Manipulação digital na África
No início de junho, o Facebook fechou 446 páginas, 96 grupos e mais de duzentas contas do Instagram administradas pela companhia franco-tunisiana URéputation. A empresa havia tentado influenciar, por meio da divulgação de informações falsas, eleições da África francófona. Laboratório global das manipulações digitais, o continente reagiu de diferentes maneiras
Por muito tempo colocadas no museu das utopias, as eleições democráticas se disseminaram na África no decorrer das três últimas décadas. Mas, à medida que o continente se conecta à internet, o risco de manipulação digital cresce, principalmente por meio das redes sociais. A ameaça parece ainda mais grave na medida em que passa muitas vezes despercebida.
Um detalhe confirma essa ameaça: foi na África, principalmente na Nigéria e no Quênia, que a Cambridge Analytica testou suas técnicas fraudulentas de obtenção de dados utilizadas no referendo sobre o Brexit e na eleição presidencial norte-americana em 2016.1 Os eleitores desses países serviram, sem seu conhecimento, como cobaias de uma estratégia em três etapas. Em primeiro lugar, recolher, principalmente no Facebook, dados pessoais de milhões de cidadãos: idade, sexo, preferências culturais e políticas. Em seguida, analisar essas informações para definir microcategorias. Enfim, orientar as escolhas individuais, com auxílio de algoritmos, por meio de uma propaganda feita sob medida, em plataformas digitais.2
Dois ex-funcionários da Cambridge Analytica, Brittany Kaiser e Christopher Wylie, revelaram que, nas eleições presidenciais de 2013 e 2017 no Quênia, a empresa britânica, que assessorava o chefe de Estado, Uhuru Kenyata, coletou dados pessoais dos eleitores e, considerando esses perfis, desenvolveu uma propaganda baseada em mentiras e exageros.3
Na Nigéria, seis semanas antes da eleição presidencial de 2015, um bilionário local que, segundo as declarações de Wylie, estava “apavorado com a possível vitória do candidato de oposição”, Muhummadu Buhari, ofereceu, pagando US$ 2 milhões, os serviços da Cambridge Analytica. Recorrendo a especialistas em roubo de informações digitais (hackers), ela divulgou nas redes sociais o prontuário médico do candidato Buhari, então com 72 anos, dando a entender que sua saúde não permitiria que exercesse o poder. Ela também produziu vídeos mostrando assassinatos de civis atribuídos a islamitas, sugerindo que uma vitória do candidato de oposição, muçulmano, provocaria uma escalada de violência. Apesar desses esforços, dessa vez o candidato de oposição venceu.
O fim de uma longa paixão
A plataforma mais popular do continente africano, o Facebook, com mais de 200 milhões de usuários, abriga todo tipo de manipulação. Enquanto criava páginas com identidades falsas, uma empresa chamada Archimedes Group, com base em Tel Aviv (Israel) e que depois desapareceu, apoiou candidatos nas eleições presidenciais no Togo, na República Democrática do Congo (RDC), na Nigéria e na Tunísia em 2019.4 Cerca de 2,8 milhões de usuários foram visados. Na Zâmbia e em Uganda, com a ajuda de funcionários da gigante das telecomunicações chinesa Huawei, os governos organizaram a vigilância eletrônica de personalidades da oposição e da sociedade civil organizada.5 Desse modo, em Uganda, a polícia teve acesso à conta de WhatsApp de Bobi Wine, músico popular e opositor do presidente Yoweri Museveni. Esses roubos permitiram às autoridades barrar a mobilização dos adversários.
A sucessão de revelações desse gênero marca o fim de uma longa paixão. De fato, as redes sociais foram por muito tempo percebidas como catalisadores da participação política, vetores da ampliação dos modos de mobilização e locais de expressão para os sem voz em todo o continente negro.6 Em 2007, Goodluck Jonathan havia anunciado, no Facebook, sua candidatura a um novo mandato presidencial na Nigéria, um ato inédito que marcava a entrada de atores políticos africanos na comunicação política moderna. Durante a crise pós-eleitoral do Quênia em 2008, jovens engenheiros e blogueiros criaram uma plataforma, a Ushahidi, espécie de cartografia colaborativa das violências ocorridas após as eleições.7 O sonho dos profetas da “tecno-utopia” parecia ter se tornado realidade.
No entanto, desde a metade da década passada, muitos dirigentes africanos denunciaram manipulações digitais para tentar controlar as redes sociais. Em 2006, o governo etíope bloqueou o acesso a certos sites, inaugurando essa prática liberticida na África subsaariana. A mesma medida seria adotada no Chade, no Burundi, em Uganda, na RDC, em Camarões e no Togo. Entre 2016 e 2019, 22 países africanos interromperam ou diminuíram a velocidade de acesso à internet, geralmente em períodos eleitorais.
