Malabarismo semântico
O argumento da
"O direito de intervenção e o emprego da força se tornaram a regra, em oposição ao angelismo [desejo de pureza absoluta] que vivi na Bósnia”, alegra-se Phillipe Morillon.1 Esse general francês viveu os massacres de Srebrenica em julho de 1995 enquanto participava, na Bósnia-Herzegovina, de uma força das Nações Unidas impotente. Sua função resumia-se a uma missão humanitária, e as regras de comprometimento dos capacetes azuis os limitavam a uma tímida legítima defesa.
Quase vinte anos depois, o “angelismo” em vigor em Nova York e denunciado por um general cheio de remorsos não é mais apropriado: em janeiro de 2011, para proteger os marfinenses à beira de uma nova guerra civil, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, lançou helicópteros brancos que atiram mísseis contra o bunker do presidente destituído Laurent Gbagbo. O argumento da “responsabilidade de proteger as populações”, adotado pela Assembleia Geral da ONU em 2005, foi invocado, a partir de março de 2011, para justificar a operação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contra o regime do coronel Muamar Kadafi na Líbia.
Esse novo intervencionismo humanitário, avatar do direito ou do dever de intervenção, permanece controverso, mesmo se o advento de uma “comunidade internacional” – com o nascimento, em 1945, das Nações Unidas – une-se à vontade de obter uma soberania limitada dos Estados falidos, algo já desejado no século XVII pelo jurista holandês Hugo Grotius, célebre por ter sofrido críticas de Voltaire.
Haveria então guerras justas, ou simplesmente apenas a guerra? De Santo Agostinho aos franceses Bernard Kouchner (médico e político) e Bernard-Henri Lévy (neofilósofo, conselheiro do presidente Nicolas Sarkozy), passando por George W. Bush e seus “ataques preventivos” contra o “Eixo do Mal”, muitos defenderam o uso moral da violência. Eles investem-se de todas as virtudes diante da sorte catastrófica dos fracos, os quais seria preciso socorrer sem demora, custasse o que custasse, atribuindo ilegitimamente a alguns o direito de intervir em países teoricamente soberanos e decidindo eles mesmos encontrar nisso uma necessidade imperativa, até o ponto de tentar impô-la no direito internacional.
Outro exemplo do belo disfarce militar humanitário: “ganhar os corações e os espíritos”. Por não terem conseguido impor sua democracia no Afeganistão e sua remodelagem geopolítica no Oriente Médio, os chefes militares norte-americanos tentaram retomar as teorias coloniais de contrainsurreição: conversar, seduzir, ajudar, comprar, informar-se. Mas não funcionou, como antes não havia funcionado para os soviéticos, os britânicos, os franceses etc. E todos agora só pensam em partir…
O serviço humanitário pode, é claro, ter a função de substituição de vocação para os militares que têm muito a ser perdoado, que não dispõem mais dos recursos de recrutamento nem dos orçamentos de outrora. Mas eles mesmos percebem o engano que é não assumir a responsabilidade da guerra, do uso da força e da violência, e do risco da morte. E frequentemente culpam os responsáveis políticos por lançá-los nessa mistura de gêneros.
Pois há um “jogo por baixo dos panos”: nenhuma operação, mesmo paramentada com o azul da ONU e aparentemente destinada a salvar vidas inocentes, é quimicamente pura. As segundas intenções estratégicas, econômicas e geopolíticas permanecem. A Organização das Nações Unidas não existiria, sem dúvida, sem os grandes Estados que a financiam, que controlam o Conselho de Segurança e que não se esquecem nunca de velar por seus próprios interesses, mesmo quando parecem estar a serviço de uma “comunidade internacional” que eles manobram segundo sua vontade.
Acrescenta-se a isso a objeção, permanente, da ideia de dois pesos, duas medidas: se as grandes nações madrinhas da ONU se outorgam o direito, em nome da “responsabilidade de proteger”, de impor seus valores e de escolher que ditador eliminar, por que não fizeram nada na Síria, no Irã, na Ásia Central e, já que estamos falando nisso, na Rússia e na China? Sem esquecer que toda resolução pela guerra, mesmo sob o manto humanitário, acaba – no calor do combate e na desordem da sociedade – por confrontar os extremos, glorificar os “bons”, satanizar os “malvados”, correndo o risco de comprometer por um bom tempo a necessária, delicada e paciente procura por uma solução política a longo prazo.
Para Rony Brauman, cofundador da Médicos sem Fronteiras, “é impossível dar início a um círculo virtuoso de democratização pela violência”. A violência que a rebelião líbia, apoiada pela Otan, empregou durante o cerco de Sirte, no outono [do Hemisfério Norte] de 2011, confirma esse mal-estar. E o teórico do serviço humanitário, a quem a euforia da queda dos tiranos não abala, acrescenta: “Conhecemos as quedas de Mogadíscio, Cabul, Bagdá − são momentos de otimismo para alguns, mas em todas as vezes, mais cedo ou mais tarde, a realidade nos alcança.”