A malária em Madagascar, no sul da África
Doença não atinge populações e grupos sociais de maneira indiscriminada, e sua transmissão é fortemente influenciada por aspectos socioeconômicos, geográficos e ambientais
A malária é uma das enfermidades mais antigas da história. Há 10 mil anos, quando a humanidade descobriu a agricultura, seu intenso contato com mosquitos permitiu que a doença se estabelecesse e, mesmo antes de conhecer seu agente etiológico, Hipócrates, na Grécia, a descrevia como uma febre terçã: no dia um e no dia três. Na Catedral de St. Thomas, em Mumbai, na Índia, onde a doença é ainda um problema de saúde pública, há lápides de pessoas sepultadas dentro da igreja, onde se lê que a causa da morte teria sido uma febre maligna.
Em 1880, o médico francês Alphonse Laveran, na Argélia, após constatar, em autópsias, a presença de pigmentos escuros no baço e no fígado de pacientes mortos por malária, resolveu estudar o sangue e observou, pela primeira vez, a presença de um pigmento acastanhado e do protozoário Plasmodium no interior das hemácias. Era a descoberta científica da doença. Já em 2008, o Plasmodium knowlesi, parasita até então conhecido como causador de malária unicamente em macacos, foi também observado em casos complicados de infecção humana.1
A malária é considerada um grave problema de saúde pública no mundo e uma das enfermidades de maior impacto na morbidade e na mortalidade da população dos países situados nas regiões tropicais e subtropicais do planeta. Doença infecciosa transmitida por mosquitos e causada por protozoários parasitários do gênero Plasmodium, os sintomas mais comuns são febre, fadiga, vômitos e dores de cabeça. Em casos graves pode causar icterícia, convulsões, coma ou morte. Os sintomas começam a se manifestar entre dez e quinze dias após a picada do mosquito, e em 2021, 247 milhões de casos de malária foram registrados em 84 países endêmicos. No mesmo ano, 619 mil pessoas morreram em decorrência da doença.2
A malária não atinge populações e grupos sociais de maneira indiscriminada, e sua transmissão é fortemente influenciada por aspectos socioeconômicos, geográficos e ambientais. A malária expõe a dura face da desigualdade social e atinge em maior proporção localidades pobres e com dificuldade de acesso a serviços de saúde. No mundo, o continente africano é a região mais afetada, principalmente os países de Uganda, Nigéria, Etiópia e Madagascar.
Madagascar, país localizado no sul da África e próximo a Moçambique, é uma das localidades mais afetadas pela doença. O número total de casos em 2023, 2,8 milhões com 400 mortes, ultrapassou os registros do ano anterior, 1,7 milhão.
No distrito de Ikongo, onde Médicos Sem Fronteiras (MSF) fornece assistência médica e nutricional, a população de 32 mil pessoas enfrenta uma dupla crise, causada pela malária e pela desnutrição, agravadas por desafios geográficos e climáticos. As crianças menores de cinco anos estão em risco de complicações, pois a malária afeta 7,5% desse grupo no país. Presente em Ikongo desde 2022, as equipes de MSF, em colaboração com autoridades sanitárias de Madagascar e promotores de saúde, diagnosticaram e trataram 2.205 crianças que sofriam de desnutrição e malária até março de 2024. Desse total, 256 casos só este ano.
A temporada de malária coincide com a de ciclones e chuvas, que vai de outubro a maio. Durante esse período, as pessoas em Madagascar têm dificuldades de acessar os centros de saúde, colocando as vidas das crianças desnutridas em um risco ainda maior. O Dr. Nantenaina, médico no Centro de Terapia Nutricional Intensiva administrado por MSF, explica: “quando a chuva é intensa, fornecer cuidados para crianças se torna difícil. As estradas ficam lamacentas, inundadas e intransitáveis. É complexo tanto para profissionais de saúde como para os pacientes se locomoverem, dificultando o acesso dos doentes aos centros de saúde ou o envio dos mesmos de volta para suas casas”.
Em áreas de difícil acesso, como Ikongo, a distância entre as casas e os centros de saúde é significativa. Soanary, mãe de um menino de 4 anos que sofre de desnutrição e malária, descreve sua jornada: “Depois de ver a condição do meu filho piorar, decidi ir ao centro de saúde mais próximo. Para chegar aqui, tive que caminhar por quatro horas e atravessar a água, carregando meu filho nas costas”. Infelizmente, Soanary não é a única enfrentando essa situação.
Madagascar tem sido atingida, ainda, por eventos climáticos extremos, que dificultam o acesso aos serviços de saúde e prejudicam o estado geral de saúde e nutrição. Essa situação tem influenciado o aumento dos casos de malária e desnutrição, pois mudanças na temperatura, precipitações de chuva, ondas de calor e inundações podem impactar o comportamento e a sobrevivência do mosquito Anopheles, levando ao aumento da transmissão da doença dentro das comunidades. No distrito de Ikongo, que possui clima tropical úmido, os efeitos das mudanças climáticas são particularmente severos. As pessoas ficam isoladas da assistência em saúde, agravando a situação nutricional já antes comprometida.
Muitas aldeias em Ikongo são cercadas por pântanos e rios. As chuvas fortes provocam inundação de plantações e campos de arroz, agravando as condições nutricionais precárias na região. “Durante a temporada de chuvas, nossos centros de saúde recebem muitos casos de malária”, explica Evelyne, enfermeira do centro de saúde primário de Ikongo. “Por semana, temos pelo menos um novo caso de criança desnutrida e também com malária grave durante a temporada de chuvas”, diz o Dr. Nantenaina. Em resposta à insegurança alimentar agravada por vários fenômenos climáticos e ciclones, as equipes de MSF aumentaram as atividades na parte sul do país, que foi a mais afetada. Atualmente, MSF apoia sete centros de saúde primários e duas clínicas nutricionais intensivas para diagnosticar e tratar crianças desnutridas no distrito de Ikongo.
A malária é consequência das formas espoliativas como nos relacionamos em sociedade e é um marcador importante da degradação do meio ambiente, das desigualdades sociais e da pobreza, que impõe às populações mais vulnerabilizadas a precarização da vida. São pessoas expostas à morte e à falta de serviços de saúde. São as vítimas da febre terçã.
Referências
- Daniel-Ribeiro CT, Brasil P, Lacerda MVG. Malária no Brasil: novos desafios para uma velha doença. Ri de Janeiro: Fiocruz, 2010. http://www.fiocruz.br/ioc/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1066&sid=32&tpl=printerview
- Brasil. Ministério da Saúde. Situação Epidemiológica da Malária. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/m/malaria/situacao-epidemiologica-da-malaria
Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
*Artigo produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.