Paralelamente a esses cortes, os líderes de oposição e militantes da sociedade civil foram presos ou tiveram prisões domiciliares decretadas.8 Mas esse tipo de repressão tem um custo financeiro não negligenciável, visto que setores significativos da vida econômica dependem cada vez mais da internet. Os cortes teriam custado mais de US$ 2,1 bilhões aos países da África subsaariana em 2019.9 A reputação do país que adota essas medidas que atentam contra a liberdade de expressão sofre igualmente.
Mais recentemente, os governos africanos decidiram taxar o acesso às redes sociais. Em Uganda, agora é preciso desembolsar 200 xelins ugandenses (R$ 0,30) por dia para ter acesso ao Facebook, ao Twitter ou ao WhatsApp. No Benin, o acesso custa 5 francos CFA (R$ 0,05) por megabite.10 Essa taxação agrava as desigualdades de acesso, excluindo ainda mais as classes desfavorecidas. Além disso, é difícil ver como ela pode diminuir as manipulações digitais na medida em que são feitas geralmente por sociedades que dispõem de grandes recursos financeiros e agem do exterior.
Por iniciativa de associações e de legisladores nacionais, leis restringem ou dirigem agora a coleta dos dados pessoais em 25 países africanos. Resta o verdadeiro desafio das manipulações on-line. Na África do Sul, a comissão eleitoral emprega centenas de pessoas para rastrear as fraudes e sensibilizar os usuários. Mas ainda é preciso que as instituições nacionais disponham de um poder real de controle e de sanção contra companhias como a Cambridge Analytica ou ainda gigantes, como Facebook e Twitter.
Assim como a carência e o custo elevado da telefonia fixa haviam favorecido a penetração do celular na África por volta dos anos 2000, a carência e o custo elevado dos computadores favoreceram a entrada dos smartphones uma década depois. Estes se tornaram o principal meio de acesso à internet e às redes sociais. Foram os engenheiros quenianos os responsáveis pela tecnologia de pagamentos por meio de aplicativos móveis. Por necessidade, o continente abriu caminho a práticas que se tornaram desde então tendências mundiais, como o uso da carteira eletrônica.11
As plataformas on-line transformaram as relações sociais no continente, mais ainda do que a introdução maciça da telefonia móvel. Com o WhatsApp, o tempo e a distância entre os africanos diminuíram consideravelmente. As milhões de trocas cotidianas que passam por essa plataforma, o aplicativo de mensagens mais popular na África e propriedade da companhia Facebook, ritmam todos os domínios da vida local. Por meio de textos, fotos e vídeos, cerca de 200 milhões de africanos se comunicam, se informam e mantêm um contato imediato com seus parentes dispersos pelo território. Contrariamente às outras regiões do mundo onde se utilizam cada vez mais diversos serviços de mensagem on-line, na África o domínio do WhatsApp é absoluto, colocando essa ferramenta em uma situação de quase monopólio.
Alguns tipos de interação social entre africanos devem sem dúvida perdurar, a despeito das distâncias e dos movimentos impostos pela necessidade de sobrevivência. Em muitas comunidades do oeste africano, por exemplo, onde a procura por trabalho sazonal e a migração em busca de emprego obrigam homens e mulheres a deixar suas casas, os sermões dos imãs de suas comunidades de origem os seguem em suas peregrinações. Uma cena, há alguns meses, no hall do aeroporto de Lomé, no Togo, ilustra essa dinâmica: uma comerciante maliana a caminho da República Centro-Africana escuta o sermão de seu imã em Bamako. No mesmo aeroporto, uma comerciante congolesa acompanha o sermão de um padre de Kisangani, sua região de origem que ela deixara alguns dias antes para compras em Lomé. Ambas utilizam o WhatsApp e a conexão gratuita do aeroporto. Cenas idênticas, de Johannesburgo a Nairóbi, oferecem o retrato de muitos africanos em deslocamento pelo continente, mas seguindo “a atualidade” local e familiar em todos os detalhes, em contextos em que não existe uma imprensa estabelecida. Há duas décadas, a preservação de tais relações sociais era difícil, cara e reservada aos mais ricos.
