Marcos Nobre e Pedro Rossi em disputa sobre o Brasil do século XXI
Rossi destaca como o contexto econômico moldou a agenda de Dilma; Nobre pretende descrever como a agenda política de Dilma moldou o contexto político. São perspectivas não apenas distintas, mas incompatíveis
Analisar o Brasil recente a partir do sistema político ou a partir da agenda econômica é uma escolha que, no mínimo, faz toda diferença. Além da perspectiva temática, também faz diferença a opção teórica pela chave da crise ou da disputa. De um lado, a proposta de Marcos Nobre em Limites da democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro. De outro, Pedro Rossi com seu O Brasil em disputa: uma nova história da economia brasileira[1]. Situados em Institutos que orientam suas trajetórias, os autores têm entre si uma rua apenas – do IE ao IFCH da Unicamp[2] –, mas uma larga avenida entre suas perspectivas. Poderíamos supor que nem tanto, já que se trata, afinal, da política brasileira no século XXI. Perto nas estantes das livrarias e relativamente distantes na descrição explicativa, creio que a partir de alguns aspectos de seus trabalhos é possível pensar sobre a avenida que os separa e que, por isso mesmo, os conecta.
Lava Jato ou choque recessivo: o que atravessou o sistema político ‘pemedebista’ e a gestão econômica distributiva?
O livro de Pedro Rossi procura mostrar como “a disputa entre agendas transborda para o plano político” (PR, p.12). Trata-se da disputa entre uma agenda distributiva e uma agenda neoliberal. A primeira está apoiada na Constituição – o que sugere já seu caráter intrinsecamente político, aliás. Porém, ele fala em “transbordar” para o plano político no sentido mais superficial, digamos, do que é o campo político; quase como a esfera da conjuntura institucional. De todo modo, a agenda distributiva, segundo Rossi, reflete as linhas políticas constitucionais que orientam “fazer uso do gasto público e do Estado como indutor de um crescimento que resulta da distribuição de renda e da força do mercado interno” (PR, p.12). Resumidamente, o preço político de certo esgotamento do modelo distributivo (por razões econômicas das quais falarei adiante), pago com o impeachment de Dilma, foi a oportunidade para a consolidação da agenda neoliberal no sistema político. Essa ênfase no processo econômico reduz o papel da efervescência social como resposta política, àquele esgotamento e às medidas urgentes propostas como resposta a ele. A perspectiva do autor acaba deixando de lado o peso desse “momento Junho”[3].
Para Marcos Nobre, por outro lado, “Junho de 2013 mostrou que a blindagem pemedebista era vulnerável”, fazendo com que o sistema político chegasse a uma “inédita perda relativa do controle da política” (MN, p.130). Isso supõe, é claro, que havia um controle da política pelo sistema político. Esse tipo de controle pelo sistema político, que significa a compreensão de seu alcance e função na vida social, é relativizado pelo próprio autor quando trata de outro assunto, complementar (portanto, não seria algo tão inédito assim). Por exemplo, quando ele apresenta a ideia de “democracia do digital”, designando com isso uma importante forma de organização social na democracia recente. “No caso da democracia do digital, a liderança política [em oposição à democracia dos partidos] já não detém mais o monopólio da iniciativa da proposição de divisões em que o eleitorado venha a se reconhecer” (MN, p.124).
Ou seja, os temas e pautas em disputa na sociedade constituem divisões e – por que não dizer – unidades políticas mais ou menos amplas. A proposição de divisões, da qual entendo depender a formação de unidades políticas, já não estaria sob controle do sistema político. Poderíamos argumentar que nunca esteve, e que seria antes o contrário. De todo modo, essa democracia do digital não apenas precede as Jornadas de Junho, como é descrita por Marcos Nobre, um dos principais elementos capazes de desembocar nas manifestações de 2013. Ou seja, o controle da política pelo sistema político já estava relativizado pela própria dinâmica de organização social que o autor identifica, anterior a Junho de 2013, marco de referência para sua análise do Brasil recente. Por isso, para ficar nos termos de Nobre, ao invés de Junho ter mostrado que a “blindagem ‘pemedebista’ era vulnerável”, parece que a vulnerabilidade do que ele chama de ‘pemedebismo’ – talvez, com isso, seu sentido se esvazie – já estava dada pelo próprio modo como a democracia se constitui concretamente na dinâmica social, particularmente na era do digital.
A “crise aguda do pemedebismo”, identificada pelo autor como o próprio sistema político “clássico” da redemocratização brasileira, viria logo depois, no período entre 2015 e 2018, já que se formou aí uma oposição extrainstitucional com unidade política. Veja, uma oposição forjada não no interior do sistema político, mas na dinâmica social; porém, não se trata da dinâmica que ele descreve como “democracia do digital”, como se poderia esperar. Acontece que, para Nobre, a formação dessa oposição extrainstitucional é consequência sobretudo da Lava Jato. O autor não se desloca do sistema político. O foco acaba sendo nas agruras desse sistema, mesmo quando é inevitável pensar no que ele próprio chama “democracia do digital”; ainda que a agenda econômica distributiva esteja vulnerável, chegando a uma inédita perda relativa do controle da política – pelo menos é o que, suponho, diria Pedro Rossi.
