Marighella: entre o fato, a fake news e a ficção
Como a história do “kit gay” ou da “mamadeira de piroca”, que já caíram no anedotário nacional, em que pese sua dimensão perniciosa, a farsa, dessa vez, gira em torno da figura de Estela Borges Morato, uma investigadora de polícia que teria sido “vítima do terrorismo”
Marighella, o filme
A proximidade do lançamento no Brasil do filme Marighella, de Wagner Moura, aliado à repercussão da passagem do estreante diretor baiano pelo Festival de Berlim, onde o filme foi exibido, tem movimentado os debates sobre o caráter da ditadura (1964-1985) e da luta armada no país. O fato de que o cinema nacional brasileiro é ainda bastante devedor de uma abordagem consistente de temas espinhosos do seu passado recente, algo que se evidencia por comparação à cinematografia chilena e argentina, principalmente, mas também de outros países latino-americanos, adiciona expectativas alvissareiras à realização do filme. Conjugado a este fato, a atmosfera sombria que paira sobre a política no país desde a eleição do candidato da extrema-direita Jair Bolsonaro, que cercou-se de militares nomeados para diversos ministérios, o filme de Wagner Moura tornou-se alvo de inúmeras controvérsias antes mesmo de entrar em cartaz.
Quando da passagem de Wagner Moura e sua equipe pelo Festival de Berlim, onde Marighella foi exibido para uma plateia composta por jornalistas e que contou com a presença do ex-deputado psolista auto-exilado, Jean Wyllys, a reação do público foi de ovacionar e aplaudir de pé. Numa demonstração de aprovação da estética fílmica, mas também ao tom de manifesto, impresso na película pelo seu diretor, que jamais se negou a dizer das suas intenções políticas com o filme, a obra promete ainda mais polêmica até a sua estreia, e muito além, como se percebe na permanência da polarização política vivida no Brasil desde 2013.
Mesmo sem participar da competição oficial, Marighella já vinha despertando grandes expectativas da crítica e do público. Como se o personagem interpretado por Seu Jorge já não fosse suficientemente polêmico, ainda mais nos dias atuais, Wagner Moura, que também não esconde suas simpatias pela esquerda e que nas eleições presidenciais de 2018 declarou apoio ao dirigente do MTST e candidato do Psol, Guilherme Boulos, posou para fotos com uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco (PSOL), executada em março de 2018, junto com seu motorista Anderson Gomes, em crime até hoje não esclarecido pelas autoridades brasileiras.
O filme de Wagner Moura é aguardado com entusiasmo e expectativa pelos apreciadores de cinema, que não veem a hora de assistir à obra de estreia do celebrado ator que interpretou com maestria o personagem capitão Nascimento, na película premiada de José Padilha, Tropa de Elite 1 e 2, e depois ainda deu vida ao traficante colombiano Pablo Escobar em série produzida pelo mesmo Padilha para a Netflix. Mas não apenas os cinéfilos aguardam a chegada de Marighella aos cinemas do Brasil. Os amantes e estudiosos da história, especialmente da controversa história recente do país, quando os militares governaram por 21 anos depois de um golpe dado em 31 de março de 1964, também aguardam ansiosamente a estreia da película, haja vista a importância que tem Marighella na quadra histórica da última ditadura, mas também devido à sua movimentada trajetória, desde os anos estudantis, até sua longa passagem como militante e dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Marighella, o personagem histórico
Carlos Marighella, o militante baiano da Ação Libertadora Nacional (ALN), que ficou conhecido por ter sido considerado “o inimigo número 1” da ditadura militar no Brasil, é um dos personagens mais importantes da história da esquerda no país, rivalizando com a figura de Luiz Carlos Prestes. Apenas para se ter uma ideia, enquanto o longevo dirigente do PCB, morto em 1990, aos 92 anos, conhecido como Cavaleiro da Esperança e biografado, nos anos 1940, no romance de Jorge Amado, apenas recentemente ganhou duas biografias de peso, enquanto Carlos Marighella, morto aos 57 anos, é um dos personagens mais biografados da esquerda no país.[1]
Celebrado pela esquerda, que costuma honrar a sua memória e que recentemente conseguiu lhe restituir, simbolicamente, o mandato cassado em 1948, Marighella é odiado pela direita, que não lhe poupa adjetivos sórdidos, chamando-o de terrorista, assaltante de bancos, sequestrador, criminoso, marginal e assassino. Em vista dessa atitude, proliferam na blogosfera vídeos de famosos desconhecidos firmemente empenhados em tentar combater a edificação da sua memória e a sua conversão em mito e herói nacional, ao lado de textos que procuram desconstruir a memória de Marighella construída pelo trabalho de historiadores.