Três tendências principais desenharão as evoluções políticas ligadas às redes sociais. A primeira é o crescimento do número de africanos conectados à rede. Se apenas 39% da população do continente está on-line, contra ao menos 50% em outras regiões do mundo, esse percentual poderá aumentar rapidamente. Entre 2010 e 2020, o número de pessoas conectadas passou de menos de 5 milhões para mais de 500 milhões, segundo o site Internet World Stats (IWS). Mais determinante ainda, os investimentos em curso sugerem que a aceleração deverá continuar em um ritmo mais rápido. Em 17 de maio de 2020, um consórcio de oito sociedades – Facebook, Orange, China Mobile International, MTN (África do Sul), STC (Arábia Saudita), Vodaphone (Grã-Bretanha), Telecom Egypt e West Indian Ocean Cable Company (Ilhas Maurício) – iniciou a construção de um cabo submarino de 37 mil quilômetros batizado 2Africa, que decuplicará o acesso do continente à internet até 2024.
Alvos de discursos violentos
A segunda tendência é a migração mais acentuada do debate político africano para plataformas digitais. Além do descrédito que sofre a imprensa tradicional, há a relativa facilidade de acesso às redes sociais. No Mali, a campanha legislativa de 2018 foi lançada nessas redes e nas cidades e vilarejos. Finalmente, a terceira tendência, a mais determinante, é a atitude das companhias proprietárias das plataformas: elas procurarão preservar a integridade de escrutínios eleitorais muitas vezes frágeis ou, ao contrário, aplicarão na África a lógica que lhes assegura confortáveis lucros em outros lugares, isto é, a exploração de dados pessoais dos usuários? O futuro das eleições, às vezes acompanhadas de escaladas de violência, depende muito das respostas a essas questões. “Em um futuro imediato”, adverte um relatório da Fundação Kofi Annan, “as eleições nas democracias dos países do sul serão alvo de discursos violentos, de desinformações, de ingerências exteriores e de manipulações sobre as plataformas digitais.”12
A partir do momento em que uma campanha de manipulação está ao alcance das mãos dos mais ricos e que um mercado negro ad hoc, vendendo “cliques”, “likes” e comentários sob medida, existe, para os candidatos menos fortunados a possibilidade que três décadas de escrutínios multipartidários na África possam terminar em fraudes eleitorais maciças de um novo tipo é muito concreta.
André-Michel Essoungou é ensaísta e funcionário internacional.
1 Ler Franck Pasquale, “Mettre fin au trafic des données personnelles”[É preciso acabar com o tráfico de dados], Le Monde Diplomatique, maio 2018.
2 Cf. R. Kelly Garret, “Social media’s contribution to political misperceptions in U.S. presidential elections” [A contribuição da mídia social para equívocos políticos nas eleições presidenciais dos EUA], Plos One, São Francisco, 2019. Disponível em: journals.plos.org.
3 Cf. “The Cambridge Analytica files” [Os arquivos Cambridge Analytica], dossiê on-line do The Guardian, Londres. Disponível em: guardian.com.
4 Cf. Simona Weinglass, “Who is behind Israel’s Archimede group, banned by Facebook for election fakery?” [Quem está por trás do grupo Archimede, de Israel, banido do Facebook por fraude eleitoral?], The Times of Israel, Jerusalém, 19 maio 2019.
5 Joe Parkinson, Nicholas Bariyo e Josh Chin, “Huawei technicians helped african governments spy on political opponents” [Técnicos da Huawei ajudaram governos africanos a espionar oponentes políticos], The Wall Street Journal, Nova York, 15 ago. 2019
6 Cf. Martin Ndela e Winston Mano (eds.), Social media and elections in Africa, v.1, Palgrave MacMillan, Londres, 2020.
7 André-Michel Essoungou, “Young Africans put new technologies to new uses” [Jovens africanos dão novos usos a novas tecnologias], United Nations Africa Renewal, Nova York, abr. 2010.
8 Collaboration on international ICT Policy in East and Southern Africa (CIPESA), State of Internet freedom in Africa 2019, Kampala, set. 2019.
9 Cf. Samuel Woodhams e Simon Migliano, “The Global cost of internet shutdowns in 2019” [O custo global do desligamento da internet em 2019], Top10vpn, Londres, 7 jan. 2020. Disponível em: www.top10vpn.com.
10 Babatunde Okunoye, “In Africa, a new tactic to suppress online speech: taxing social media” [Na África, uma nova tática para suprimir o discurso on-line: taxar as mídias sociais], Council on Foreign Relations, Washington, 2018. Disponível em: www.cfr.org.
11 Ler Sabine Cessou, “Fièvre numérique au Kenya” [Febre digital no Quênia], Le Monde Diplomatique, dez. 2018.
12 “Protecting electoral integrity in the digital age” [Protegendo a integridade eleitoral na era digital], Kofi Annan Commission on Elections and Democracy in the Digital Age, Genebra, janeiro de 2020.