Para Marcos, a “parlamentada de 2016, que derrubou Dilma Rousseff, foi, portanto, um recurso do sistema político para tentar retomar o controle da política” (MN, p.174). A perda do controle da política não foi, para Nobre, o impasse na disputa por agenda econômica e apoio popular, mas o fato de que o primeiro governo Dilma teria solapado “as condições de prosseguir com o modelo ‘pemedebista’ sobre o qual, entretanto, se apoiou durante um tempo” (p. 169). Sim, acrescida de uma blitzkrieg (algo como uma “ofensiva relâmpago”) econômica.
Seus traços gerais são descritos pelo autor em um único parágrafo e, salvo engano, descrevem a política de governo de Dilma em seu primeiro mandato. Nobre destaca a mudança na relação entre os setores público e privado, particularmente nas concessões de infraestrutura e energia, e a tentativa de “impor parâmetros radicalmente diversos ao setor financeiro, criar e fomentar novas e longas cadeias produtivas” (MN, p.169). Pedro Rossi analisa tais políticas econômicas, que podem ser resumidas em iniciativas como estímulo à industrialização com redução do custo de insumos, custos de crédito e o custo trabalho, além da desvalorização da moeda e políticas de redução do custo tributário (PR, p.36). Ou seja, uma aposta (talvez inevitável) na oferta, nem tanto na demanda, como havia sido o caso no governo Lula.
Acontece que Rossi procura mostrar como o contexto econômico mundial e, portanto, brasileiro é outro. A partir disso, pode apontar pelo menos duas razões para a agenda de Dilma. Marcos, por outro lado, procura mostrar que o contexto político é outro, pelo menos no Brasil ‘lavajatista’ pós-Junho. A partir disso, ele pode apontar pelo menos duas causas para o contexto político de Dilma. Vejam, Rossi destaca como o contexto econômico moldou a agenda de Dilma; Nobre pretende descrever como a agenda política de Dilma moldou o contexto político. São perspectivas não apenas distintas, mas incompatíveis.
Em Rossi, duas razões para uma nova política econômica. A agenda de Dilma “buscou dar soluções para desafios impostos pela conjuntura internacional e pela desaceleração cíclica do modelo de crescimento herdado dos governos Lula” (PR, p.33). Ou seja, no plano internacional, “queda de demanda por importação nos países centrais”, prejudicando a indústria, “queda nos preços das commodities”, além do afrouxamento monetário americano, gerando valorização cambial e, com ela, redução da competitividade internacional. No plano nacional, desaceleração do ciclo de crédito – logo, da demanda – impactando a aquisição de bens duráveis (cuja natureza “durável” explica justamente o caráter cíclico da política de crescimento por incentivo à demanda). Essa política não se sustentou em seu segundo governo, já que a política industrialista não gerou os resultados esperados no médio prazo. Ainda que com o mercado de trabalho aquecido, ou por causa dele (conflito distributivo), houve uma desaceleração da economia. Esta, somada à pressão política de uma eleição apertada, leva à guinada ortodoxa. Portanto, economia internacional e nacional. Resultado: opção pelo choque recessivo.
Em Nobre, duas lições do “fracasso”. Para ele, Dilma levou a uma impossibilidade do chamado ‘pemedebismo’. Decorrem daí duas lições: a primeira “é que não há programa econômico que se sustente sem uma base política e social de apoio correspondente” (p. 169). Entretanto, vale mencionar que a aprovação do governo Dilma, em março de 2013 (pré-Junho) era de 65%[4], de modo que se trata mais da base política que da base social. “A segunda lição a tirar é que não existe reforma do ‘pemedebismo’ desde dentro”, sustentando que o fracasso do governo Dilma estaria determinado em grande medida pelo arranjo legislativo e partidário (fragmentação) imposto pelo poder executivo. Portanto, base política e social e sistema político. Causa: opção sobre como lidar com a Lava Jato.
Quer dizer, o modo como o “momento Junho” é descrito em cada um dos livros em análise aqui expressa a diferença de perspectiva. No livro de Rossi, Junho de 2013 aparece como uma enorme consequência da estratégia econômica para conter a inflação, “instrumentalizada para criticar as medidas econômicas do governo Dilma e a agenda distributiva que produzia a inflação de salários” (PR, p.43). O controle via preços monitorados incluiu o pedido de Dilma a prefeitos para que o reajuste de passagens de ônibus fosse adiado. “No caso da cidade de São Paulo, o reajuste, que geralmente ocorre no período de férias dos estudantes, foi adiado para junho e serviu de combustível para as Jornadas de Junho de 2013, que representaram um divisor de águas no cenário político brasileiro” (PR, p.44).
Embora a disputa entre as agendas econômicas distributiva e neoliberal sejam abordadas por Rossi com a intenção de destacar o sentido político da gestão econômica, o evento mencionado por ele como um divisor de águas não passa dessas linhas, nas quais aparece como um exemplo entre outros da resposta à pressão da narrativa dominante sobre o peso da inflação. Afinal, do outro lado dessa narrativa – podemos dizer, da pressão neoliberal –, “a inflação não foi um problema fundamental para a parcela mais pobre da população durante os três primeiros mandatos governados pelo PT” (p.44).
Por outro lado, é curioso notar que a Operação Lava Jato, central na leitura de Nobre, é para Rossi, no limite, apenas mais um operador econômico que motiva o ponto nevrálgico em que se desfaz a agenda distributiva: o choque recessivo. Segundo Rossi, “a desestruturação de setores econômicos pela Operação Lava Jato também teve impactos econômicos profundos, especialmente no setor de construção civil e em toda a cadeia do setor de petróleo e gás natural” (PR, p.53). A Lava Jato não se define por um “segure-se quem puder” que desestabilizou o sistema político, sendo reinserida, assim como Junho, no contexto daquelas duas razões elencadas: economia internacional e nacional. Daí porque, “nesse contexto adverso, optou-se pela terapia de choque na política econômica” (PR, p. 53).
Se Junho e a Lava Jato são reinseridos como elementos conjunturais na história econômica de um, a pressão por austeridade e o choque recessivo são aspectos da conjuntura na história política do outro.
Para Marcos Nobre, a Lava Jato desestruturou a estabilidade do sistema político ‘pemedebista’ que teria se constituído na redemocratização, com seu formato mais acabado no período após o Plano Real. A operação ganha assim, um papel central no teatro institucional. Para Rossi, como mencionado, a Lava Jato tem efeitos na estrutura econômica que se organizou desde o primeiro governo Lula como uma agenda distributiva. É a desestruturação da relativa estabilidade dessa agenda – sempre ameaçada pela vontade de hegemonia da agenda neoliberal – que abre espaço para escolhas desastrosas de política econômica. Entretanto, “diferentemente do que diz a narrativa dominante, a gestão da política econômica desse governo, apesar dos erros, não foi a principal responsável pela crise, tampouco foi um fracasso completo” (PR, p.33).
Já no final das páginas dedicadas às considerações finais, Marcos Nobre acusa Dilma de empreender um “projeto tecnocrata”. Esse projeto aparece descrito – ou melhor, jogado com um tanto de desprezo – como uma escolha equivocada e irresponsável de Dilma. “Foi uma enormidade o que se desperdiçou em desonerações, cadeia do pré-sal, baixa abrupta da taxa de juros, reestruturação tecnocrática do setor de energia, cabo de guerra nas concessões de serviços públicos no governo Dilma Rousseff” (MN, p.242). Nobre coloca tudo no mesmo balaio, reduzindo todas as políticas econômicas a escolhas ortodoxas, que poderiam ser diferentes conforme a vontade. Rossi recoloca as opções econômicas em perspectiva, distinguindo suas razões e efeitos.
Pedro aponta então elementos centrais do golpe de 2016, reduzido por Nobre a uma “parlamentada” (ressaltando seu sentido próprio ao sistema político). Segundo Rossi, “a queda de Dilma é frequentemente analisada por meio de leituras que limitam os motivos do impeachment às fraturas do sistema político” (PR, p.59). Sem dúvida, dentre elas está a leitura de Nobre, que limita os elementos econômicos a alusões gerais e decorrentes dos revezes internos do sistema político. Já para Pedro, seria preciso ressaltar, na direção inversa, que “o choque recessivo promovido em 2015 criou um ambiente econômico de crise, inflação e desemprego e reduziu a sustentação política de Dilma” (PR, p.59). Crise econômica com efeitos políticos, ao invés de crise política (crise do ‘pemedebismo’ de 2015 a 2018, ensejada pela Lava Jato a partir de 2014) com efeitos na política econômica.
Em suma, a relação de primazia explicativa varia de maneira sutil entre nossos autores. Embora a rua que os distingue pareça uma fina linha tênue, há um abismo entre elas. Afinal, falar em crise política ou em disputa econômica é evocar dinâmicas distintas como eixo de análise do Brasil atual.
Procuro resumir. Para Marcos Nobre, “estratégias de desenvolvimento econômico têm de ser apenas meio para a concretização do modelo da Constituição que deve democraticamente prevalecer. E não o contrário” (MN, p.243)[5]. Ele pretende reforçar a primazia do sistema político diante da agenda econômica, como se o impeachment se explicasse mais pela urgência de estabilização do sistema político do que pela pressão da agenda neoliberal capaz, dentre outras coisas, de reorientar definitivamente o sentido do gasto público. O caminho, para Nobre, é da política para as estratégias de desenvolvimento econômico, que são o modo concreto como se realiza a expectativa de redução de desigualdade da Constituição Cidadã. A agenda econômica é um pouco, portanto, com o que Pedro, acredito, concordaria. Porém, é justamente por ser o meio de realização da Constituição que a agenda distributiva é combatida por uma intenção política contrária a sua orientação progressista. A política neoliberal disputa o poder e se realiza, quando hegemônica, por meio de uma agenda econômica própria. No caso, defende Rossi, a agenda 2016. “Em suma, havia uma agenda econômica que Dilma e o PT não estavam dispostos a adotar – e o sentido econômico do golpe de 2016 era justamente implementá-la” (PR, p.59-60).

O interregno Temer: autodefesa do sistema político ou nova agenda econômica?
Para Pedro Rossi, a agenda 2016 é resposta à disputa econômica gerada pelo choque recessivo de 2015. Mas ela é implementada apenas mediante o golpe que retira Dilma da presidência. Ele segue aqui a definição de Álvaro Bianchi, para quem um golpe envolve um agente da burocracia estatal e um instrumento excepcional, somando-se a isso uma “mudança radical no sentido do projeto econômico e na composição de poder” (PR, p. 62). É uma mudança radical, econômica e política, o que ocorre em 2016. E se a agenda que Temer representa a partir de então pode ter raízes na fraqueza gerada pelo choque recessivo de 2015, nem por isso o projeto neoliberal que ele representa foi gestado por Dilma, bastando uma mera substituição política por razões próprias ao sistema político. Pedro ressalta que o projeto “Uma Ponte para o Futuro” havia sido proposto ao governo Dilma, sem sucesso, de modo que o próprio Temer afirma, em setembro de 2016, “que Dilma caiu por rejeitar sua agenda econômica e de seus aliados” (PR, p.63).
Já no texto de Marcos Nobre, a curta ‘Era Temer’ é descrita como uma “tentativa de retomada do controle da política pelo sistema político” (MN, p.175). Não há qualquer referência à reforma trabalhista ou ao teto de gastos. Novamente, o sistema político é orientado por sua própria preservação, pelo controle da política. Manutenção do poder (cartelizado) pelo poder. E isso a tal ponto que o governo Temer teria procurado – portanto, a posteriori – pelo apoio da grande mídia e do mercado financeiro, como se esses setores não tivessem atuado diretamente para o golpe de 2016. O apoio seria circunstancial, já que é apresentado por Marcos Nobre como uma necessidade gerada no próprio sistema político, em função da coincidência partidária e de agenda entre o legislativo e o executivo. Diz ele: “Quando o chão desapareceu sob os pés do sistema político, foram esses setores os únicos que se ofereceram para lhe fornecer sustentação. E para cobrar a implantação de sua agenda, evidentemente” (MN, p.188).
Rossi mostra, contudo, que a implantação da agenda do mercado financeiro não aguardava, paciente, por uma oportunidade para se impor ao governo Temer ou ao sistema político. Ao contrário, a plataforma organizada nas teses do projeto “Uma Ponte para o Futuro” exigia um aprofundamento do ajuste já realizado: propunha com isso “uma ‘reconstituição’ do Estado brasileiro e tratava de mudanças estruturais” (PR, p. 64). Se no livro de Marcos Nobre não encontramos nenhuma passagem que explique a escolha por “parlamentada”, nem o papel possível da reforma trabalhista ou do teto de gastos, com Pedro essas políticas estão no centro do golpe e, por consequência, da agenda econômica que viria finalmente frear de vez a agenda distributiva.
Se a agenda distributiva é o modo concreto de realização da Constituição, como vimos, se é o meio para concretização do modelo constitucional, a agenda que se impõe por ruptura política é sua antítese. Anos de discurso sobre a inviabilidade da Constituição e a pauta “venceu” afinal – Rossi lembra a narrativa fatigante de que “a Constituição não cabe no orçamento”, “o Estado não cabe no PIB” e afins, reforçada por um “terrorismo fiscal”. “No alvo das mudanças estão os gastos obrigatórios, a rigidez orçamentária, a Previdência Social, as indexações no orçamento, como a do salário mínimo, e as vinculações constitucionais, como as de saúde e educação” (PR, p.65). Vale notar que o tema não saiu jamais da pauta, retornando há pouco na forma do arcabouço fiscal. Parece um passo de volta à agenda distributiva, se colocado ao lado da reforma tributária e políticas afins. Mas pode não ser se, “de certa forma, a sustentação do novo regime fiscal depende da continuidade da agenda de 2016” (PR, p.95).
