Maiores riscos
Silvio Caccia Bava
Se o golpe se consumar, teremos como presidente Michel Temer, acusado de manter contas em paraísos fiscais e de receber propinas de empresas para facilitar seus negócios com o governo. Há também processos que pedem seu impeachment, protocolados na Câmara, além das ações pela cassação da chapa em tramitação no Superior Tribunal Eleitoral. Sua preferência eleitoral na última pesquisa de opinião é de 1%. Ele será o presidente do 1% mais rico.
Esse presidente terá de dividir o butim do Estado entre as forças políticas que apoiaram o golpe, partidos que estão longe de ser programáticos ou ideológicos. As concessões a que será obrigado comprometem a governabilidade. Seus aliados querem tirar proveito do controle do aparelho do Estado. O que vai prevalecer são as estratégias de ajuste reclamadas pelos promotores do golpe e, para o baixo clero que integra esses partidos aliados, os interesses corporativos, míopes, que favorecem empresas em licitações, desviam recursos, privatizam o que é público.
O Parlamento foi tomado de assalto pelas grandes empresas que financiaram a última campanha eleitoral; suas bancadas representam cerca de 70% dos deputados eleitos, mas mesmo as elites financeiras e empresariais parecem surpresas com os representantes que elegeram. A votação na Câmara dos Deputados sobre a abertura do processo de impeachment da presidenta foi um espetáculo patético, comentado pelos mais importantes jornais internacionais, que se surpreenderam com a mediocridade e o fundamentalismo dos deputados. Para além disso, os parlamentares de direita tomam a atitude de bloquear o trabalho legislativo na Câmara dos Deputados para pressionar o Senado a votar o impeachment. Dão seguimento a atitudes como a aprovação das pautas-bomba, que aumentam o gasto público no momento de o governo promover um ajuste, na perspectiva do “quanto pior, melhor”. Em vez de se preocuparem com as questões de interesse público, apostam na geração do caos. Isso só é possível com a continuidade de criminosos como Eduardo Cunha na condução dos trabalhos legislativos. A situação atual mostra um Legislativo corrompido, capturado pelos interesses empresariais, que elegeu parlamentares que, em sua grande maioria, não têm a mínima preocupação com o interesse público, com a garantia de direitos. Um distanciamento enorme vai se evidenciando entre a sociedade e seus dramas e o mundo dos partidos e dos parlamentos (federal, estaduais e municipais). A situação mostra também uma incapacidade de as forças democráticas reverterem esse quadro.
Ao assumirem o governo, os promotores do golpe vão cobrar seu preço: o desmonte do Estado e a redução do custo da força de trabalho. São termos muito genéricos para designar a redução do valor real dos salários, da previdência, do corte no orçamento da saúde, da educação, dos programas sociais etc.
Maquiavel já dizia: quando você tem de fazer o mal, faça-o de uma vez. O bem, faça aos poucos. Os primeiros meses do governo Temer, mesmo que ele esteja preocupado em não prejudicar ainda mais sua imagem, sofrerão a pressão neoliberal pelo ajuste e serão de arrocho e destituição de direitos, dando continuidade a uma espiral insensata que pode levar o país a viver graves comoções sociais.
O cenário das eleições municipais deste ano vai se contaminar com a política nacional. Como irá se expressar o desencanto das maiorias com nossos partidos e instituições políticas nestas eleições, que não têm mais financiamento empresarial? As eleições se darão em meio a intensas mobilizações de defesa de direitos. Há espaço para aventureiros, salvadores da pátria… mas também para uma rearticulação do campo da esquerda, liderada não mais pelo PT, mas por uma coalizão mais ampla, pela Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo.
Em recente entrevista à BBC, em Londres, o senador Aloysio Nunes, do PSDB, declarou que o deputado Eduardo Cunha vai cumprir todo o seu mandato como presidente da Câmara dos Deputados. Até o início de 2017. É a recompensa pelos bons serviços prestados ao golpe.
Outra novidade é que se anuncia o fim da Lava Jato. Não seria por outra razão que o PP se bandeou na última hora em favor do golpe. Grande parte de seus parlamentares é acusada de corrupção. Em troca do enterro da Lava Jato – o que, aliás, interessa diretamente também a todas as principais lideranças do PSDB, pelo medo da prisão –, eles votaram pelo impeachment. A Lava Jato ainda pode pegar um ou outro político, mas, por meio dessa aliança entre partidos que apoiaram o golpe, ela será encerrada ou posta em banho-maria, afinal já cumpriu seu papel de promover o processo do impeachment da presidenta e criminalizar o PT. A corrupção vai voltar em grande estilo, e os atuais denunciados, a começar por Eduardo Cunha, serão anistiados pelo silêncio de um Supremo Tribunal Federal que, com todas as provas em mãos, resolve não agir.
Para muitos daqueles que se aferraram ao bordão do combate à corrupção, o enterro da Lava Jato será uma surpresa e vai pôr em questão quanto foram manipulados. E essa indignação pode se voltar contra os promotores do golpe. Isso é uma possibilidade que demanda uma atuação firme e afirmativa dos que defendem a democracia e a legalidade em denúncia do fim da Lava Jato. Abre-se novamente o campo da disputa das narrativas. Por que não processar todos os políticos do PMDB, PSDB, PP, e todos os outros partidos menores que estão tão ou mais envolvidos na Lava Jato que o PT?
O sistema político entrou em colapso. Ainda que as instituições continuem funcionando, elas não têm nenhuma legitimidade. A grande maioria não confia nos partidos políticos e não está contente com o sistema como um todo. O governo não representa e a sociedade se polariza. O conflito será nas ruas, em manifestações públicas, pacíficas ou não. O elemento surpreendente nesta conjuntura é a presença dos movimentos sociais e da cidadania, que vai tomando as ruas. Com uma insuspeitada força, novos coletivos e movimentos sociais entram na disputa.
Existem perigos, porém, que ainda não estão sendo considerados. Há pedidos de impeachment protocolados, que aguardam avaliação na Câmara dos Deputados, inclusive pedidos de impeachment contra Michel Temer. Eduardo Cunha guarda esse trunfo na mão. Ele poderá ameaçar Temer com o impeachment a qualquer momento. E continua sendo o terceiro na linha sucessória do poder, ou futuramente o segundo. Se Temer for afastado, ele assume.
Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.