Marguerite Duras e o cinema de renúncia ao entretenimento
Como cineasta, Marguerite Duras adotou uma posição ideologicamente contrária à cultura do entretenimento e ao sucesso do cinema americano e estrangeiro, que, segundo ela, reduzia o espectador a um mero consumidor
Passados 25 anos da morte de uma das maiores escritoras da literatura francófona, Marguerite Duras, seu público leitor desconhece o cinema que ela produziu enquanto se licenciava, voluntariamente, do laborioso trabalho da escrita de romances. Ao todo foram dezenove filmes, uma produção prolífica nos anos 1970 e 1980. Nenhum filme, contudo, atraiu o interesse do grande público, mesmo que dois deles, India Song e Le Camion, tenham sido homenageados no Festival de Cannes, numa projeção hors-competition. Sua aversão à indústria cinematográfica – o esforço em se distanciar da “fábrica de ilusões” – fez com que ela afirmasse um cinema poético, que empresta à narrativa literária a fim de proclamar uma liberdade de expressão. Como cineasta, Marguerite Duras adotou uma posição ideologicamente contrária à cultura do entretenimento e ao sucesso do cinema americano e estrangeiro, que, segundo ela, reduzia o espectador a um mero consumidor. Ainda que a crítica encontre afinidades entre o seu cinema e o de Jean-Luc Godard, pelo aspecto político e literário, sua criação foi singular.
Antes de se dedicar ao cinema, Marguerite Duras já era, a olhos vistos, escritora consagrada. Autora de Uma barragem contra o Pacífico e O arrebatamento de Lol V. Stein, livro este que surpreendeu o filósofo Jacques Lacan, a escritora, nos idos de 1960, se desdobrava entre encomendas de peças de teatro, proposições de filmes a partir de seus romances e os contratos com as editoras. Principalmente com a Gallimard, família que frequentava sua casa em Neauphle. O contato com o meio cinematográfico se deu, em um primeiro momento, com o convite do cineasta Alain Resnais para escrever os diálogos de Hiroshima, mon amour, persistindo depois com alguns roteiros para a TV. Ela acaba vendendo os direitos autorais de Uma barragem contra o Pacífico, Moderato Cantabile e mais tarde, O amante, para René Clement, Peter Brook e Jean-Jacques Annaud, respectivamente. Sem esconder a frustração pela adaptação de sua obra, razão pela qual vem a público por repetidas ocasiões, ela se lança ao projeto de fazer seus próprios filmes.
Mesmo com o reconhecimento da literatura, o cinema foi para ela uma espécie de refúgio, de alento ao fardo da escrita, solitária, exigente, penosa, silenciosa, monástica. Ao experimentar o cinema como um novo meio de expressão, deixando a escrita de romances no “modo espera” de 1968 a 1982, a escritora, intelectual e amiga de François Miterrand enfrenta percalços ao fomento de seus projetos.
Apesar do respaldo da revolução cultural ocorrida na efervescência de 1968, o cinema de mulheres na França não se beneficiava de um contexto cultural e econômico favorável. Os anos efusivos que sucedem 1968, marco de transformações no âmbito também acadêmico e filosófico, não foram tão férteis para a produção de cinema. Em consequência, nunca se produziu tanto cinema experimental, porque este contava com improvisações e baixo custo. As mulheres cineastas deparavam-se com o custo oneroso dos estúdios, optando por filmar fora deles. No caso de Duras, ela utilizava seus aposentos, sua própria casa em Neauphle-le Château, ou o Hotel des Roches Noires, em Trouville-sur-Mer, na Normandie. Seu filme Nathalie Granger (1972), com Jeanne Moreau, foi inteiramente filmado em sua casa e arredores.
Depois do filme produzido, outra dificuldade: sua distribuição no circuito de salas de cinema na França. A solução foi participar dos festivais do circuito de cinema alternativo, não só na França mas na Itália e na Holanda. Ela praticava então o cinema que poderia ser dito de “sobrevivência”, sem investimentos e que a desobrigou de contratos de marketing e produção, dando mais liberdade de criação. Não que ela quisesse proteger o cinema francês dos sucessos de filmes americanos ou estrangeiros, mas era uma questão de ser fiel à liberdade de expressão, descompromissada com um cinema de pura distração, alienante, e intimamente ligado à indústria do entretenimento.

