Marçal, Milei e a radicalização moral do liberalismo
O amplo predomínio de uma ordem liberal no pós-1989 passou a identificar o liberalismo, e mais precisamente o neoliberalismo, como único projeto realista de sociedade. Neste cenário, criou-se espaço para uma versão radicalizada desse ideário, a qual retoma uma dimensão utópica outrora central no campo liberal
Pablo Marçal e Javier Milei são protagonistas e sintomas de um movimento mais amplo de radicalização moral do liberalismo. Em meio às suas diferenças, o coach de empreendedorismo e o economista midiático expõem um fenômeno de algumas décadas, com forte presença no debate público norte-americano, que ganhou impulso nas redes sociais e assumiu um destaque inédito na política latino-americana da última década. O fenômeno ideológico tem por principais características a conjunção entre o hiperindividualismo e a defesa das políticas liberais extremas, justificadas a partir de uma moralidade mais preocupada com a correção e pureza dos princípios do que com suas consequências. Nesta perspectiva, a adesão ao liberalismo não se fundamenta mais em certa ideia de eficiência, da garantia de resultados supostamente melhores, como era o caso do neoliberalismo anterior, mas nos fundamentos morais, que devem prevalecer mesmo quando produzem o pior.

A sociedade imagina que tal liberalismo é explicitamente utópico, já que substitui instituições e qualquer prática coletiva pelo primado incontrastável do indivíduo, que, em um mundo realmente livre, deveria poder quase tudo para perseguir seu próprio interesse. Se, em um primeiro momento, as críticas parecem se voltar contra o Estado, os discursos logo revelam a imaginação de uma vida sem sociedade, na qual qualquer resquício de coletividade seria substituído por indivíduos livres para decidir sobre todos os aspectos de seu próprio destino. Menos do que um liberalismo sem direitos, como sugere uma análise interessante de Carla Yumatle, vejo uma reconstrução de certa ideia de direitos naturais inerentes ao indivíduo e superiores ao Estado, dentre os quais se destacam a propriedade e a autodeterminação, que preponderam mesmo ante a vida. Há a pressuposição de que reside no indivíduo a única verdade, a expressão mais pura da natureza, que se opõe à artificialidade de todas as instituições, inclusive as democráticas. Nesta perspectiva, a democracia surge como uma grande farsa, que, em nome de uma coletividade imaginada, coloca em risco a liberdade individual.
Tal discurso é bem delineado nos livros e discursos públicos de Milei, que, ao ser entrevistado em 2021, se identificou “filosoficamente” como “anarquista de mercado” e na “vida real” como “minarquista”[1]. Como o presidente argentino bem delineia em seus textos, a maior parte das suas ideias vem de ultraliberais influentes no debate norte americano, como Murray Rophbard e Hans-Hermann Hoppe, os quais reformularam, a partir da década de 1960, o imaginário da Escola Austríaca, de Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Parte da bibliografia sobre o neoliberalismo reúne autores que, em meio aos inimigos comuns, constroem caminhos bem diversos a partir de referências da tradição liberal. Próximos pela crítica comum ao Estado, eles destoam nos fundamentos da crítica e nas soluções imaginadas para a superação dos males do presente.
As principais referências intelectuais de Milei atacam o neoliberalismo da Escola de Chicago, defensor da economia como uma ciência pautada por uma retórica de rigor e pelos métodos quantitativos. Apesar da relativa diversidade do campo, o neoliberalismo mais influente na construção da ordem internacional e nas diversas reformas do Estado ao redor do mundo foi definido sobretudo por autores como Milton Friedman, que amparava suas propostas na ideia de coerência interna dos seus modelos teóricos. No lugar da sua defesa pelos melhores padrões da ciência, os ultraliberais retratam o liberalismo como forma superior de moralidade individual e criticam o neoliberalismo, pela superficialidade dos seus pressupostos epistemológicos e excessiva leniência ante a intervenção do Estado. Qualquer que sejam os resultados no curto e médio prazo, como a miséria ou mesmo a fome, o ultraliberalismo se reivindica como única ordem legítima, pela consistência dos seus princípios.