Seja como for, para Rossi “a agenda de 2016, além de dar sentido econômico ao golpe, transpassa o governo Temer e caracteriza a gestão econômica do governo Bolsonaro” (PR, p.66). Para Marcos Nobre, entretanto, há sempre uma primazia do sistema político brasileiro, que ele chama ‘pemedebismo’. E isso mesmo em seu momento de “crise”, de 2015 a 2018, que é precisamente o resultado do momento em que esse sistema, em sua forma ‘pemedebista’, se afastaria do neoliberalismo. “A ligação do ‘pemedebismo’ com o ‘novo centro’ neoliberal começou a se desfazer depois de Junho de 2013” (MN, p.160). Nobre continua: “Chegou a conta do custo ‘pemedebista’: um ritmo lento de democratização, um enfrentamento lento e marginal das desigualdades sociais”. Aparentemente, o custo de uma agenda distributiva e não neoliberal para o sistema político. Aliás, o preço aludido seria a dificuldade de manutenção do sistema; aparentemente, manutenção que levaria a sua crise entre os anos de 2015 e 2018. O final desse trecho vem nos seguintes termos: “E o resultado veio sob a forma de uma autofagia do sistema político depois de 2013, quando este se blindou contra qualquer autorreforma significativa, ignorou a dimensão e a profundida de Junho”. Autofagia do sistema político, portanto, para permanecer o mesmo, na medida do possível, inclusive afastando a “nova direita” neoliberal. Essa crise do ‘pemedebismo’ vai de 2015 e 2018.
Porém, houve um golpe no meio do caminho – uma parlamentada, no eufemismo de Nobre, que praticamente salta de 2015 a 2018, fazendo do governo Temer um arranjo ainda frágil de autodefesa do sistema político em relação à Lava Jato. A crise política só se resolveria com Bolsonaro, como veremos a seguir, uma vez que Temer não teve força política em um modelo em que executivo e legislativo respondiam a um mesmo partido: “afinal, ocupar a posição de líder do cartel de venda de apoio parlamentar é incompatível com ocupar diretamente a presidência da República” (MN, p.186). Já em Rossi, a derrocada foi a incapacidade política de Temer para implementar a política de crescimento, o que fez dele “sinônimo de degradação social, desemprego em massa, desamparo aos trabalhadores e deterioração dos serviços públicos” (PR, p.72).
Quero notar que, do meu ponto de vista, a abertura neoliberal de Temer, patrono da agenda de 2016 que hegemonizou a política econômica e, com isso, interrompeu a agenda distributiva, encontra sua realização correlata, política, em 2018. A radicalização do liberalismo econômico é também a radicalização do liberalismo político, agora invertido em relação à noção clássica de igualdade e liberdade, absorvido pela ideia neoliberal de “liberdade”.
Governo Bolsonaro: forma-limite do sistema político ou forma-limite da agenda neoliberal?
O curioso é que, para Marcos Nobre, aquele sistema ‘pemedebista’ que teria perdido o controle da política, ou de parte dele, parece em algum momento voltar a controlá-la, a tal ponto que o Bolsonarismo poderá ser sua forma-limite. Já para Pedro Rossi, o neoliberalismo do governo Bolsonaro é parte da mesma agenda gestada em 2016, uma espécie de forma-limite daquilo que nasce quando, justamente, o sistema político se consolida por meio de sua agenda neoliberal. “Apesar de a figura de Bolsonaro não se enquadrar exatamente nos parâmetros liberais, seu governo entregou pontos estratégicos da agenda de 2016, como a reforma da Previdência, a liberalização comercial, a desregulamentação financeira e cambial, a autonomia do Banco Central, diversas privatizações e o desmonte da Petrobras, e ainda buscou avançar em outras áreas contempladas por essa agenda” (PR, p.75). Não quer dizer que aspectos políticos tenham sido secundários, de maneira alguma. Mas é importante notar que essa continuidade Temer-Bolsonaro na agenda econômica é também, acredito, o aprofundamento de uma moral correlata ao neoliberalismo. A centralidade do tema da “liberdade” como índice máximo da disposição individual avança em oposição a regulações sociais, jurídicas e, no limite, ao Estado.
Nobre não desenvolve a discussão sobre tais políticas econômicas, procurando ligar o fenômeno Bolsonaro à disposição política global e, claro, às condições do sistema político brasileiro, ainda vinculadas à Lava Jato. A respeito do fato de que a eleição de Bolsonaro em 2018 faz parte de um “ciclo autoritário muito mais amplo, global”, Marcos afirma que “os levantes conservadores típicos da década de 2010” no mundo, portanto, “coincidiram com uma crise econômica” de grandes proporções (MN, p. 190; grifo meu). Coincidiram, mas não resultaram dela nem são sua expressão política. Rossi, por outro lado, amarra um elemento social à circunstância econômica, seguindo Christian Laval na leitura de que “o novo neoliberalismo canaliza e explora o sentimento de abandono, as frustrações, o ódio e o medo de diferentes frações da população” (PR, p.73). O apelo à restauração de uma ordem moral encontra eco nas políticas neoliberais. É um processo longo, portanto, que tem em 2018 sua “forma-limite”.
Por outro lado, para Marcos Nobre, seguindo Camila Rocha, é apenas em 2017 que se estabelece “a primeira versão da liga entre ‘ultraliberalismo’ e ‘defesa da família, da religião, da lei e da ordem’ que viria a caracterizar a campanha e a eleição de Bolsonaro em 2018” (MN, p.151). O autor compara a gestão Bolsonaro com o Tea Party estadunidense, o que permite destacar justamente essa implicação mútua entre economia e moral (assunto que retomarei na seção final). “Esse movimento de extrema direita se organizou no fim dos anos 2000 em defesa de uma pauta ultraliberal que incluía cortes de impostos e redução do tamanho do Estado, de maneira mais ampla, posicionando-se contrariamente a políticas públicas de apoio aos mais pobres e a programas públicos de saúde de caráter universal, além de defender posições como a supressão da regulação de iniciativa privada, a garantia de liberdade de portar e usar armas de fogo, a defesa de valores familiares tradicionais e ‘pró-vida’, o desmantelamento de sindicatos ligados ao setor público e políticas migratórias altamente restritivas” (MN, p.207-8).
