho relatórios exatos sobre a maneira como cumprem suas obrigações para com os direitos humanos: são os Exames Periódicos Universais (EPU). Por unanimidade, esse procedimento faz com que, em toda parte, progrida o respeito aos direitos graças à pressão que exerce sobre os dirigentes e ao ponto de apoio que oferece aos associados. Além disso, as Nações Unidas criaram o Alto Comissariado dos Direitos Humanos, órgão permanente sediado também em Genebra que coordena todas as atividades do sistema da ONU nessa área. É hoje dirigido por Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile.
De resto, cada convenção adotada pela ONU dispõe de um comitê ad hoc encarregado de assegurar que ela seja respeitada e de encaminhar observações, por vezes contundentes, aos governos. Em 23 de outubro último, o Comitê dos Direitos Humanos criticou a lei francesa de 2010 que proibia encobrir o rosto em espaços públicos, avaliando que ela provocava “discriminação cruzada, com base no sexo e na religião”. De modo mais geral, constata-se que a aplicação dos tratados, mesmo imperfeita, vai aos poucos transformando o direito interno dos países-membros.
Não contentes, as Nações Unidas abriram caminhos transversais que figuram entre os elementos mais úteis do sistema: “relatores especiais”, “representantes especiais”, “especialistas independentes” estão encarregados de conduzir pesquisas sobre temas ou países onde são denunciadas exações. Livres para pesquisar e falar, eles, por si sós, conseguem fazer com que os direitos humanos evoluam em temas bem definidos ou em países particularmente refratários à igualdade de direitos. Assim, o francês Michel Forst, relator especial sobre a situação dos defensores dos direitos humanos, tenta metodicamente proteger aqueles que, responsáveis por associações ou simples indivíduos, dão força aos direitos humanos por vezes com risco de vida. Segundo Forst, cerca de 4 mil deles foram assassinados desde 1998.
No entanto, as Nações Unidas não se esqueceram de que foram fundadas também para manter a paz, garantia primeira dos direitos humanos. Foi com esse objetivo que criaram os “capacetes azuis”, forças mantenedoras da paz. Em face da maré de ceticismo provocada pelo número de massacres diante dos quais a comunidade internacional se revelou impotente (Camboja, ex-Iugoslávia, Ruanda, Congo, Myanmar, Síria etc.), a ONU procura melhorar o recrutamento, a formação, o enquadramento e o financiamento dessa força internacional. O desafio é imenso, tanto mais que os Estados Unidos, os maiores contribuintes para as forças de manutenção da paz, anunciaram em setembro de 2018 sua intenção de reduzir o financiamento dessas operações – no instante em que o secretário-geral Antônio Guterres revelava que seu custo (US$ 7 bilhões por ano) representa “apenas 1% das despesas militares mundiais”.3 A “responsabilidade de proteger”, teorizada em 2005 pelo secretário-geral Kofi Annan, utilizada e distorcida quando da desastrosa operação da Líbia, ainda não logrou adesões.
Enfim, as Nações Unidas não se desinteressaram de uma de suas razões de ser desde Nuremberg: a luta contra a impunidade. Criaram em 1998 a Corte Penal Internacional (CPI), com sede em Haia, para julgar os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes de genocídio. Paralelamente, a ONU montou vários tribunais especiais (ex-Iugoslávia, Ruanda, Líbano), para a mesma finalidade, que também suscitaram inúmeras críticas. Nem os Estados Unidos nem Israel fazem parte deles.
Após setenta anos, o balanço se revela necessariamente equilibrado. O enorme edifício, construído ao longo de décadas, resiste apesar de sua complexidade. Como salienta Marie Heuzé, que foi porta-voz de Kofi Annan, “nenhuma geração contou com um patrimônio jurídico e normativo tão importante quanto a nossa, em matéria de direitos da pessoa, de desenvolvimento e de manutenção da paz”.
Recentemente, porém, maus ventos sopraram. Alguns países, e não dos menores, decidiram reduzir o aparato dos direitos humanos ou, mais exatamente, seu alcance. Não só os Estados Unidos, com suas atitudes francamente hostis, mas também, de maneira tácita, a China e a Rússia, alguns membros da Organização da Cooperação Islâmica, da União Africana e, no seio da União Europeia, países como a Polônia, a Áustria e a Hungria. As legislações contra o terrorismo restringem igualmente o campo das liberdades públicas, enquanto os direitos dos migrantes não são respeitados. Não há nada mais fácil que reduzir alguns financiamentos de que a defesa dos direitos humanos necessita. Não há nada mais fácil também que invocar especificidades culturais que a universalidade supostamente prejudicaria.4 Os direitos humanos nasceram de uma revolta, inclusive contra o conformismo político e as facilitações de lealdades. O violento mundo atual, com sua geopolítica em recomposição, é prova disso.
*Claire Brisset é jornalista e ex-defensora pública de crianças.