“O espectador [esse do cinema comercial] não sabe ver, como também não sabe ler”, dizia Duras à Radio France Culture, após mostrar seus filmes em Cannes. Em várias entrevistas ao longo da carreira, ela se posicionou a favor de um cinema libertário, livre de fórmulas, de estratégias e de armadilhas narrativas que seduzem o espectador como uma presa. Sua obsessão era por um espectador que fosse, ao mesmo tempo, seu leitor, capaz de compreender suas estratégias estéticas, poéticas ou que pudesse “ler” seus filmes como lia seus livros. Esse espectador corresponderia hoje a “um espectador emancipado”, para emprestar o termo ao filósofo Jacques Rancière, aquele capaz de ver, de sentir, mas também de associar, de imaginar e de compreender poeticamente uma obra cinematográfica. Priorizando sua liberdade autoral, Duras se habituou ao cinema de baixo custo, com o qual se identifica também o cinema experimental, projetado em festivais de cinema itinerantes ou em pequenas salas.
Tal posição de rejeição política ao cinema de entretenimento se expressava na renúncia às convenções formais da linguagem cinematográfica, como a escrita de um roteiro ou do planejamento de etapas de produção de um filme. O filme Le Camion, de 1977, no qual ela renuncia à mise en scène, limitando-se a ler o roteiro em companhia do ator Gerard Dépardieu, traz, em seu bojo, um discurso panfletário. Tal discurso sustenta que o cinema nunca alcançaria a força do texto, pois a imagem restringe a imaginação do leitor. Trata-se de uma comparação com a literatura, com o livro, mas também de uma denúncia nas entrelinhas, do que é filmar sem financiamento, de como reduzir o filme ao seu valor de baixo orçamento. A cena se passa na sala da sua própria casa, em Neauphle. Ora, a recusa em filmar o roteiro apresentando-o é uma motivação de fundo político, se contrapondo à políticas de fomento ao cinema comercial, que ela abominava, chamando ironicamente de “cinema [de sessão] do sábado à noite”, ou seja, da mera diversão.
Enquanto escritora, Duras não se sentia propriamente cineasta. Sentia-se completamente deslocada no meio cinematográfico, principalmente aquele do glamour, das estrelas de Cannes. Ela confessava nem mesmo conseguir sair do quarto de hotel.
O Festival de Hyères, onde no início dos anos 1970 cineastas como Jean-Luc Godard e Chantal Akerman mostravam seu cinema, foi o que mais acolheu Duras. Não era só onde ela projetava seus filmes, mas onde participou, inclusive, como membro do júri.
Foi lá, convivendo no meio cinéfilo, que Duras se sentiu à vontade, se inspirando em estéticas experimentais. A tela negra em que ela priva o espectador de imagens, deixando que ele escute apenas sua voz off : texto do livro literário L’Homme atlantique, um filme de cerca de quarenta minutos, nos quais 25 são de tela escura. Filme aliás que utiliza a prática do found footage, que consiste em aproveitar cenas não utilizadas num filme anterior para montar um novo. Essas eram, portanto, as suas práticas de um cinema à margem do cinema de grande público.
A aparição do vídeo: uma ameaça ao cinema
O contexto cultural e tecnológico dos anos 1980 não favorece o cinema de mulheres, mas incentiva ainda mais a indústria do entretenimento com os blockbusters, filmes comerciais recheados de efeitos especiais, e motivo de filas numerosas nas sessões. Se hoje o papel crescente das plataformas de streaming ameaça a experiência cinematográfica como ritual, nos idos dos anos 1970 e 1980, uma mudança radical ocorre com a chegada do vídeo: locadoras que se alastravam, a popularização de câmeras de vídeo portáteis e da mudança, sem precedentes, dos hábitos cinéfilos, do entretenimento. Nessa altura, a cineasta Duras não se preocupava tanto com o futuro do cinema, mas com a ameaça à cultura da escrita e, claro, da leitura. Quantos leitores o mercado editorial perderia para a rápida e fácil proliferação das telas com a popularização do vídeo, mesmo antes da era digital?
Numa entrevista à televisão, respondendo à questão de como ela imaginaria os anos 2000, Duras profetiza a cultura da informação: “Uma obsessão por informações e telas por todo lado: na cozinha, no escritório, na rua…, o indivíduo dominado pela informação”. A leitura ficaria em segundo plano, esquecida ou minimizada pelo impacto do vídeo. Profecia essa que continua a se concretizar hoje, na era digital.
Luciene Guimarães é Doutora em Estudos cinematográficos pela Université Laval (Canada) e tradutora da obra de Marguerite Duras, no Brasil.