Foi, entretanto, por ocasião da passagem de Wagner Moura por Berlim que as controvérsias começaram a se intensificar e extrapolar o universo paralelo das redes sociais para alcançar os jornais, os comentários da imprensa e as polêmicas dos jornalistas. Exemplo disso foram as reportagens feitas pelos grandes veículos de comunicação sobre a repercussão do filme exibido no Festival de Berlim que provocaram comentários raivosos de leitores, que não se furtam de dirigir impropérios aos realizadores do filme e, por extensão, aos jornalistas que fizeram a cobertura e produziram as matérias.
Seja nas redes sociais, que comportam quase tudo e que cumpriram um importante papel na vitória eleitoral de Bolsonaro, admirador da ditadura e do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido torturador que foi homenageado pelo então deputado no dia da votação do impeachment de Dilma Rousseff, os temas abordados pelos polemistas em torno da figura de Marighella vão da cor da sua pele, ao significado da abordagem oferecida por Moura que, supostamente, estaria contribuindo para transformar um “terrorista” em herói. Nesse quesito, como não podia deixar de ser, pessoas que se declaram de direita, mesmo sem terem visto o filme, já afirmam odiá-lo, pois já supõem um tratamento simpático ao guerrilheiro, que muitos consideram tratar-se de um criminoso, beneficiado pelas narrativas edificadas pela esquerda que, para os detratores, dominaram o universo cultural do país nos últimos anos.
Controvérsias sobre Marighella
Marighella era um homem negro ou, no mínimo, socialmente negro para os padrões adotados pelo Brasil no século XX. O fato de ser negro, entretanto, nunca chegou a determinar os traços mais característicos de sua trajetória de militante comunista por mais de trinta anos. Ou seja, apesar de ser filho de um imigrante italiano e de uma descendente de africanos da etnia dos haussas, trazidos como escravos para o Brasil, o que lhe garantia fenótipos negros, Marighella, como toda a esquerda da época, não atribuía centralidade a esta questão, menos em função de se considerar “mulato”, termo comum na época e usado pelo próprio comunista em algumas situações, mais porque o traço negro de sua identidade não era definidor de sua militância.[2] Em vista disso, a escolha de Seu Jorge para o papel de Marighella, por Wagner Moura, é parte das escolhas políticas e estéticas que visam uma atualização do personagem na obra ficcional, uma forma de aproximar o público de Marighella, através da adoção da linguagem identitária em sua forma corrente, mas também uma maneira de afirmação política da negritude do comunista e guerrilheiro baiano.
Se Marighella não era assim “tão negro” quanto Seu Jorge, como muitos fazem questão de ressaltar, isso não tem a menor importância na obra cinematográfica, que não pretende ser, em nenhum momento, uma reprodução da verdade histórica. O fato de o próprio Marighella não atribuir centralidade à questão, pelo que se depreende das obras históricas a ele dedicadas, como foi dito, deve-se menos ao que muitos acreditam ser a uma autonegação de sua identidade racial, algo que não é corroborado pelos seus textos e pelas evidências levantadas pelos historiadores, do que pelo fato de que a questão racial não tinha a centralidade na trajetória política de um militante comunista formado na tradição stalinista. Dito isso, não chega a ser impossível se imputar à polêmica de que Marighella era ou não negro, um das formas com as quais o racismo vem se fortalecendo no Brasil, já que aqueles que imputam o estereotipo de branquitude a Marighella pretendem diminuir a importância das lutas dos movimentos negros que, segundo estes, estariam vinculadas às tentativas de vitimização que a construção mítica do personagem de negro e herói viriam a estabelecer.
Mas se a questão racial norteou boa parte das polêmicas que ganharam as redes sociais nos dias seguintes à exibição do filme em Berlim, é no aspecto prático da vida do comunista Carlos Marighella que pesam as maiores acusações. Nesse quesito, o acirramento das disputas pelas narrativas em torno do que foi o golpe de 1964, a ditadura, a resistência e a luta armada, ganham contornos políticos cada vez mais intensos. Considerando-se que um dos objetivos declarados do governo empossado em 1º de janeiro é promover uma revisão da forma como o período é abordado nos livros didáticos de história, o fato de que acólitos do bolsonarismo tenham resolvido enveredar pelas contendas sem nenhum conhecimento do assunto não surpreende.
Ao lado disso, versões que antes ficavam circunscritas ao ambiente castrense, tendo em conta que não eram produto de estudos sistematizados e calcados em evidências robustas, romperam o muro que as mantinha neutralizadas, vindo a público disputar a “verdade” com as versões correntes dos historiadores, muitos dos quais com décadas de investigação científica séria e consistente.
A propósito do assunto, no dia 17 de fevereiro, o comissário de polícia e colunista do jornal carioca Extra, Aurílio Nascimento, publicou artigo intitulado “Lembrando Estela”.[3] O pequeno texto, escrito com a intenção de evocar a memória de uma personagem de quem se dizia ter sido esquecida dos historiadores, consiste numa evidente tentativa de disputar a narrativa, quando não, de destruir a memória de Marighella, alvo da curiosidade de muitos em função do lançamento do filme de Moura.
O artigo em questão, que logo viralizou nos grupos de WhatsApp do país, é mais uma das mentiras típicas da fábrica de fake news montada nos laboratórios da extrema-direita que, no Brasil, elegeu Bolsonaro. Como a história do “kit gay” ou da “mamadeira de piroca”, que já caíram no anedotário nacional, em que pese sua dimensão perniciosa, a farsa, dessa vez, gira em torno da figura de Estela Borges Morato, uma investigadora de polícia que teria sido “vítima do terrorismo”. Em aberto apelo sentimental, o artigo de Aurílio Nascimento trata da policial, “jovem e bonita”, que resolve mudar de emprego, largando o banco onde trabalhava, para seguir carreira na polícia. Com pouco tempo na carreira, “Estela foi designada para uma operação de captura de um criminoso, assaltante de bancos”. De onde se depreende os evidentes riscos da missão, o artigo prossegue dizendo que o “perigoso marginal, juntamente com seus comparsas, resistiu à prisão. Estela foi atingida na cabeça e morreu dias depois”.
O texto de Aurílio Nascimento não diz de onde partiu o tiro, mas pelo que vem em seguida, o leitor conclui que foi da arma do “perigoso marginal”, “criminoso” e “assaltante de bancos” Carlos Marighella, emboscado na ação em que Estela Morato participava, na qual foi vitimada. Em seguida o texto prossegue: “Estela Borges Morato, a heroína, é quase que totalmente desconhecida dos brasileiros. O marginal, ao contrário, não só é amplamente conhecido como mais um filme foi feito em sua homenagem”, e o autor conclui pelo absurdo das tentativas de transformar em mártir um “terrorista que lutava para implantar uma ditadura no nosso país”, pois o comunista baiano, o guerrilheiro da ALN morto, Carlos Marighella, “não queria o bem de ninguém e muito menos mudar o mundo. Queria o poder, o poder exercido a ferro e fogo pelos ditadores”.
Acrescentando que Marighella não era um pobre coitado, mas alguém que tinha cursado Engenharia e foi deputado, ao que se supõe que era aquinhoado, alguém que, pelas homenagens e a distorção da história, foi transformado em herói pelo filme de Wagner Moura, o texto joga peso para desconstruir a memória recuperada depois da redemocratização e das políticas estabelecidas a partir de 2011, com a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que ratificaram que Marighella foi vítima do Estado brasileiro.
