A Maré Verde avança no Brasil
Na dança das cores, a ministra Rosa Weber, em seu último voto como presidente do STF antes de se aposentar, abre as portas para a Maré Verde. Trata-se de justiça social reprodutiva. Nos últimos três anos, essa maré despenalizou o aborto e evitou mortes de mulheres em três países do continente – Argentina, Colômbia e México –, somando-se a outros que já haviam passado por descriminalização. Veja no novo artigo da série Desafios da integração
Às vésperas de sua aposentadoria, de maneira surpreendente inclusive para organizações que lutam pela legalização do aborto e que viam a possibilidade de um real avanço parada desde 2018, quando foram realizadas audiências públicas para debater a respeito do tema, a ministra presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, colocou em pauta o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 442.
Em um voto histórico, dado na madrugada do dia 22 de setembro de 2023, em sessão plenária online, Rosa Weber inaugurou um novo momento da Suprema Corte brasileira, um momento em que a vida das mulheres impera sob o direito penal. Em seu voto, rico de informações e de uma argumentação jurídica irretocável, três conceitos que a ministra apresenta merecem especial destaque: justiça social reprodutiva, campo no qual se insere a proteção ao direito da mulher de escolher livremente continuar ou não a gestação, ter ou não um filho; projeto de vida digna para viver bem, relacionado à liberdade de construir um projeto familiar; e o conceito de cidadania igualitária entre os gêneros, visando a promoção das mesmas condições necessárias ao exercício da autonomia e da liberdade.
Além disso, a ministra cita os casos mais recentes na América Latina de descriminalização do aborto pelas supremas cortes, México em 2023 e Colômbia em 2022. No país da América do Norte, a Suprema Corte decidiu que o ordenamento jurídico que criminaliza o aborto é inconstitucional, pois anula completamente o direito de decidir da gestante. Já na nação sul-americana, decisão histórica da Suprema Corte descriminalizou o aborto até a 24ª semana de gestação, sob o argumento de que a criminalização da interrupção voluntária da gravidez viola o direito à igualdade de mulheres, meninas e adolescentes, afetando sobretudo as mulheres migrantes.
Esses importantes avanços a respeito do tema do aborto no continente, nos quais o Brasil agora se insere – ainda que o futuro do julgamento da ADPF 442 seja incerto –, são fruto de uma luta histórica, que se desencadeou de uma onda de protestos feministas por todo o continente, a qual ficou conhecida como Maré Verde.
A Maré Verde, que teve seu início na Argentina a partir de uma série de mobilizações massivas pelo direito ao aborto, representou um ponto sem retorno naquele país. O movimento de mulheres argentinas vem de um longo histórico, com as Abuelas e Madres de la Plaza de Mayo, que enfrentaram a última ditadura argentina ao reivindicarem a aparição com vida de seus filhos e filhas, e hoje por seus netos e netas, e mais recentemente com o coletivo Ni Una Menos, que a partir de 2015 impulsionou um novo momento do feminismo latino-americano ao politizar a questão dos feminicídios no continente. Ambos movimentos se uniram à Maré Verde.
As vigílias feministas, em que milhares de mulheres empunhando seus pañuelos verdes se encontraram em frente ao Congresso argentino, para aguardar a votação na Câmara de Deputados, em junho de 2018, demonstraram a força do movimento. Ali, naquele momento, se via a expressão máxima de uma luta histórica que condensou muitas causas, que foi e é intergeracional, que convocou diversas militâncias e que conseguiu se fazer massiva por meio de um esforço organizado.
Embora a aprovação da Lei que garantiria o acesso ao aborto seguro e gratuito não tenha se dado naquele dia, para as argentinas não havia volta atrás: os esforços de mais de dez anos da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito só poderiam resultar na aprovação da Lei. E assim aconteceu…
Na Argentina, vale mencionar, os debates em torno da legalização do aborto pautaram inclusive debates presidenciais por pressão dos movimentos sociais. Diferentemente do que presenciamos no Brasil, manifestar-se favorável à legalização do aborto na Argentina, em vez de acarretar perdas de votos, os garantia. Isso fez com que o então presidente e candidato à reeleição, Mauricio Macri, alinhado mais ao espectro de direita ou centro-direita, levasse o projeto de lei pela legalização do aborto à votação pelo Congresso argentino em 2018. E o candidato vitorioso das eleições presidenciais do ano seguinte, Alberto Fernández, em 2020, declarou-se favorável à legalização. E, cumprindo uma promessa de campanha, enviou novamente para votação pelo Congresso Nacional o mesmo projeto.
Assim como o voto da ministra Rosa Weber, a histórica aprovação da Lei 27.610, denominada de Lei de Interrupção Voluntária de Gestação, veio em uma madrugada, no penúltimo dia de um ano que ficou na memória de todo o mundo pela pandemia. Para as argentinas, mesmo em um cenário difícil, o ano encerrou trazendo esperança em tons esverdeados.
A experiência argentina soma-se às mais recentes de México e Colômbia, sob uma perspectiva de integração da América Latina. A Argentina, em especial, avançou um passo a mais com a criação de uma Lei. Essas experiências e as anteriores, de Cuba e Uruguai, podem trazer algumas lições para o Brasil, que agora vê a Maré se aproximar.
Educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e aborto legal para não morrer
A construção do caminho que levou acesso ao aborto na Argentina teve seu início no Encontro Nacional de Mulheres em 2005, quando se idealizou a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Com muitos esforços, a Campanha chegou a contar com mais de trezentos grupos de apoio em toda a Argentina.
Ao longo dos anos, foram formulados projetos legislativos apresentados oito vezes ao Congresso até, por fim, se tornar lei em 2020. Vale destacar que os projetos de lei pela interrupção voluntária da gravidez foram redigidos de maneira coletiva pelas organizações feministas.
A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito enfrentou muitas resistências e desafios desde o seu surgimento. A discussão em torno do tema se tornou tão profunda e urgente que superou um dos maiores entraves a ela, a questão religiosa. Isso se deu pela forte atuação das feministas, que apontaram para o cerne da legalização do aborto: a vida das mulheres. Ou seja, enfatizaram o fato de que garantir a vida destas se tratava de uma questão de saúde pública, e não moral ou religiosa.
Dessa forma, a Campanha ganhou grande parte da opinião pública. Em 2018, 59% dos argentinos e argentinas eram favoráveis à despenalização do aborto naquele ano, e 98% dos entrevistados tinham pelo menos escutado sobre o tema, de acordo com estudo coordenado pela Anistia Internacional.
A Campanha tinha como propósito não somente descriminalizar socialmente o aborto, mas também propor um debate amplo, pautado por inclusão, interdisciplinaridade e transversalidade. Assim, com a finalidade de abarcar o âmbito da educação, da saúde pública, da justiça e do direito de decidir sobre o próprio corpo, a Campanha se centrou em três aspectos: educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e aborto legal para não morrer.
O ativismo intergeracional, heterogêneo e confluente em torno de uma agenda comum fez com que crescesse a Maré Verde e esse movimento ultrapassasse as fronteiras. Feministas de todos os países da América Latina acompanharam a movimentação das argentinas de perto. Desse movimento de solidariedade latino-americano as mulheres encontraram forças nos laços transnacionais para reivindicar por suas vidas e por seu direito de decidir. O resultado foi uma explosão de manifestações por todos os países da região, fazendo renascer e crescer a mobilização feminista em torno dessa pauta.
O lenço verde, marca da luta argentina, usado no pescoço, na cabeça, no pulso, como blusa ou outra vestimenta, ou ainda amarrado na mochila, estendeu o protesto feminista para o campo do corporal e do cotidiano. Os lenços, o brilho, a pintura corporal e a característica geralmente alegre das jovens participantes da Maré Verde, para além de um estilo de protesto, também contribuiu para combater o estigma associado ao aborto, uma vez que as manifestantes não apenas exibem o lenço verde com orgulho e sem medo, mas também celebravam seu direito à liberdade, sua resistência e sua alegria.
Para além da Lei, em 2020, foi criado no ano seguinte o Protocolo de Atenção Integral a quem realizar a interrupção voluntária da gestação. O país também passou a fabricar o Misoprostol, medicamento recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para a realização do aborto seguro, o que permite um maior acesso e distribuição.
Seguindo a tendência de outros países latino-americanos e caribenhos que já haviam descriminalizado o aborto, como é o caso do Uruguai e de Cuba – este, vale ressaltar, descriminalizou o aborto em 1965 –, registrou-se queda no número de mortalidade relacionada a aborto. Um estudo realizado pelo Centro de Estudios de Estado y Sociedad (CEDES) intitulado Los rumbos de la experiencia argentina con el aborto legal trouxe importantes dados: queda significativa e sem precedentes da taxa de gravidez entre crianças e adolescentes; entre 2020 e 2021 a porcentagem de gravidez não intencional de crianças diminuiu em oito províncias; em 2022 não houve novas apresentações judiciais contra a Lei 27.610 ou contra o Protocolo, e não foi processada nenhuma equipe de saúde por realizar abortos seguros e legais; além disso, houve aumento no número de serviços que realizam o aborto no setor público e nos serviços relacionados à saúde sexual e reprodutiva.
Ainda que Argentina, México e Colômbia tenham seus próprios históricos que culminaram na descriminalização do aborto, todos compartilham de um ponto em comum: a luta incansável das feministas em torno da pauta.
Justiça social reprodutiva, projeto de vida para viver bem e dignidade igualitária
Contudo, a experiência argentina nos mostra que é necessário o envolvimento da sociedade como um todo; organizações, sindicatos, entidades diversas precisam se somar nessa luta. No Brasil, um país conservador e com forte influência das igrejas cristãs na opinião pública, o principal desafio está em separar a ética privada da urgência em proteger a vida das mulheres que – mesmo em um país que criminaliza – recorrem ao aborto clandestino, colocando em risco suas vidas em práticas inseguras, além do estigma que está diretamente relacionado à criminalização e à clandestinidade.
O resultado do julgamento da ADPF 442 permanece em aberto e sem data para acabar, ainda que as mulheres tenham pressa. O próximo voto, do agora presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, é esperado que seja favorável, dado o seu histórico de votos sinalizando ser favorável à descriminalização do aborto.
Fato é que o Brasil tem a oportunidade de se somar às decisões históricas de países da região e de ser consonante com decisões pelo mundo. No entanto, para além disso, o país tem a chance histórica de marcar um novo momento, após anos de obscurantismo e negacionismo, um momento comprometido com os direitos sociais, com os direitos das mulheres, de derrubada do Marco Temporal, um momento que irá permitir novos passos em direção ao direito de escolha, à autonomia dos corpos, à preservação da vida das mulheres e à consolidação do que a ministra Rosa Weber trouxe em seu voto: justiça social reprodutiva, projeto de vida para viver bem e dignidade igualitária. Os ventos do Sul sopram a favor da Maré que avança. Que o voto de uma mulher seja o prenúncio de vida das mulheres. Que tenha chegado o nosso ponto sem retorno.
Thatiane Mandelli é graduada em Direito com especialização em Ciências Sociais pela Universidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Em seu mestrado, estudou a internacionalização do movimento Ni Una Menos, que se iniciou contra os feminicídios na Argentina e se ampliou em sua pauta, sendo importante vetor na aprovação da Lei do Aborto naquele país.