Porém, essa descrição, que me parece destacar o vínculo entre moral e economia, é mobilizada por Nobre para caracterizar, por comparação, “a transmutação de parte relevante dessa oposição extrainstitucional em um partido digital que instrumentaliza a institucionalidade democrática com o objetivo de aboli-la” (MN, p. 207). O partido digital soma-se então às demais “peculiaridades brasileiras”, a saber, o gerenciamento das coalizões do sistema político (‘pemedebismo’) e a oposição extrainstitucional conjugada com a Lava Jato. Para Marcos, o sentido econômico-moral da descrição do Tea Party, ao lado das análises de Arlie Hochschild sobre a extrema direita, são importantes também por “deslocar a associação automática entre interesses econômicos e escolhas políticas” (MN, p. 208). De fato, quando Hochschild pergunta como pode haver “produtores rurais votando com a Monsanto”, entre exemplos similares, está sugerindo uma relativa distância entre interesse econômico e escolha política. Porém, parece-me que os usuários do sistema SUS defendem “desinchar” o Estado sem qualquer consequência maior. Quer dizer, mesmo no exemplo acima, não parece haver distância entre visão “macroeconômica” e moral, como na descrição do movimento Tea Party.
Quanto às peculiaridades brasileiras, retome-se o tema da Lava Jato. “A Lava Jato é o que há de peculiar no capítulo brasileiro das ‘crises da democracia’” (MN, p. 131). O curioso é que o fim da Lava Jato não teria ocorrido simplesmente sob Bolsonaro, mas por Bolsonaro. Para Nobre “a questão é saber como Bolsonaro conseguiu esse feito, quando tanto Dilma Rousseff como Michel Temer tentaram a mesma façanha e não conseguiram” (MN, p. 199). Sem entrar no mérito de saber se estes tentaram e por quais razões, é importante notar que Nobre não menciona o simples fato de que a “Operação” já se desenrolou no tempo. Os efeitos econômicos aludidos por Pedro Rossi já se desfizeram, absorvidos na roda da economia que girou algumas vezes no período. A mídia também oscilou e, o mais importante, que explica em parte a oscilação da mídia, Lula esteve preso pela Lava Jato. Já com Bolsonaro eleito, foi solto com uma clara desmoralização da operação. Marcos Nobre, ao longo das 316 páginas do livro que discute a democracia de Junho de 2013 até o Bolsonaro de 2022, não diz uma única palavra sobre a prisão de Lula; nem, portanto, sobre sua volta ao jogo político democrático. Na verdade, há uma menção discreta, apenas para dizer que a “prisão e interdição do candidato favorito na eleição presidencial” (MN, p. 206) não é algo relevante, já que não é o que há de peculiar no caso brasileiro. O que é “estruturante” é o gerenciamento de coalizões, a oposição extrainstitucional em conjunto com a Lava Jato e o “partido do digital”.
Vimos como, de maneira geral, Pedro Rossi procura mostrar que, “como subproduto do golpe e das políticas neoliberais que corroeram a democracia e suscitaram reações autoritárias, surge Bolsonaro” (PR, p. 73). Vimos também que Marcos, por outro lado, sugere que, o que corroeu a democracia tem mais a ver com um amalgama crescente entre o partido de sustentação do governo e Estado (o erro autofágico do ‘pemedebismo’ impetrado pelo PMDB durante o governo Temer, com Rodrigo Maia presidente da Câmara dos Deputados). O arranjo interno do sistema político colocou a democracia em risco máximo ou, melhor dizendo, revelou os limites da democracia.
De fato, é muito interessante a análise de Nobre sobre a origem da “cultura política digital antissistema” em oposição à ideia de partido. Até mesmo o sentido antissistema é essencialmente uma oposição a “partido”, forma enfraquecida nessa política digital. Nobre cita, por exemplo, Sartori, para quem “um partido pode ser definido como antissistema sempre que enfraquece a legitimidade do regime a que se opõe” (citado em MN, p. 108). Então, quando Bolsonaro vira regime (parte do sistema), de certo modo, há uma espécie de correção, da postura antissistema em postura anti-institucional, já que ele procura se diferenciar do que seriam as instituições. Para Nobre, a “selvageria” de um momento em que ainda não há modelo institucional para tais formas de atuação política, própria também de um mundo digital nascente, aguarda por alguma regulação (instituição), talvez; “continuamos à espera da promessa do ‘contrato social’ que irá nos retirar do ‘estado de natureza’ digital” (MN, p. 205). Resta saber se até lá devemos continuar com nossos modelos já conhecidos de análise do jogo político. Afinal, o partido do digital não enfraqueceu a legitimidade do regime sem uma série de outros fatores, próprios de um neoliberalismo traduzido na moral e na política de extrema direita.
As frustrações que o neoliberalismo canaliza e explora, na leitura de Pedro Rossi, estão também no freio que ainda consegue impedir o avanço desse mesmo neoliberalismo. Se os limites da democracia são testados no sistema político, eles são experimentados na realização de agendas econômicas como essa que se impôs a partir de 2016. Marcos Nobre finaliza seu livro antes das eleições de 2022, mas nenhuma das peculiaridades brasileiras se desfez, com exceção da Lava Jato. A menos que a operação jurídico-política tivesse o poder de determinar os rumos da democracia, não se vê quais elementos Nobre teria mobilizado para dar sequência a sua análise. Na chave da disputa econômica de Pedro Rossi, uma nova reviravolta na definição da agenda ocorre justamente pelo fracasso da política neoliberal. Sigo aqui Rossi, entendendo que as frustrações que este canalizou não fizeram outra coisa do que se aprofundar. Para alguns, isso leva a um discurso cada vez mais radicalizado pela “liberdade” a qualquer custo, inclusive com a tentativa de uma ruptura institucional, um fechamento da democracia. Para outros, um pouco mais de 50%, como mostraram as eleições de 2022, há necessidade de manter a democracia e, principalmente, voltar ao crescimento econômico que o neoliberalismo não entregou. “As eleições de 2022 não se resumiram a um plebiscito pela democracia; elas também rechaçaram um modelo econômico trágico que condenou parte da população à fome, à pobreza e ao desemprego” (PR, p. 91).
No final das contas, onde se cruzam o sistema político institucional em crise e as agendas econômicas em disputa?
“As formulações neoliberais da liberdade inspiram e legitimam a extrema direita”
Wendy Brown[6]
Há uma variação interessante, conforme o ponto de vista adotado, a respeito do que foram momentos estáveis e estruturais ou de crises e rupturas na história recente do Brasil. Sem dúvida, ambos são livros excelentes; entretanto, tenho a tendência a concordar com o parâmetro da disputa, em lugar de crises, com autofagias ou autodefesas de um mesmo sistema estrutural. Acredito que mesmo uma “nova história da política brasileira” capaz de iluminar o “Brasil em disputa” seria mais fiel à dinâmica do Brasil no século XXI. E seu viés econômico não deixaria de ser central, uma vez que não há projeto de país – ou projeto de hegemonia – que não esteja vinculado a uma concepção sobre como realizar materialmente seus princípios morais, políticos e – por que não – constitucionais. Não é por acaso que a agenda distributiva está desenhada na Constituição de 1988.
Não é sem surpresa que o termo “neoliberalismo”, decisivo no trabalho de Pedro Rossi, aparece como central na conclusão do livro de Marcos Nobre, sem que nos preparasse para isso com discussões sobre neoliberalismo ao longo do livro, com mais do que breves usos e algumas linhas na introdução. Digo, na concretude do caminho do livro, o uso da palavra é raríssimo e não específico.
Já na conclusão de Limites da democracia, Marcos Nobre dá a seguinte centralidade ao tema, ou pelo menos ao termo: “O neoliberalismo não foi uma revolução, não instaurou uma nova ordem por meio de uma ruptura institucional. Sua tática foi antes a do aparelhamento, a de ocupar a ordem anterior, transformando-a desde dentro” (MN, p. 217). Em Pedro Rossi também encontramos uma perspectiva “neomarxista” do neoliberalismo, e seu sentido econômico seria a ênfase capaz de traçar o fio da meada do Brasil do século XXI. Para Rossi, a agenda neoliberal é definida já em termos políticos, uma vez que ela “propõe reformar a Constituição para reduzir gastos públicos e o protagonismo estatal, e assim buscar estimular o crescimento com base na melhoria das condições de oferta” (PR, p. 12). Porém, também se trata aqui de certo aparelhamento do Estado por um projeto político-econômico.
Recorro a Wendy Brown. Desse ponto de vista neomarxista, “o neoliberalismo visava desmantelar as barreiras aos fluxos de capital (e, portanto, à acumulação de capital) representadas pelos Estados-nação e neutralizar as demandas redistributivas do Sul recentemente descolonizado, tais como aquelas incorporadas na Nova Ordem Mundial”[7]. Quer dizer, haveria uma ação propriamente econômica orientada para “aparelhar” (para usar o termo de Nobre) as instituições políticas que, de algum modo, representariam um empecilho a seu caráter imperial. Em grande medida, é um movimento como esse que Pedro Rossi descreve no caso brasileiro. A “defesa” progressista frente a tais investidas neoliberais, digamos, é econômica para ser política ou institucional para ser econômica, dependendo do autor.