Obviamente que o artigo de Aurílio Nascimento não diz nada sobre quem foi Marighella. Não diz que era filho de uma mulher negra descendente de escravos e de um operário italiano radicado na Bahia; não diz sobre suas prisões nos anos 1930 (1932, 1935 e 1939, esta última que lhe levaria a passar quase seis anos na cadeia, inclusive na Ilha Grande) e das torturas que sofreu no período; não aborda sua eleição como deputado Constituinte em 1945, pelo PCB baiano, nem dos seus discursos e atuação em defesa do povo brasileiro; também não há nenhuma menção à absurda cassação do seu mandato junto com os outros catorze deputados eleitos pelo PCB, além do senador Luiz Carlos Prestes, em 1948, e não há palavra sobre o fato de que precisou viver na clandestinidade quase por toda a sua vida, fugindo dos ditadores, mas também dos democratas de fachada, apenas por ter cometido o crime de professar uma ideologia estranha ao establishment.
Mas isso não é o que interessa no texto que ganhou repercussão após circular pelos grupos de WhatsApp, especialmente pela ênfase conferida à ideia de que Marighella era um terrorista, um assaltante de bancos, um criminoso e assassino.
O militante, o stalinista, o guerrilheiro
De fato, Marighella era um comunista e ser comunista nos tempos que correm é quase ser contra a lei. Marighella não era apenas um comunista, mas um stalinista que em 1937 foi designado pelo PCB para combater a fração de Hermínio Sachetta, em São Paulo, considerada como tendo desvios “trotskistas” pelo bureau político dirigido por Lauro Reginaldo da Rocha, conhecido como Bangu.[4] Como orgulhoso stalinista, uma característica que não era apenas de Marighella, mas de todos os militantes dos partidos comunistas do mundo, inclusive o PCB, Marighella se alinhava às posições da União Soviética, numa época em os comunistas consideravam os trotskistas como traidores.
Como stalinista, Marighella também desconhecia em profundidade os significados das querelas no interior do Partido Comunista da URSS, e menos ainda os crimes cometidos por Stalin, que seriam denunciados em 1956. Nessa condição, muito antes de adotar a alternativa guerrilheirista nos anos 1960, o que lhe levaria a romper com o PCB, Marighella lutou por mais de trinta anos por democracia em seu sentido pleno: com direitos políticos assegurados, mas como extensão de direitos ao campo econômico, portanto por democracia material, com redução das desigualdades e inclusão social dos setores secularmente excluídos. Tal estratégia, que discuti detalhadamente em obra publicada em 2009, era pensada pelo PCB que imaginava que as tarefas da revolução no Brasil eram democráticas, portanto, burguesas.[5]
Como dirigente do PCB, Marighella, que era um homem negro, nascido em um estado com acentuado grau de exploração e concentração fundiária, acreditava que o Brasil precisava extirpar os resquícios do feudalismo e desenvolver o capitalismo, com mercado interno e democracia, sendo essa a única condição que tornaria possível a transição para o socialismo, remetido para uma etapa posterior e distante. Marighella tanto acreditava nessas teses que foi signatário de vários documentos importantes do PCB, inclusive a famosa Declaração de Março de 1958, cuja redação foi atribuída ao chamado “grupo baiano” (Marighella, Armênio Guedes, Giocondo Dias, Alberto Passos Guimarães – o único que não era baiano, mas havia morado na Bahia –, Jacob Gorender e Mário Alves).
Mas então veio o golpe de 31 de março de 1964 e os sonhos de Marighella começaram a se desfazer junto com a expectativa de transformar o Brasil por vias pacíficas. Após consumado o golpe, Marighella foi procurado pela polícia em sua casa, sem que nenhum crime lhe tivesse sido atribuído, apenas o de ser um conhecido comunista, um ex-deputado cassado no tempo em que o PCB foi posto na ilegalidade. Tendo escapado da diligência, um mês depois, enquanto aguardava roupas que lhe seriam levadas pela zeladora do prédio onde morava, que vez por outra fazia faxina em sua residência, Marighella foi surpreendido por policiais de tocaia. Caçado pelas ruas do bairro carioca onde morava, o dirigente comunista entrou em um cinema e com bravura e resistiu à prisão, pois já conhecia os métodos da tortura que lhe aguardavam. Enquanto enfrentava os policiais, Marighella teria gritado: “Matem, bandidos! Abaixo a ditadura militar fascista! Viva a democracia! Viva o Partido Comunista!”, antes de ser atingido por um tiro, que lhe entrou pelo tórax, percorreu a axila, vindo a se alojar no braço esquerdo.[6]
Sobre o episódio, e iniciando seu balanço que o levaria à ruptura com o PCB, Marighella escreveu o livro Por que resisti à prisão, em 1965, que constitui uma importante reflexão sobre o país e as limitações das lutas empreendidas pelo seu partido, o PCB, que tinha ilusões na burguesia nacional e na democracia: “Por uma ironia da história, os comunistas, agora acusados de subversão, defendiam a democracia burguesa, interessados que são na permanência de um clima de liberdade e na conquista da legalidade para o Partido Comunista”, anotou antes de enfatizar ser o marxismo “uma doutrina revolucionária”, sendo a “revolução definida em seu verdadeiro sentido, isto é, seu sentido histórico”.[7]
Após o golpe, o PCB seguia acreditando na democracia e no etapismo, entendendo que o caminho para o socialismo seria antecedido pela realização das tarefas democrático-burguesas da revolução, mas Marighella pouco a pouco vinha perdendo as esperanças na luta de massas e na necessidade de construir um partido. Muito embora não tivesse abandonado a estratégia etapista, como de parte, boa parte das dissidências do PCB não chegaram a abandonar, ou seja, como pressupunha que o socialismo não era tarefa para um país atrasado como o Brasil, Marighella entendeu que o PCB não era o partido capaz de preparar o caminho para a revolução. Em 1967, depois de participar na Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), em Havana, Cuba, o dirigente comunista, que já vinha desenvolvendo estudos e uma aproximação com os métodos da guerrilha, entrou em confronto com as posições historicamente defendidas pelo seu partido, vindo a ser expulso poucas semanas depois do evento.
Tentativas de eternizar o embuste
Em setembro de 1968, junto com outros companheiros, e sendo parte das várias defecções que atingiriam o PCB e resultariam em organizações voltadas para a luta armada, Marighella fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), o grupo guerrilheiro mais importante no período da ditadura. Pouco mais de um ano depois, Marighella já estava morto, executado numa emboscada preparada pelo temível delegado e torturador Sérgio Paranhos Fleury, chefe do Dops de São Paulo. Portanto, a pecha de terrorista que lhe foi impingida teve pouco mais de um ano para se testada, haja vista que, como guerrilheiro, Marighella pouco participou de ações e não esteve em nenhum ato que poderia ser caracterizado como “terrorismo”, a não ser nas premissas de ditaduras e governantes fascistas.
A ALN, por sua vez, organizou muitas ações no contexto da ditadura. A mais importante foi o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke-Elbrick, junto com um grupo de estudantes da Dissidência Comunista da Guanabara que, no curso da ação, assumiu o nome de uma organização que tinha sido desbaratada pouco antes, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Apesar da participação da ALN no sequestro do embaixador estadunidense, Marighella não teve envolvimento direto na ação, visto que o grupo atuava através de células que quase não tinham contato umas com as outras. Apesar disso, o baiano já era um firme defensor das táticas da guerrilha, tendo, inclusive, escrito um dos textos mais importantes sobre o assunto, obra que vem sendo utilizada pelos detratores atuais como prova de que era, de fato, terrorista.
Em verdade, o epíteto de terrorista era utilizado pela ditadura contra quase todos que lhe faziam oposição, então é preciso contextualizar as ações de Marighella no quadro de uma luta feroz e desigual contra um governo instituído através de um golpe, que censurava a imprensa, perseguia opositores e promovia a violência política e a tortura aos que eram chamados de terroristas e também outros desafetos. Não obstante, Marighella não defendia mais a via pacífica ou a luta democrática e de massas contra o regime instaurado pelas armas, como fazia o PCB. Entendendo que esse caminho estava interditado com o golpe, o dirigente da ALN não cultivava o que acreditava serem ilusões sobre a forma de luta que deveria ser utilizada. Entretanto, cônscio da alcunha adotada pela ditadura contra os adversários da luta armada, no Minimanual do guerrilheiro urbano, texto escrito em 1969, assumiu como “nobre” a luta guerrilheira e a violência revolucionária para derrotar os militares: “A acusação de ‘violência’ ou ‘terrorismo’ sem demora tem um significado negativo. Ele tem adquirido uma nova roupagem, uma nova cor. Ele não divide, ele não desacredita, pelo contrário, ele representa o centro da atração. Hoje, ser ‘violento’ ou um ‘terrorista’ é uma qualidade que enobrece qualquer pessoa honrada, porque é um ato digno de um revolucionário engajado na luta armada contra a vergonhosa ditadura militar e suas atrocidades”.[8]
Pouco depois de escrito o Minimanual, que ganharia o mundo, cumprindo papel semelhante à obra de Che Guevara, Guerra de guerrilhas, ou a de Régis Debray, Revolução na revolução, publicadas no mesmo contexto, a curta carreira de Marighella como guerrilheiro chegou ao fim, no dia 4 de novembro de 1969. Na ocasião, uma emboscada foi montada pela polícia para capturá-lo vivo ou morto. Nela estavam presentes, além de Fleury, muitos outros agentes do Dops, incluindo Estela Borges Morato, motivo do artigo de Aurílio Nascimento citado acima. Há alguns livros e muito material que descrevem com precisão o que ocorreu naquele dia na Alameda Casa Branca, em São Paulo. Uso aqui a descrição feita pelo jornalista Mário Magalhães, no seu Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo, livro no qual se inspira o filme de Wagner Moura. Apesar de escrito de maneira romanceada, a obra de Magalhães é fruto de vários anos de pesquisa e narra cuidadosamente a cena da tocaia que vitimou o dirigente da ALN que, ao contrário do que é sugerido por Nascimento e do que é dito pelos seus detratores, sequer teve tempo de reagir. Sua única iniciativa, após a abordagem dos policiais, foi a tentativa de pegar a pasta em que carregava um revólver calibre 38 e as capsulas de cianureto que levava para o caso de ser capturado vivo.
De acordo com Mário Magalhães, após ser abordado quando se encontrava num Fusca com os freis dominicanos Ivo e Fernando, dois de seus companheiros, Marighella se abaixou para tentar abrir a pasta que se encontrava próximo do seu banco após ver Ivo e Fernando, que estavam no banco da frente, serem arrancados para fora do automóvel. Antes de alcançar a pasta, contudo… “Tarde demais: atiram à queima roupa, e a fuzilaria sacode a Alameda Casa Branca. Uma bala perfura as nádegas e provoca quatro ferimentos. Outra, calibre 45, aloja-se no púbis. A terceira penetra e sai pelo queixo […] Até que, de uma janela do Fusca, acertam-no no tórax, lesionam a aorta e ele não se mexe mais”.[9]
Sem ter disparado um tiro e sem sequer ter arma na mão, atingido por vários disparos, Marighella foi retirado do carro para morrer na calçada. A versão montada por Fleury e seus comparsas, que o puseram novamente no Fusca, foi a de que ele havia resistido à prisão, atirando contra os policiais, e atingindo Estela Borges Morato, a investigadora “esquecida da história”, segundo Aurílio Nascimento.
Mas se não foi Marighella quem matou Estela Morato, quem fez os disparos que atingiram a “bela jovem”? Segundo Mário Magalhães, após a execução de Marighella, um fato inusitado ocorre: o protético alemão Friedrich Adolf Rohmann, que vinha com seu carro pela Alameda Lorena, desafia a barreira policial e avança pela Casa Branca, interditada pela polícia. Sobressaltados os policiais “tomam-no como membro retardatário de um fantasioso aparato de segurança de Marighella. […] Dessa vez disparam também com metralhadoras. Matam Rohmann e seu carro para. Essa segunda fuzilaria deixa outros feridos, alvejados pelos próprios parceiros. Tucunduva, baleado na perna esquerda no meio da rua; e Estela Morato, na cabeça dentro do Chevrolet. O sangue jorra do delegado, mas ele se safará. A investigadora falecerá em três dias”.[10]
Quem matou Estela Morato, portanto, não foi o “terrorista” Marighella, mas justamente as forças da repressão comandadas por Fleury. O fato, narrado por Magalhães, já havia sido descrito por Jacob Gorender, no seu Combate nas trevas.[11] Também Emiliano José, que confrontou versões, formulou hipóteses e ouviu testemunhas, concluindo que Marighella havia sido executado sem poder reagir, apresentou uma versão bastante detalhada.[12] Já os historiadores Cristiane Nova e Jorge Nóvoa discutiram a questão detidamente, incluindo o parecer do médico legista Nelson Missini, que uma década depois preparou um laudo atestando que o guerrilheiro baiano havia sido morto dentro do automóvel, cruzando versões surgidas nos jornais da época, alguns dos quais diziam que a bala que havia matado Estela tinha partido de seguranças de Marighella, o que contribuiu para reforçar a versão oficial montada por Fleury, que na imprensa continha algumas variações.[13]
Foi, entretanto, pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade que a versão mais próxima da definitiva foi estabelecida. De acordo com o texto final da CNV, “também, constatou-se não ter havido troca de tiros, pois todos os disparos observados partiram de fora para dentro do veículo e a arma encontrada com Marighella estava no interior de uma pasta, sem ter expelido nenhum tiro”.[14]
O fato é que o Dops “costurou sua ficção histórica” em torno dos acontecimentos na Alameda Casa Branca, com o apoio de alguns jornais, alguns dos quais trouxeram em suas manchetes: “Marighella matou Estela”. Tal versão foi depois endossada pelo torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, que preparou uma lista das “vítimas do terror” na qual incluiu Rohmann e Estela Morato, “eternizando o embuste”, conforme escreveu Mário Magalhães, dando ainda munição para os saudosos da ditadura tripudiarem sobre a verdade histórica.[15]
A história não é uma ciência exata, há inúmeras controvérsias sobre tantas questões, mas aquela que se presta à falsificação não é história, mas embuste no interesse dos poderosos. Há historiadores sérios que trabalham debruçados sobre documentos e estribados em hipóteses consistentes que vão sendo testadas diante das evidências que surgem. Para a maioria esmagadora desses historiadores, o Brasil viveu um golpe civil-militar em 1964 e uma ditadura entre 1964 e 1985. Os historiadores não procuram heróis ao contar suas histórias, mas invariavelmente se deparam com vítimas e com algozes sobre os quais tendem a tomar partido. Tomar partido, contudo, não é escrever contra as evidências que foram descobertas, que constituem provas daquilo que aconteceu. Quem escreve contra as evidências, falsifica a história, tornando-se um declarado revisionista ou negacionista, aqueles que por motivações políticas distorcem ou falsificam as evidências em nome de posições ideológicas. Há no Brasil de hoje um forte movimento revisionista que não parte de historiadores, mas daqueles que estão interessados em modificar a versão dos fatos, simplesmente porque ocupam o poder. Se esse movimento lograr êxito, corremos o risco de perder uma parte importante da frágil memória histórica que a duras penas se construiu sobre o passado recente do país. Mas não há o que lamentar, tendo em vista que há tantas batalhas que permanecem em curso, que incluem a apropriação do passado tal qual ele se deu. Parafraseando Walter Benjamin, que atentava para a forma como a memória era disputada aos poderosos, afirmamos que se o inimigo vencer, nem mesmo os nossos mortos estarão em segurança. Por isso, precisamos lutar pelo estabelecimento da verdade e lutar por esta é salvaguardar a memória de personagens como Carlos Marighella, Marielle Franco e de todos aqueles que tombaram lutando por um país melhor, o que significa, também, um país que seja capaz de se apropriar do passado em sua plenitude.
*Carlos Zacarias de Sena Júnior é professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA).