Mais tecnologia, mais exploração, mais adoecimentos: a face oculta do ‘tecnosolucionismo’ no mundo do trabalho
Em nome da “produtividade”, empresas de tecnologia negligenciam a saúde de seus trabalhadores e trabalhadoras, o que pode ser agravado pelo uso de inteligência artificial
19 de fevereiro de 2024, segunda-feira. Cajamar, região metropolitana de São Paulo. Centro de Distribuição do Mercado Livre. Foi neste lugar e nesta data que, minutos após receber a notícia de que estava demitido, Luiz Felipe Dominicalli morreu por suicídio. Segundo os colegas, Luiz tinha o sonho de ser efetivado na empresa, até aquele momento ele trabalhava para uma terceirizada.
07 de abril de 2025, segunda-feira. Cajamar, região metropolitana de São Paulo. Centro de Distribuição do Mercado Livre. Foi neste lugar e nesta data que o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, disse o seguinte: “eu conheço muita fábrica de automóveis, eu conheço muita empresa da construção civil, eu conheço muita loja do comércio, muito shopping, eu conheço muito restaurante, eu conheço muitas fábricas em outro país, mas eu nunca tinha entrado em nada parecido com o que eu vi hoje aqui. Nunca vi!”.
Certamente, a declaração entusiasmada de Lula tem a ver com a percepção de que, como nunca antes na história (não apenas deste país), o mundo do trabalho é profundamente caracterizado pela centralidade tecnológica. É assim que o Mercado Livre se define: “somos uma empresa de tecnologia”, está escrito em seu próprio site, com “a entrega mais rápida do Brasil”. Naquele centro de distribuição, trabalhadores humanos e robôs dividem o mesmo espaço. Agilidade, ganho de tempo e aumento da produtividade são mencionados nos discursos dos representantes da empresa como resultados desta transformação que encantou Lula.
E o Mercado Livre não é um caso isolado. Como dito, o mundo do trabalho é, mais do que nunca, um mundo tecnológico. Esses mesmos ideais de velocidade, otimização do tempo e produtivismo pautam o trabalho mediado por plataformas digitais. O iFood, que também se apresenta como “uma empresa brasileira de tecnologia”, menciona em seu site que está desenvolvendo “modelos de inteligência artificial para fazer uma entrega cada vez mais personalizada, eficiente e confiável”.

Mas esta preponderância das tecnologias tem significado condições melhores de vida para os trabalhadores e trabalhadoras?
Tomemos o exemplo do iFood. Todos os entregadores que atuam para esta empresa estão submetidos a um indicador de classificação – o score, baseado em cinco critérios: pedidos entregues, pedidos coletados, avaliações, pontualidade e comparecimento. A explicação da empresa sobre o item pontualidade é simbólica desta lógica de aceleração: “se você entrega 10 pedidos e atrasa 60 minutos em apenas um deles, sua média é de 6 minutos de atraso por pedido”.
E se acontecer algo com o trabalhador no caminho de uma entrega? Bem, o iFood tem – como a própria empresa chama – “dicas de ouro para você manter seu score sempre alto”. Por si, a ideia de “manter o score sempre alto” já é reveladora da lógica de produzir sempre, trabalhar sempre. Mas o quadro é ainda mais perverso quando percebemos que as tais “dicas de ouro” são, na verdade, um atestado de “se vire” da empresa para os trabalhadores. Vejamos algumas:
– “Mantenha a bateria do celular acima de 15%, assim você evita deixar de fazer uma coleta ou uma entrega por falta de bateria no celular”;
– “Mantenha seu veículo com a manutenção em dia e com combustível suficiente para evitar problemas durante a rota”;
– “Confira o tempo indicado no app para deslocamento até a loja e até o cliente, e procure ser pontual”;
– “Cuide bem do pedido, evitando que ele caia ou fique virado na bag”.
– “Evite desvios de rota e cancelamentos de pedidos”.
As dicas de ouro do iFood ilustram com precisão a ideia de cidadania sacrificial, da pesquisadora Wendy Brown. Ao discutir este conceito, Rafael Grohmann, professor da Universidade de Toronto, diz que, deste modo, “os trabalhadores são obrigados a fazer a gestão das próprias sobrevivências com toda a sorte de vulnerabilidades, tendo de escutar que isso é um ‘privilégio’”.
O que aconteceu com Yuri de Souza, em 2022, também é emblemático disto. Onze dias após morrer fazendo entrega pelo iFood, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, Yuri teve a sua conta desativada por “má conduta”. Dito de outra forma, o próprio Yuri foi responsabilizado por sua morte.

O que as empresas “de tecnologia” optam em não dizer é como esse tipo de “dicas de ouro” e as cobranças por agilidade e produtivismo têm provocado, direta e indiretamente, adoecimentos psíquicos e emocionais em trabalhadores e trabalhadoras, alguns resultando em morte.
Como escrito por Gabriel Teles, em texto no The Intercept, “a estética da instantaneidade — do rastreamento em tempo real, da entrega no mesmo dia, da vitrine virtual permanentemente abastecida — exige uma infraestrutura oculta. Essa infraestrutura não é feita apenas de inteligência artificial, robôs e softwares. É feita, sobretudo, de braços, pernas e espinhas tensionadas: trabalhadores e trabalhadoras que movem, embalam, separam e etiquetam, dia e noite, em jornadas marcadas pela vigilância e pela aceleração”.
Em entrevista a uma reportagem do Uol, Nicollas Gabriel, que trabalhou como terceirizado no mesmo local que Luiz Felipe, relatou que tem dificuldades para mexer três dedos das mãos, consequência, de acordo com o médico que o atendeu, dos movimentos repetitivos que fazia – apertar o gatilho das máquinas que leem os códigos dos produtos. “Se você falasse que já estava correndo, líderes diziam que dava para correr mais. Fui demitido por me recusar a subir escadas para colocar embalagens no alto.”, contou Nicollas, que tinha a meta de 2.000 produtos por dia, trabalhando das 14h às 22h, na escala 6×1.
Tanto em empresas como o Mercado Livre quanto no caso de trabalhadores de entregas, a exemplo do iFood, ou de motoristas por aplicativos, como a Uber, sintomas de exaustão física, problemas cardiovasculares e respiratórios, como consequências do excessivo tempo de trabalho sentado, da exposição constante à poluição urbana e da ausência de direitos trabalhistas, são comumente citados.
No caso dessas duas modalidades de trabalho – motoristas por aplicativo e entregadores – tem crescido, ano após ano, o número de ações judiciais que reivindicam o reconhecimento de vínculo empregatício com empresas como iFood e Uber: de 659 processos em 2019 para 9,6 mil em 2023. A maioria das solicitações, porém, tem sido rejeitada pela Justiça do Trabalho. Ao mesmo tempo, o Supremo Tribunal Federal tem sinalizado a necessidade de uma regulamentação legislativa. A esse respeito, está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar (PLC) 12/2024, que estabelece direitos mínimos para motoristas por aplicativo (como salário mínimo mensal, jornada máxima de trabalho diário, contribuição previdenciária, licença-maternidade para motoristas mulheres e representação sindical específica, dentre outros). Vale enfatizar que a proposta não contempla trabalhadores e trabalhadoras dos serviços de entrega, visto que empresas como iFood, Rappi e Mercado Livre não participaram do acordo que resultou na proposta do PLC.
Vale lembrar, aliás, que algumas das principais empresas que atuam nestes setores, como Uber, Rappi e 99, obtiveram nota zero em todos os critérios de avaliação de condições de trabalho em plataformas digitais, de acordo com relatório do projeto Fairwork. O iFood obteve nota 2 (o máximo era 10). Os pesquisadores do projeto também chamam a atenção para a constante presença de representantes dessas empresas no Congresso Nacional, o que dificulta a aprovação de propostas legislativas que avancem na concretização dos direitos trabalhistas, a exemplo do PLC 12/2024.
Para complexificar a relação entre tecnologias e mundo do trabalho, este cenário é dependente da propagação diuturna daquilo que Byung-Chul Han qualifica como “sujeito de desempenho”. Ser proativo, ser mais rápido, adiantar tarefas são fatores que têm levado a aumentos significativos de depressão, transtornos de personalidade, síndromes de ansiedade, hiperatividade e burnout em trabalhadores e trabalhadoras.
“As metas abusivas me davam ansiedade. Quando saí de lá, achei que nunca mais conseguiria trabalho. Se mesmo ultrapassando as metas eu não fui aprovado, o que mais poderia fazer?”, foi o questionamento feito por Matheus Alves, ex-funcionário do Mercado Livre, que trabalhava na mesma equipe de Luiz Felipe.
Como agravante, para que funcionem como sujeitos de desempenho, os trabalhadores necessitam de um estado permanente de positividade nas relações de trabalho. Lembra do Luiz Felipe? Em nota após a sua morte, o Mercado Livre o tratou por “colaborador” e não “trabalhador”. Já Yuri, o iFood tratou por “parceiro”. Sabe o nome da sede principal do Mercado Livre no Brasil? Melicidade! Segundo a empresa, “é uma combinação do apelido MeLi com a palavra cidade, remetendo também à Felicidade”.
O panorama é ainda mais desafiador, dado o avanço de tecnologias de Inteligência Artificial em diferentes setores da vida social e nas dinâmicas laborais. Uma pesquisa da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontou que 37% dos postos de trabalho no Brasil estão expostos à inteligência artificial generativa. Considerando os países da América Latina e do Caribe, o percentual do Brasil é inferior apenas ao da Costa Rica. São trabalhadores e trabalhadoras que podem, portanto, passar por mudanças cruciais nas formas de trabalho. Substituição por robôs, resultando em aumento do desemprego, e submissão a lógicas ainda mais perversas de produtividade estão entre os possíveis efeitos.
Outro aspecto relevante nesta questão tem a ver com o que a professora Fernanda Bruno, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nomeou de “economia psíquica dos algoritmos”. Em seus estudos, Fernanda alerta para o fato dos dados psíquicos e emocionais, a exemplo dos sentimentos de angústia e ansiedade, como narrado acima por Matheus Alves, terem se convertido em ativos valiosos para o modelo de negócio das plataformas digitais.
Num mundo do trabalho cada vez mais conformado pela prevalência das tecnologias digitais, a felicidade referida pelo Mercado Livre não chega às famílias dos trabalhadores e trabalhadoras. Ao contrário, o que chegam são adoecimentos psíquicos e emocionais. Assim, o ‘tecnosolucionismo’ – com toda a ideologia que o sustenta e acompanha – revela-se uma falácia, uma estratégia que serve para reforçar a exploração da classe trabalhadora e ocultar as perversidades que seguem vitimando mulheres e homens do nosso país. É por isto que, nos tempos em que vivemos, o debate sobre trabalho é também um debate sobre tecnologias.
Paulo Victor Melo é jornalista, professor e pesquisador de Políticas de Comunicação. Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.