Já na conclusão de seu livro, Marcos sugere a necessidade de “uma transição para estruturas inteiramente diferentes sobre as ‘ruínas do neoliberalismo’”, criando uma estrutura institucional distinta, portanto, daquela que teria sobrevivido paralelamente ou apesar do neoliberalismo. Afinal, “não há mais ancoragem na realidade para a manutenção da institucionalidade própria das sete décadas posteriores ao final da Segunda Guerra Mundial” (MN, p. 217). O ‘pemedebismo’ teria sido a versão tupiniquim dessa institucionalidade heroica ou a institucionalidade capaz de convergir com o neoliberalismo (bem entendido, um tempo depois dos anos 1980, no caso brasileiro).
E não é apenas a noção de neoliberalismo que ganha a cena nas considerações finais do livro de Marcos Nobre, mas aparece ali a ideia de que “modelos diferentes de institucionalidade estão em competição”, de que há um jogo no qual a esquerda teria a tarefa de romper o “pacto infeliz que durou até os anos 2000” (MN, p. 218). Quer dizer, se ele afirma que há uma competição entre modelos institucionais, seria interessante descobrir quais são e quais seriam suas teses centrais (seriam correspondentes, suponho, a agendas econômicas específicas). Até aqui, o que ele mostra é um “pacto infeliz” que se arrastou aos trancos e barrancos (crises) até pelo menos a eleição de Bolsonaro. Por fim, é como se o sistema político institucional fosse a própria definição de democracia, ou seu corolário concreto, freando como pode o avanço do monstro neoliberal, admitindo suas teses quando inevitável – ou quando de seu interesse –, carregando adiante um certo “consenso forçado do neoliberalismo progressista” (MN, p. 217).
Esse “consenso forçado” parece ser o vínculo entre o que se poderia chamar de neoliberalismo político e de neoliberalismo econômico. Mas ele só é “forçado” se entendermos que o liberalismo político do século XXI, ou desde os anos 1980 (era Thatcher-Reagan), ainda significa efetivamente a defesa de uma liberdade democrática-liberal. Porém, a ideia de liberdade cada vez mais hegemônica é aquela que o lado econômico do liberalismo forjou na concretude das relações materiais. É ela que, como diz Wendy Brown, inspira e legitima a extrema direita. É também por isso que a disputa contra a agenda neoliberal é a defesa da democracia – que mereceria, por isso, deixar o adjetivo “liberal”, que já não descreve nada que o próprio termo “democracia” não carregue consigo. Afinal, já não há – se já houve – neoliberalismo progressista, muito menos “consensual”. Há disputa, houve disputa, haverá disputa.
A avenida liberal não tem tanto dois modos distintos, mas duas margens, e é tão descomunal que, a depender de onde se olha, pouco se vê do outro lado. O centro dessa desmedida, o caminho do meio dessa hybris, é o sentido atual de liberdade. A inquestionável necessidade de democracia, que entendo como espaço aberto à disputa institucional entre partidos ou modelos de representação e como espaço trans-institucional aberto à disputa entre agendas ou modelos econômicos, pode ultrapassar os termos de um liberalismo que já tem tantas variações que registram, no limite, sua desintegração (ultraliberalismo, neoliberalismo progressista, democracia iliberal etc.).
Na rua que separa e conecta os projetos de Marcos Nobre e Pedro Rossi está, parece-me, a liberdade, esse eixo temático das recentes transformações econômicas e políticas. Demandas por liberdade de concorrência e ausência crescente de regulações de mercado são cada vez mais teses que combatem o Estado enquanto sistema político (proteção social, numa reedição limitada do Estado de bem-estar, ou agenda distributiva, numa versão atual do desenvolvimentismo brasileiro). Demandas por liberdade de expressão e ausência de regulações trabalhistas ou sociais – até a postura anti-vacina – são cada vez mais teses que combatem o Estado enquanto agente econômico (estruturação de bens públicos, gastos sociais, limitação da atuação privada). Ambas se concretizam pela agenda econômica. O neoliberalismo em ruínas é também um neoliberalismo radicalizado. E seu correlato político é a radicalização da ideia de liberdade que a agenda econômica torna concreta, na forma da extrema direita.
Monica Stival é doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), professora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e no programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar.
[1] Para facilitar a leitura do artigo, usarei nas citações a referência “MN” para o primeiro e “PR” para o segundo, seguida do número da página.
[2] Instituto de Economia (IE), onde Pedro Rossi é docente, e Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), onde leciona Marcos Nobre.
[3] Analisei as linhas gerais desse ponto em meu “Comentário sobre o livro ‘Brasil em disputa: uma nova história da economia brasileira’, de Pedro Rossi”, publicado no Boletim Lua Nova, 9 de dezembro de 2024.
[4] Instituto de Pesquisas Datafolha, PO813673, realizada entre 20 e 21 de março de 2013.
[5] Acredito que houve um equívoco não detectado na revisão final, por isso alterei a citação, já que no livro lê-se “meio para a concretização do modelo de concretização da Constituição”.
[6] Brown, W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente, São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019, p. 20.
[7] Brown, W. Nas ruínas do neoliberalismo, p. 30.