Machismo cristão no Brasil de Bolsonaro
O Deus, a pátria e a família que estão enunciados no discurso bolsonarista se manifestam como ódio, desrespeito e subalternização das mulheres e dos feminismos
O machismo é um fenômeno cultural marcado por uma subjetivação patológica de massa cujo sintoma nodal é a violência em seus variados matizes. Como evento traumático, os efeitos desse processo patológico de massa no Brasil podem ser explicados, entre outros, pela supremacia da religiosidade cristã entre nós.
Sem desprezar que a instalação do cristianismo no Brasil foi produto de um complexo processo colonial, importa sublinhar que depois de quinhentos anos, nem mesmo o cristianismo soft das igrejas não estelionatárias foi capaz de reconhecer os crimes e as opressões – algumas vivíssimas – praticadas contra as mulheres no Brasil. Sem este recontar que só se dá pela via do reconhecimento público e de ações de prevenção, significantes costumam conservar seus velhos e doentios significados. Gregório Duvivier recontou a tortuosidade da nossa religião cristã de um jeito muito didático: “Ninguém no Brasil nunca fez merda em nome do Capeta, da maconha ou da sacanagem. Toda vez que mataram, escravizaram e torturaram no Brasil foi em nome de Deus, da pátria e da família”.
Além de o cristianismo ter em um instrumento de tortura, a cruz, seu símbolo maior, a violência também está presente na masculinidade autoritária que faz da opressão patriarcal um método. Por isso, o Deus é um macho onipotente, a pátria é paternal até no nome (pater) e a família é chefiada sempre por um homem. Alguém poderá objetar: mas qual o risco do uso desses significantes? A resposta está em 2018: ajudar fortemente a colocar um machista perverso como Bolsonaro no mais alto posto do país. O Deus, a pátria e a família que estão enunciados no discurso bolsonarista se manifestam como ódio, desrespeito e subalternização das mulheres e dos feminismos. A naturalização do machismo tem relação estreita com o espírito cristão que tende a não perceber o fato de que o chefe da coisa é uma figura masculina e que isso, além de um sintoma cultural, faz toda a diferença.
Não por acaso as seguintes frases marcaram o machismo autoritário do governo Bolsonaro:
– Ela é muito feia. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar porque ela não merece.
– No quinto filho dei uma fraquejada e veio uma menina.
– Não se pode admitir que se façam filmes como o da Bruna Surfistinha com dinheiro público.
– O cara paga menos para a mulher porque ela engravida.
– Eu não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco [de que um filho case com uma negra] porque meus filhos foram muito bem-educados.
A gramática do machismo brasileiro passa pela compreensão dos laços imaginários e simbólicos entre dois discursos que são articulados pelo messianismo, sempre orientado a mobilizar e unir grupos por compartilhamento de afetos idênticos, como mostrou Freud em seu já centenário Psicologia das massas e análise do eu.
Além do messianismo em comum, o bolsonarismo e o cristianismo de extorsão compartilham os seguintes pressupostos: monoteísmo, apego a um aparato de dogmas congelados no tempo e massas de sujeitos apegados a uma religiosidade/subjetividade de baixa extração. Freud observou com as grandes guerras como massas presas pela trama messiânica se aproximam mais do primitivo do que do civilizado, mais ao instinto do que à pulsão. Quando Edir Macedo, que abençoou Bolsonaro antes e depois das eleições, anunciou que as mulheres não poderiam, se quisessem servir ao Senhor, fazer faculdade ou serem as “cabeças” da família, a cicatriz aberta do machismo brasileiro foi remarcada a ferro e fogo no ar de nossos tempos. As frases do pastor também são dignas de nota:
– Se ela fosse doutora, e tivesse um grau de conhecimento elevado, e encontrasse um rapaz que tivesse um grau de conhecimento baixo, ele não seria o cabeça. E se ela fosse a cabeça, não serviria à vontade de Deus.
– Eu quero que a minha filha case com um macho, e não com um homem que abre a porta do carro. Se não for assim, o casamento está fadado ao fracasso.
Na biografia de Jesus que escreve no livro Vida, Leminski refere que um dos fundamentos do machismo está no Gênesis, no momento em que Deus tira uma costela de Adão para fazer a mulher. Nesse mito inaugural do cristianismo há uma inversão da realidade, já que nele a mulher é quem sai do homem. Não é demais dizer que as consequências da inversão operada nesse mito fundante do cristianismo ainda nos tocam profunda e tragicamente. No Deuteronômio, a punição para a mulher que mente sobre sua virgindade é o apedrejamento. Também o conhecido relato de Provérbios, VII (25-27), confirma o truculento repúdio às mulheres: “a mulher é mais amarga que a morte porque é uma armadilha; seu coração, uma cilada; suas mãos, cadeias; quem ama Deus foge dela, quem é pecador é capturado por ela”. Eis os riscos da idolatria a um texto.
Como as palavras cristãs nos tatuam desde a traição de Eva, uma subjetividade machista assentada na mitologia cristã nos conforma. Por isso as ações políticas agarradas a esse cristianismo convertido em delírio social reverberam nosso machismo violento.
Ainda que o governo propagandeie a aprovação de quatorze novas leis que supostamente ampliaram a proteção à mulher, números do CNJ revelam que de 2018 a 2019, na transição Temer-Bolsonaro, os casos de violência doméstica aumentaram quase 10%, e os de feminicídio mais de 5%. O estratagema fascistoide de usar propaganda falsa como mecanismo de governança mais eficaz em um mundo sem rede social como foi o de Hitler cede sempre que a mensagem de marketing é confrontada com dados que não estejam estruturados como psicose delirante. Por isso é que a propaganda, que no plano manifesto aponta quatorze novas leis de proteção, oculta o fato de que de janeiro de 2019 a julho de 2021 o governo economizou propositalmente quase 40% do orçamento disponível para pautas ligadas à promoção e defesa das mulheres.
No que se refere à sexualidade da mulher, o cristianismo não foi menos cruel e irresponsável. É conhecida a relação da caça às bruxas com a demonização da sexualidade feminina pela Igreja Católica. Como aponta Silvia Federici em Mulheres e caça às bruxas (2019), até a Renascença, por conta da rigidez imposta pela cultura cristã, havia limites absolutos que impediam a exploração do corpo feminino. Bruxas medievais que continuam sendo terrivelmente caçadas em diversos países do mundo atual, como aponta o trabalho de Federici.
Se as primeiras revoluções sexuais, que remontam ao início do século XX, já propunham a banalização da masturbação feminina, o reconhecimento das relações lésbicas e o prazer sexual despegado de razões conceptivas, a trama bolsonarismo-cristianismo propugna, sem enrubescer, a subalternização das mulheres, a diabolização do sexo por prazer e a negação de absorventes para mulheres carentes.
Ruy Castro contou na Folha de S.Paulo que recebeu um e-mail de uma pastora, que dizia: “Um coito de dois minutos é mais que suficiente para que um marido insemine sua esposa. A partir daí é tudo vício, perversão e socialismo”. Pode parecer exagero, mas há gente bastante no nosso Brasil profundo que leva isso tão a sério quanto o jacaré de Bolsonaro.
No Paraná, uma jovem de 18 anos, que preferiu não revelar o nome, relatou o término do namoro com o rapaz da mesma igreja porque, apesar dos tesões, o namorado não queria viver em pecado. Além do prazer sexual, a tal igreja também proíbe que os fiéis escutem músicas que não sejam de louvor a Deus, o que faz do evangelismo brasileiro o único fenômeno capaz de colocar Chico Buarque e sertanejo universitário no mesmo balaio, como se fossem coirmãos de Satã. Se, como relata Federici, nos anos 1920 a promiscuidade sexual da mulher era tratada como doença mental a ser punida em manicômios com lobotomia e esterilizações, cem anos depois a penalização foi intensificada no Brasil, que assiste, com pequeníssima capacidade de reação, a uma verdadeira pandemia de violência contra as mulheres.
O veto à distribuição de absorventes compõe um novo capítulo do machismo violento de Bolsonaro. Ivan Jablonka relembra em Homens justos (2021) que a menstruação é historicamente associada a superstições negativas como as que sustentavam que ela fazia o vinho azedar, as colheitas murcharem e as abelhas morrerem. Em várias culturas a menstruação está associada ao período de impureza e de segregação da mulher, desde sempre ensinada a ter vergonha e nojo do sangue menstrual.
Não é preciso muita empatia ou capacidade cognitiva para perceber o quão cruel é a ponte que liga os discursos do bolsonarismo, e suas ações políticas, ao imaginário cristão que ainda teima em subjugar as mulheres.
A composição do governo Bolsonaro espelha a mesma presença subalternizada da mulher nas igrejas cristãs Brasil afora. Materialmente, esse estado de coisas formata as desigualdades salariais entre homens e mulheres, o desequilíbrio nas tarefas domésticas e os rostos destinatários de xingamentos, tapas e socos. É esse complexo de reações nefastas que aparece como produto da subjetivação patológica do machismo no Brasil. Reações que foram e ainda são chanceladas pelo conjunto de crenças legadas pelo cristianismo, seja o perverso, que faz do estelionato um trabalho, seja o soft, que ainda não estranha que Madres não conduzam missas.
O combate e a terapêutica dessa psicopatologia social passam não apenas por boa vontade e esforço pessoal, mas principalmente por obra política, o que absolutamente não deve se restringir à manufatura de leis, mas à cultura, à civilidade, à educação familiar e aos novos modos de viver em comunidade. Talvez, assim, um machismo em recuperação possa ter menos chances de recair tão profundamente em seus piores sintomas. Afinal, que ninguém jamais esqueça que foi do casamento do bolsonarismo com o cristianismo que o Brasil pariu (ou abortou?) o mais autoritário e machista de todos os governos desde a redemocratização.
Paulo Ferrareze Filho é professor, faz pesquisa de pós-doutorado em Psicologia Social na USP e é psicanalista em formação.