O discurso de Lula na ONU: “o Brasil está de volta”
É sintomático que as palavras de Lula na abertura da Assembleia Geral da ONU tenham servido para marcar as profundas diferenças em relação ao seu antecessor, bem como para evidenciar a volta do Brasil como ator de destaque na complexa dinâmica da política internacional
Vinte anos depois, o presidente Lula da Silva voltou à tribuna da Assembleia Geral da ONU para o tradicional discurso de abertura realizado pelo Brasil. Após um quadriênio de acelerado declínio do perfil internacional do país, ocorrido ao longo da era Bolsonaro, a principal mensagem a ser transmitida aos olhares atentos do mundo era ressaltar que “o Brasil está se reencontrando consigo mesmo, com a nossa região, com o mundo e com o multilateralismo. (…) O Brasil está de volta.”
De fato, a política externa de Lula e do chanceler Mauro Vieira tem priorizado o resgate das credenciais do Brasil no tabuleiro global, enfatizando tanto os princípios inscritos no Artigo 4º da Constituição Federal quanto aqueles oriundos de agendas mais recentes – a exemplo da conservação ambiental. Tais princípios foram decisivos para nortear a atuação externa do país ao longo das últimas décadas, mas foram, em grande medida, desprezados durante a presidência de Jair Bolsonaro.

É sintomático que as palavras de Lula na abertura da 78ª Sessão da Assembleia Geral da ONU tenham servido para marcar as profundas diferenças em relação ao seu antecessor, bem como para evidenciar a volta do Brasil como ator de destaque na complexa dinâmica da política internacional contemporânea. O presidente soube pontuar prioridades, desafios e responsabilidades dentro dos limites permitidos por esse tipo de palco e pelo pragmatismo natural da política externa brasileira.
Desigualdade e ambientalismo
A dura fala contra as desigualdades globais foi marcante. O tema é compatível com a história pessoal de Lula enquanto dirigente sindical e alinha-se de forma quase natural com o tradicional empenho da diplomacia brasileira em favor da promoção do desenvolvimento.
Em seu primeiro governo, Lula já havia tentado assumir o papel de protagonista na cruzada contra a fome e a pobreza no mundo. Novamente, explicou que o problema das assimetrias sociais não só continua, mas também fora ampliado, indicando que a redução das desigualdades deve ser vista como o objetivo-síntese da Agenda 2030.
A temática ambiental foi devidamente ilustrada com exemplos recentes de tragédias climáticas na Líbia e no Rio Grande do Sul, mostrando ao público que os efeitos deletérios do aquecimento global são reais e demandam medidas urgentes. Houve espaço, nesse contexto, para uma leitura histórica do problema ambiental, seguindo o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, baseando-se no fato de que os países centrais se desenvolveram sob um modelo extremamente poluente.
O presidente ainda mencionou o Fundo Verde para o Clima, que previa investimentos da ordem de 100 bilhões de dólares por ano para os países em desenvolvimento. Criado em 2010 nos marcos da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, o fundo ainda não foi viabilizado.
Ao assumir uma postura responsável e cooperativa sobre a Amazônia e o desmatamento, assim como ao celebrar a participação do Brasil no Acordo de Paris e no Marco Global sobre Biodiversidade, o discurso de Lula deixa claro que o país abandonou a tônica negacionista e soberanista do governo anterior. Em vez de utilizar a palavra para disseminar desinformação e teorias conspiratórias, a fala de Lula revela a vontade política de fazer do Estado brasileiro um articulador de consensos e um líder na condução da agenda ambiental.
Crise da democracia
O discurso incorporou a preocupação com a crise global dos regimes democráticos e o perigoso avanço da extrema–direita. Trata-se, naturalmente, de uma mensagem necessária após todos os agravos praticados contra a democracia brasileira nos últimos anos, cujo corolário foram os ataques do dia 8 de janeiro aos edifícios que sediam os três poderes em Brasília.
O presidente relacionou o surgimento de movimentos populistas e extremistas com as iniquidades e exclusões provocadas pelo liberalismo econômico. Na interpretação de Lula, os impactos socioeconômicos negativos do “neoliberalismo” repercutem no impulsionamento de movimentos radicais que propõem soluções fáceis e irresponsáveis para problemas estruturais complexos. Houve espaço, ainda, para uma contundente crítica aos governos que, em nome da estabilidade e da ordem, discriminam imigrantes e suprimem direitos sociais e trabalhistas. Certamente, dezenas de delegações, de todos os continentes, viram-se alcançadas por esse alerta feito pelo mandatário brasileiro.
Golpes e rupturas institucionais recentes também foram lembrados. Da região do Sahel africano, passando pelas graves crises no Haiti e no Iêmen, bem como o impasse perene da questão palestina. Contudo, não foi feita qualquer referência às violações das liberdades fundamentais e dos direitos humanos praticadas por regimes autoritários latino-americanos. Conforme esperado, ditaduras de esquerda, como a venezuelana, a nicaraguense e a cubana, foram poupadas, deixando evidente, mais uma vez, que o argumento em defesa da democracia é bastante seletivo. Na prática, a classificação de um governo como autocracia depende mais de sua coloração ideológica do que da prática real de abusos, fraudes e repressão.
Conflitos internacionais
Sobre a guerra na Ucrânia, o discurso de Lula manteve um tom tímido, diferentemente das críticas contundentes feitas a Vladimir Putin pelos líderes das potências ocidentais. É importante lembrar que, ao invadir a Ucrânia, a Rússia violou o direito internacional e o Memorando de Budapeste. Apesar disso, o gigante eurasiático não foi sequer citado pelo presidente brasileiro durante a sua exposição. A referência ao conflito no Leste europeu emergiu de forma genérica, em meio às críticas sobre a incapacidade da comunidade internacional de fazer prevalecer os princípios da Carta da ONU.
Nota-se que Lula optou por descentralizar e despersonalizar as críticas. Ao comentar sobre os abusos de potências que travam guerras não autorizadas pelo Conselho de Segurança, reprovou tanto a incursão russa quanto as intervenções travadas visando mudanças de regime, a exemplo da invasão do Iraque pelos Estados Unidos.
Esse trecho demonstra o cuidado do presidente em manter-se equilibrado nas suas relações externas, evitando escolhas excludentes ou alinhamentos automáticos. Para a diplomacia brasileira, é essencial manter diálogo estratégico e construtivo com parceiros tradicionais do Norte, como os Estados Unidos e a Europa, mas, ao mesmo tempo, é necessário preservar o espírito cooperativo com as potências revisionistas, a exemplo da China e da Rússia.
Multilateralismo
Ao analisar os problemas da ONU e do multilateralismo, Lula destacou a urgência da reforma do Conselho de Segurança, órgão que, conforme muito bem pontuado, vem perdendo progressivamente a sua legitimidade.
A campanha por um assento permanente no Conselho é recorrente na política externa brasileira. O principal argumento é que o mais importante órgão decisório das Nações Unidas, composto por apenas cinco membros permanentes – todos eles vencedores da Segunda Grande Guerra – não mais representa a realidade da distribuição de poder mundial, fato que compromete a sua efetividade e credibilidade. Na mesma linha, o presidente lembrou da desigual e distorcida representação na direção do FMI e do Banco Mundial, organizações financeiras que dependem de ajustes no seu sistema de cotas e no poder de voto para melhor refletirem a atual configuração do poderio econômico dos Estados.
Lula abraçou a causa da democratização dos foros multilaterais, conforme já havia feito em seus dois mandatos anteriores. Agora, contudo, o tema parece ainda mais improrrogável, sobretudo em um cenário internacional muito mais complexo do que aquele de duas décadas atrás. A economia global está nitidamente debilitada, as disputas e os antagonismos mais aflorados e o questionamento da ordem mundial é explícito.
A premissa é que, em face de um mundo inclinado à multipolaridade e cada vez mais pós-ocidental, a construção de um sistema de governança global mais eficaz e representativo passaria necessariamente pela abertura dos foros decisórios multilaterais a uma participação mais ativa das nações do Sul global.
Dueto com Joe Biden
Cabe ressaltar que diversos pontos enfatizados por Lula também estiveram presentes no discurso do presidente norte-americano Joe Biden. As mais notáveis convergências se deram na dimensão do combate às mudanças climáticas e na defesa de um mundo menos desigual. Em nome do aperfeiçoamento da governança global, o democrata Joe Biden surpreendeu ao expressar sua defesa da reforma do Conselho de Segurança.
O clima de sintonia permaneceu no dia posterior quando ambos os presidentes realizaram um encontro bilateral para abordar temas de interesse compartilhado. Na ocasião, destacou-se o lançamento da Parceria pelos Direitos dos Trabalhadores, que versa sobre os desafios contemporâneos no mundo do trabalho.

A consonância Brasília-Washington é positiva e reforça os laços históricos entre as duas maiores democracias do mundo ocidental. É importante notar que tais concordâncias ocorrem sem que haja qualquer sinal de subserviência do Brasil em relação aos Estados Unidos, diferentemente do que ocorreu durante o governo de Jair Bolsonaro, quando o presidente da República utilizava a continência para saudar a bandeira norte-americana.
Retorno à normalidade
Em linhas gerais, a participação do presidente Lula da Silva na abertura da 78ª Sessão da Assembleia Geral da ONU evidencia que a diplomacia brasileira recuperou os princípios que compõem a sua identidade diplomática.
Vinte anos depois de seu primeiro discurso, Lula retoma grandes ambições para projetar o Brasil como ator internacional relevante. As intenções são claras e justas, mas só o tempo poderá dizer se um país com tantas dificuldades e entraves estruturais conseguirá realizá-las.
Talvez o ponto mais importante do maior e mais democrático encontro internacional de 2023 seja assegurar ao mundo que o país retornou à normalidade. O púlpito da Assembleia Geral voltou a ser um local para a transmissão dos valores e das intenções do Estado brasileiro. Pode-se dizer que isso é um notável avanço, especialmente ao considerar-se que, ao longo dos últimos quatro anos, a mesma tribuna parecia ser apenas uma extensão das redes sociais.
Leandro Gavião é professor da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e doutor em História Política (UERJ), com estágio doutoral na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3.
Paulo Velasco Júnior é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UERJ (PPGRI) e doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ.