Lula III. Novo impulso à integração latino-americana?
O que muda no cenário latino-americano com o terceiro mandato de Lula? Para refletir sobre essa questão, os destaques se concentram em termos econômicos, energéticos e ambientais. A integração continental, hoje, passa necessariamente pela configuração de parcerias estratégicas, economicamente interessantes e ambientalmente próximas. Acompanhe no novo artigo da série Desafios da integração
A disputa eleitoral de 30 de outubro, após um segundo turno muito acirrado que marcou uma pequena diferença na quantidade de votos válidos, catapultou Luiz Inácio Lula da Silva para seu terceiro mandato presidencial. Em um país vasto e diverso, percebe-se um clima de entusiasmo por um lado e de preocupação por outro.
Parece que as alternativas econômicas e políticas se restringem a um orçamento promovido por um presidente – Bolsonaro – que restringiu os gastos públicos e sustentou gastos em pastas pouco estimulantes para o mercado interno. Inclusive, a coligação que apoia Lula e o parlamento com o qual terá de negociar reconhecidamente não são muito propensos a receitas expansivas. Por outro lado, o potencial de relançamento do Brasil para mais mercados internacionais gera ânimo e esperança. O mercado internacional e a guerra travada pela Rússia na Ucrânia se apresentam como fatores determinantes para uma economia que depende predominantemente da exportação de petróleo, ferro, soja e milho.
Nesse sentido, a América Latina desempenha um papel central. O Mercado Comum do Sul (Mercosul), como impulsionador da economia brasileira e proa de negociações de grande porte, vive hoje uma de suas piores crises. A partir de 2015, a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) perdeu destaque e funcionalidade no quadro de governos que retiraram suas representações institucionais. Os Brics, conjunto dos cinco grandes países de mercado emergente do mundo (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, na sigla em inglês), que anos atrás eram o refúgio de uma identidade e posição de cooperação Sul-Sul, têm feito poucas contribuições conjuntas em virtude de fortes lideranças com interesses individuais, como Rússia e China. A União das Nações Sul-Americanas (Unasul), por fim, é hoje uma casca oca, sem sede para seu funcionamento e com irrisórias conquistas a seu favor.
Como se pode historicizar em uma longa e tortuosa linha, os processos de integração na América Latina têm sido muito mais defensivos do que ofensivos. E, mais ainda, estes têm dependido muito mais do incentivo e da iniciativa dos poderes executivos do que das instituições regionais.
Para os países da região, as expectativas são diversas. O Mercosul aguarda o relançamento e a hierarquização de uma dimensão social abandonada. Os Brics, por sua vez, abrem oportunidades de entrada em novos países. No caso das cúpulas internacionais, a COP-27 deu as boas-vindas ao gigante latino-americano do Sul no debate sobre o uso de novas energias e medidas concretas para proteger a Amazônia.
Vizinhos animados
O presidente argentino Alberto Fernandez foi o primeiro presidente a almoçar com Lula após sua vitória eleitoral. O último encontro deles havia sido quando o brasileiro estava preso em Curitiba, numa época em que nenhum dos dois ainda era formalmente presidente.
Com a emoção de um abraço que simbolizava muito mais do que o desejo de liberdade e trabalho compartilhado, em visita de algumas horas, os dois dirigentes puderam colocar em pauta um futuro de negociações compartilhadas.
O Gasoduto Presidente Néstor Kirchner, em estágio final de construção de sua primeira fase, foi o tema central. O empreendimento representa na Argentina uma obra monumental que unirá as reservas não convencionais de gás e petróleo em Vaca Muerta, província de Neuquén, cruzando Rio Negro e La Pampa até Salliqueló, na província de Buenos Aires. Esta primeira fase da obra abrange mais de 500 km e conta com um investimento de US$ 1,5 bilhão.
A chancelaria argentina negocia o financiamento da segunda fase da obra por meio do BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, para que o gasoduto chegue ao Brasil e se torne um projeto binacional. A proposta, com a chegada de Lula, é pensar em uma integração energética que gere empregos e ofereça competitividade aos dois países em tempos de revalorização do preço dos hidrocarbonetos de petróleo em nível internacional.
Com Bolsonaro certamente foi difícil estabelecer um diálogo nesse sentido. Apesar de várias tentativas do enviado Daniel Scioli, a agenda do ainda presidente estava mais voltada para o agronegócio, em detrimento de manter o subsídio do gás à demanda industrial de São Paulo. Bolsonaro se beneficiou com a compra de fertilizantes da Rússia, Marrocos, Estados Unidos e Canadá.
Como o projeto de Lula prefigura-se a uma aposta de reindustrializar o Brasil, o cuidado com as exportações será central, mas também a escolha dos companheiros ou parceiros. Em particular, o Brasil precisa do que a Argentina fornece, e o Brasil oferece o que a Argentina importa.
Enquanto o Brasil tem US$ 360 bilhões em reservas em seu Banco Central, a Argentina sofre com a falta de financiamento para estabilizar sua economia. Não são poucos os assessores que consideram a possibilidade de pedir ao país vizinho os US$ 10 bilhões de que a Argentina precisa para conter a inflação e mudar sua posição de dependência no plano internacional. As características desse empréstimo podem ser variáveis, os termos devem ser discutidos com todos os elementos em mãos. O previsível seria que o Brasil o concedesse em troca de BTUs, ou seja, unidades térmicas de gás.
A partir da construção do gasoduto, a Argentina teria capacidade de fornecer metade do gás utilizado pelo Brasil. Em 2021, dos 91 milhões de metros cúbicos que o Brasil utilizou por dia, 39 milhões são de origem estrangeira. A Bolívia tem sido o principal fornecedor de gás para o gigante vizinho. No entanto, desde 2014 a oferta de gás boliviano vem diminuindo. Especialistas afirmam que a queda de produtividade das bacias de Tarija, Santa Cruz e Cochabamba expressa o início de um processo de esgotamento irreversível. Pois alguns recursos naturais vivem seu processo de esgotamento, daí uma de suas fragilidades.
Nos últimos anos, para abastecer toda a economia, o Brasil passou a importar gás liquefeito do México. O golfo permite a extração de gás a um preço razoável e está em expansão, agregando maior valor à cadeia por meio da liquefação realizada em Coatzacoalcos, no estado de Veracruz. Aliás, a Europa é um dos seus parceiros, com especial interesse da Alemanha nessas negociações.
O Brasil depende hoje das reservas de gás que estão diminuindo na Bolívia e de um produtor como o México, que visa o mercado europeu. Claramente, a produção argentina, a uma distância menor e, portanto, a um preço menor por BTU, é de maior interesse. Em tempos de reforço da produção industrial e de um verão curto para projetar a provisão de recursos, as oportunidades para mais e melhor integração com a Argentina são um fato.
O paradoxo latino-americano
O contexto internacional limita e contém esperanças de mudança. A alta dos preços das commodities após a pandemia e a guerra na Ucrânia levam atualmente a um fortalecimento do intercâmbio de recursos naturais. Essa alta de preços abre enormes oportunidades, amplia expectativas e aprofunda matrizes produtivas conhecidas que, como no passado, poderiam gerar, se submetidas, melhores condições de vida para nossos povos. No entanto, a chamada “maldição dos recursos naturais” parece revelar uma miragem.
É possível uma transição energética para a América Latina em tempos de alta nos preços internacionais das commodities?
Anos de governos progressistas mostraram que a valorização dos recursos naturais pode ser extremamente positiva para subsidiar programas sociais inclusivos e políticas públicas produtivas. Os momentos de maior ataque à pobreza e incipiente redução da desigualdade econômica – na Argentina e no Brasil – ocorreram em governos nacionais populares marcados pela expansão comercial de seus recursos naturais.
No entanto, esse enriquecimento derivado de fatores externos não resultou no fortalecimento de suas estruturas produtivas industriais, nem em condições estáveis de inclusão social que tornassem permanentes os processos de ascensão social.
Paradoxalmente, os recursos podem ser considerados bênçãos para o crescimento, por contribuírem para a geração de altos níveis de renda e oferta para a produção. Mas também podem ser considerados uma maldição ou condenação. A abundância de um recurso limita a produção econômica baseada naquele insumo, dificulta a variedade de cadeias produtivas e, dada a volatilidade de seus preços, a projeção futura fica restrita ao destino dos ciclos econômicos externos.
De acordo com a teoria política, existem ameaças que são geradas a partir da potencialização de um único recurso econômico. Segundo Collier e Venables, a probabilidade de enfrentar uma guerra civil em um país com recursos naturais escassos é de 5%, enquanto em um país com recursos naturais abundantes essa probabilidade sobe para 23%.
Embora esses dados tenham sido criados apelando para a realidade dos países africanos, é possível observar tendências semelhantes na América Latina. O caso do golpe de Estado na Bolívia, em 2019, poderia se encaixar nessa tendência, considerando que, na época em que ainda não se sabia da vitória de Evo Morales nas eleições, a Bolívia estava em meio a um debate sobre a nacionalização de suas reservas de lítio. Por sua vez, isso ficou evidente na Venezuela, país em que as crises aparentemente internas são replicadas no âmbito de um país que aposta na monoprodução de petróleo.
A chamada “doença holandesa” consiste na presença de recursos naturais de alto valor, como pedras preciosas ou hidrocarbonetos destinados à exportação. Nesses casos, a taxa de câmbio se valoriza por causa do alto fluxo monetário. Nesse sentido, é cada vez mais fácil para o país importar produtos do que investir em empresas para sua produção. Da mesma forma, para a indústria nacional fica muito difícil exportar.
O cenário aberto com a vitória de Lula permite repensar e melhorar as condições de negociação de recursos naturais escassos no mundo que se revalorizam e retardam a mudança da matriz energética.
Os novos presidentes do atual ciclo político devem avaliar se apelam para um espaço-tempo conhecido, como foram os governos progressistas de 2003 a 2015, ou se o caminho econômico nesta ocasião deve ser outro, com tendência a financiar energias alternativas que incorporem setores distantes do vício dos recursos naturais.
A Amazônia em foco
Gustavo Petro significou uma grande virada para a Colômbia. Após três tentativas de chegar ao cargo político mais desejado, em junho deste ano ele se tornou presidente. Economista de formação e militante da esquerda moderada, junto com Francia Márquez construiu uma candidatura pela unidade. Com propostas de legalização da cannabis para uso medicinal, repensando as políticas contra o narcotráfico, melhorando a segurança na fronteira e restabelecendo as relações bilaterais com a Venezuela, conseguiu convencer da necessidade de uma mudança de rumo.
A relação de Gustavo Petro com Lula é fraterna. Embora se tenha procurado expor à opinião pública uma divergência entre ambos quanto às suas posições opostas em relação à exploração do petróleo como recurso essencial para o dinamismo da economia, a verdade é que ambos têm um objetivo em comum: a preservação da Amazônia.
Petro tem realizado uma campanha fortemente voltada para a promoção da descarbonização da economia. No marco da XXII Reunião do Conselho Presidencial da Comunidade Andina de Nações (CAN) em Lima, em agosto deste ano, ele convidou à realização de uma mudança no modelo de desenvolvimento. Além disso, Petro promoveu a reafirmação das políticas contra as mudanças climáticas e reforçou que estamos em um cenário único em que os líderes enfrentam um panorama de possível extinção da humanidade.
Nessa mesma linha, propôs a criação de uma rede elétrica integrada de energia limpa em toda a região. A tese é de que a rede já existe, basta preenchê-la com recursos abundantes como sol, vento e água. Nesse caso, Petro lembrou que a União Europeia começou sua aliança em torno de recursos energéticos como carvão e aço. Nesse sentido, a inspiração para a integração latino-americana pode estar nas energias limpas, sustentáveis e respeitosas da Amazônia.
Lula fortaleceu a posição do Brasil no cuidado com as florestas e os povos que as habitam. No marco da COP 27, afirmou: “o desmatamento na Amazônia aumentou 73%. Só em 2021 foram desmatados 13 mil quilômetros quadrados. Essa devastação vai ficar no passado. Os crimes ambientais, que cresceram horrivelmente nesse governo que está acabando, agora serão combatidos sem trégua”. Assim, destacou que as questões climáticas estarão no centro de seu novo governo.
No entanto, é possível a preservação da natureza com uma enorme economia brasileira baseada em energia hidrelétrica?
Apesar do otimismo, a forma como Lula lidará com a questão climática permanece como um enigma. Existem fortes interesses criados em torno do gigantesco agronegócio que mobiliza a economia brasileira com lobby legal no Congresso. É preciso lembrar que Marina Silva, hoje candidata ao cargo de ministra do Meio Ambiente, havia se distanciado de Lula em 2008, em seu mandato anterior, exatamente por divergências quanto à política de projetos de infraestrutura que impactam a Amazônia.
As dúvidas abrem o debate e se alimentam de enormes recursos. A COP 27 deu um impulso econômico enorme ao financiamento do Fundo Amazônia com sede no Brasil. Assim, US$ 600 milhões serão transferidos para apoiar as políticas de proteção.
O caminho está repleto de esforços e decisões complexas de transformação. Não deixa de ser um desafio depois de quatro anos de inércia e atropelo.
Integração como caminho
A agenda para o lançamento de uma nova integração da América Latina hoje se atualiza no marco dos desafios globais do pós-pandemia, dos conflitos armados e da crise climática.
Aspectos de renovada importância são priorizados, como a coalizão de forças para colaborar na descarbonização e a aposta em sociedades do conhecimento que pensem na geração de energias alternativas. Ao mesmo tempo, não é menos importante buscar o fortalecimento da liderança governamental com gabinetes nacionais de forte presença feminina que, por meio de pastas, consigam cristalizar políticas públicas com tendências a reconhecer, enfrentar e coibir a violência contra a mulher e a diversidade por razões de gênero.
Soma-se a essa agenda a necessidade urgente de preservar a Amazônia, não apenas em termos econômicos e de sustentabilidade, mas também observando a paramilitarização instalada nos últimos anos. Os aproximadamente quatrocentos povos indígenas que ali vivem vêm se mobilizando e reforçando a necessidade de retomar sua terra. Essa é provavelmente uma das últimas chances de atender a esse chamado.
Victoria Darling é cientista política pela Universidad de Buenos Aires (UBA), com doutorado em Ciencias Políticas & Sociales pela Universidad Nacional de Mexico (Unam). Na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) é pesquisadora e professora da graduação em Ciência Política & Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL).
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