As razões do recente protagonismo do ultraliberalismo escapam aos limites deste texto, mas é inevitável apontar dois eventos, um relacionado ao horizonte de expectativas construído após 1989 e outro vinculado às mudanças nas formas de sociabilidade. Como muitos autores destacam, o amplo predomínio de uma ordem liberal no pós-1989 passou a identificar o liberalismo, e mais precisamente o neoliberalismo, como único projeto realista de sociedade. Neste cenário, criou-se espaço para, nas margens do discurso liberal, uma versão radicalizada do ideário, que retoma uma dimensão utópica outrora central no campo liberal, perdida quando da sua mais acachapante vitória. Por outro lado, como é também objeto de ampla bibliografia, a emergência das redes sociais mudou o padrão de interação social de forma profunda, aumentando as representações do mundo como composto por indivíduos atomizados e autônomos. Em tempos de interações individualizadas, pautadas por avatares, não é surpreendente a popularidade de linguagens políticas hiperindividualistas.
Milei, contudo, tempera as lições de Rophbard e Hoppe com motes tradicionais do imaginário político argentino, que vão de um tipo ideal de conquistador gaúcho a certa ideia racista de raízes europeias do país. É comum nos discursos do presidente uma representação idealizada e grandiosa da Argentina do século 19, quando o país platino seria uma das maiores economias do mundo. Essa nação, contudo, teria paulatinamente decaído a partir do protagonismo do Estado e dos sindicatos, ou seja, do peronismo, hábil em submeter o indivíduo livre, outrora predominante, a uma ordem que antes de ser ineficiente é imoral, pois submete os mais hábeis aos inaptos.
Se com frequência o argentino reivindica o papel de intelectual, ele também age constantemente como influencer, capaz de expor suas ideias a partir de performances bizarras, construídas para o ambiente das redes sociais. O mesmo autor de livros e suposto economista hábil no manejo das fórmulas matemática lidera rituais pouco usuais para um político, nas quais veste roupas de super-herói e destrói a marretadas maquetes do banco central argentino. Aparentemente contraditórias, as duas identidades não apenas se retroalimentam, mas são inseparáveis. As performances bizarras reforçam a autenticidade do anarcocapitalista disposto a tudo, ao passo que sua suposta solidez intelectual o afasta, para muitos, dos muitos bufões populares nas redes.
Marçal, por outro lado, está completamente distante do protótipo do intelectual. Coach, influencer e empreendedor, ele recusa explicitamente qualquer ideia de coerência, já que o único critério válido para o sucesso são os cifrões e likes acumulados pelo indivíduo. Como é comum na lógica dos influencers, o candidato derrotado à prefeitura de São Paulo é o seu próprio produto e vende sobretudo a capacidade de ensinar os truques e caminhos da sua trajetória. Para tanto, todos os limites externos, das instituições à moralidade convencional, são vistos como obstáculos a serem superados. Subjaz ao discurso a ideia de que a mentira e mesmo os crimes são parte do jogo, custos necessários não apenas em eleições, mas na vida. Tais práticas são ainda mais legítimas em uma ordem política supostamente ilegítima, pautada por um sistema político que limita os direitos naturais. O indivíduo é o único juiz dos padrões morais, em lógica ultraindividualista que destrói as ideias mais comuns de uma sociedade.
Distintamente de Milei, dos teóricos libertários norte-americanos e dos intelectuais públicos do ultraliberalismo no Brasil, Marçal recusa explicitamente qualquer coerência. Analisá-lo requer certa imersão em falas esparsas, conselhos, performances e rituais, muitos deles desafiadores às sensibilidades mais convencionais. Seus discursos são construídos a partir de uma ideia de interação constante, na qual o público a todo o tempo influi no que é dito. Estamos diante, neste sentido, de uma dinâmica dialógica típica das redes, na qual as participações do chat e os reacts são elementos centrais.
Tal estilo tem a virtude de lhe conferir certa aura de autenticidade, pois os erros ou crimes o aproximariam do cidadão comum, que tem nos desvios parte inescapável da sua trajetória. Por outro lado, há grande afinidade entre seus discursos e formas de sociabilidade organizadas a partir da recusa às instituições e do predomínio do hiperindividualismo. Sem qualquer pretensão de ser exaustivo, estamos falando do mundo das bets, do garimpo, dos mercados ilegais de proteção, dentre outras práticas, econômicas e sociais, centrais no Brasil contemporâneo. Pode-se sugerir que estas sociabilidades são o mundo do ultraliberalismo realmente existente, que por vezes destoa, como é inevitável, das utopias construídas por seus intelectuais públicos, mas realiza, de forma imprevista, seus valores. Estudados por autores como Camila Rocha, a imaginação ultraliberal de personagens como Hélio Beltrão e Fábio Ostermann antevê a instauração do ideário no Brasil a partir do protagonismo de grandes empresários ou investidores da Faria Lima, com seus ternos e coletes característicos. Contudo, talvez o encontro entre as características da sociedade brasileira e o hiperindividualismo ultraliberal produza líderes mais semelhantes a Pablo Marçal, que parecem prontos para o que neoliberalismo, outrora hegemônico, e as elites ultraliberais não se mostraram capazes: mobilizar as massas.
Não se trata, porém, de algo produzido apenas de baixo para cima, a partir de sociabilidades supostamente externas ao “sistema” hegemônico, nem de novidades na trajetória histórica brasileira. A construção do campo ultraliberal conjuga novas expressões do capitalismo no Brasil, caso das bets, a longas permanências da sociabilidade e do capital no país, por vezes com nova aparência. Há, por exemplo, tanto continuidade pela aberta atuação de forças públicas de segurança nas periferias, o que produz consequências como representações negativas sobre o Estado, quanto mudanças na linguagem e nas performances de muitos desses atores. Analisar a presença da linguagem ultraliberal nas performances de Marçal é também uma forma de expor as diversas bases sociais das expressões contemporâneas da ultradireita. O campo ganhou corpo no Brasil a partir de setores das classes médias e das frações de classe da burguesia, mas, sobretudo após a eleição de 2018, expandiu sua presença popular, em movimento responsável, como bem demonstra a eleição paulista, por novas formas de expressão.
Pensando na trajetória histórica brasileira, é inevitável registrar como o liberalismo brasileiro sempre foi fortemente atravessado pelo discurso da moralidade, no qual a crítica à corrupção e a subversão eram elementos centrais. Mais do que um ator isolado, a União Democrática Nacional (UDN) expõe um modo renitente de atuação liberal no Brasil, pautada, dentre vários elementos, pela crítica hiperbólica amparada na afirmação de uma superioridade moral sobre os adversários. O elogio do mercado e da técnica ocupam, neste discurso, um lugar secundário, menos importante do que a defesa de certas ideias de civilização. Se, em um momento posterior, a linguagem do neoliberalismo passou a ocultar de forma mais eficiente sua dimensão moral, perceptível apenas nas entrelinhas, é necessário destacar essa duração mais longa do liberalismo brasileiro, que foi capaz, em outro cenário, de mobilizar massas urbanas e permaneceu nas margens do debate público.
Muitas análises atribuem o apoio popular da ultradireita a um vago conceito de conservadorismo popular, frequentemente relacionado às direitas religiosas e sobretudo ao protagonismo das lideranças evangélicas. Tais interpretações contam parte da história, já que, sem dúvida, vimos nos últimos anos uma inflação de linguagens políticas conservadoras e um grande protagonismo de lideranças reacionárias no debate público. São problemáticas, entretanto, as leituras que opõe o caráter técnico do “liberalismo na economia” à dimensão ideológica do “conservadorismo nos costumes”, como a divisão das “alas” do governo Bolsonaro. Como já dito, o ultraliberalismo não recorre a um discurso da acuidade técnica, como o neoliberalismo antes hegemônico no campo, mas se justifica a partir de uma superioridade moral, que pode estabelecer acordos estratégicos e revelar afinidades eletiva com as linguagens políticas conservadoras, ou a reacionárias, mas possui características próprias.
O papel do cristianismo no discurso de Marçal é um bom caso de análise. Por um lado, as menções a signos evangélicos são frequentes e relevantes para sua trajetória como influencer e figura pública. Dentre seus vários vídeos disponíveis na internet, destacam-se não apenas expressões características deste universo, mas também a emulação de ritos, como tentativas de cura. Marçal, todavia, não define o cristianismo como uma religião, mas enquanto uma lifestyle, pois a prática cristã supostamente prescindiria, nas palavras do coach, de um templo. Mais do que uma instituição, com a inevitável dose de coletividade que ela contém, ele define o cristão, identidade que reivindica, como uma escolha de vida individualizada, pautada apenas pelo mindset dos sujeitos. Estamos aqui muito além de qualquer variante da teologia da prosperidade, que pressupõe a partilha de valores e crenças coletivas. Marçal parece apostar na pulverização do campo evangélico para propor algo novo, que mobiliza traços presentes em algumas igrejas, mas os transmuta em um tipo de seita hiperindividualista.
Marçal não é um apenas um novo Bolsonaro, ou uma diferente expressão do bolsonarismo. O ex-presidente reivindicava sobretudo a identidade de militar, central para seus discursos e alianças políticas, enquanto o ultraliberalismo do coach destoa das ideias de ordem, história e hierarquia, intrinsecamente relacionadas ao conservadorismo mais comum nas Forças Armadas. O uso da religião no discurso do ex-presidente flertava, por outro lado, com retóricas reacionárias, mobilizadas para a crítica de grupos e expressões da esquerda, enquanto a construção da liderança de Bolsonaro e seus acenos a grupos violentos retomavam parte da linguagem política do fascismo histórico.
Expressões radicalizadas e moralizadas do liberalismo estiveram, sem dúvida, na coalizão do bolsonarista, organizadas sobretudo em torno de Paulo Guedes, mas isso se justifica pela dinâmica eleitoral e política, que fez, em certo momento, do bolsonarismo uma grande frente ampla da ultradireita, atravessada por grande heterogeneidade. Os discursos do ex-presidente sempre relegaram, contudo, o ultraliberalismo a um lugar secundário, sem maior relevância. Não é o caso de Marçal. Hoje os desafios públicos colocados à liderança de Bolsonaro sugerem um outro momento político e a possível emergência de distintas coalizões políticas e eleitorais.
Por outro lado, em meio a eventuais semelhanças, é relevante indicar algumas distinções no uso das redes dos dois candidatos. Bolsonaro foi, de modo bem-sucedido, construído como uma persona digital, mas não é um ator nativo das redes como Marçal, que organiza suas ações a partir de uma plena articulação entre estar online e offline. Os cortes não são momentos dos seus discursos pensados para viralizar, como é o caso do ex-presidente, mas o modo pelo qual ele constrói todas as ações políticas
O leitor pode estranhar a afirmação do texto e desqualificar o pertencimento de uma, ou mesmo das duas lideranças políticas, ao campo liberal. Milei e Marçal seriam, portanto, falsos ideólogos, simples farsantes em desacordo com elementos fundamentais com a história do liberalismo. Melhor seria chamá-los de conservadores, reacionários, populistas, ultradireitistas. Em certos usos, todos estes conceitos podem contribuir com parte das performances e ideias dos dois políticos, mas é necessário destacar que não apenas a identidade liberal é relevante para ambos, como que elementos centrais das duas trajetórias se explicam por transformações relevantes no cenário liberal, que vão além dos dois personagens.
Não será surpresa se Pablo Marçal for justamente declarado inelegível pela justiça eleitoral. Ele interessa, todavia, menos por sua trajetória individual do que como sintoma de mudanças relevantes na sociedade brasileira e de influentes expressões da ultradireita. Pensá-lo como um simples substituto de Jair Bolsonaro, ou como expressão de um bolsonarismo 2.0, mais atrapalha do que ajuda a compreender as particularidades, bases sociais e futuros possíveis da política nacional.
Jorge Chaloub é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
[1] https://presenterse.com/javier-milei-creo-en-los-individuos-en-el-orden-espontaneo-y-el-autogobierno/