Mario Filho na Rádio Guanabara: os ecos de atuação política na radiodifusão
Experiência pouco conhecida no rádio demonstra influência do executivo do Jornal dos Sports para o esporte no Brasil. Confira no novo artigo da série Entrementes: futebol, política e cultura popular
A fisionomia de Mario Filho contém multiplicidades e incoerências do Rio de Janeiro: a silhueta, inconfundível aos torcedores de seu tempo, era acompanhada pela popularidade do Jornal dos Sports; a face do entusiasta do esporte se confunde com a criação do Maracanã – estádio que atualmente carrega o nome do jornalista; o olhar do representante da reconhecida família pernambucana de imprensa esteve atento às relações da sociedade carioca com os palácios de governo. Os vínculos com a radiodifusão transcendem as divisas do município, apontam para a sua abrangência nacional.
A então capital da República foi o principal polo para a eclosão do rádio como meio de maior alcance no Brasil. O principal exemplo era a Rádio Nacional, emissora encampada pelo Estado Novo que conciliou esporte e música em suas atividades até depois do período ditatorial. Apesar de não ter sido o pioneiro na experiência televisiva, já que a TV Tupi de São Paulo exerceu esse protagonismo, o Rio de Janeiro rapidamente consolidou um conjunto de empresas no setor e conservou a sua preponderância, mesmo com as oscilações econômica e política da cidade.
É uma distorção conceber Mario Filho apenas como um jornalista. O tino comercial, a manutenção de redes compostas por empresários ou autoridades públicas e os esforços voltados para empreendimentos não permitiriam que sua trajetória fosse restrita à prosa jornalística. Os textos que vieram à tona com os veículos de comunicação até meados do século XX são fundamentais para a compreensão do futebol e seus desdobramentos no novo milênio, mas sua rotina no Jornal dos Sports, e até antes de chegar à publicação carioca especializada em esportes, desvia desses limites.
A relação com a família Marinho, que ainda mantém o maior conglomerado de mídia do Brasil, é outro elemento que aponta para esse sentido. Mario Filho trabalhou para o jornal O Globo e contou com o financiamento de Roberto Marinho para comprar o Jornal dos Sports. E é nessa paisagem que os relatos apontam de maneira mais contundente para a organização dos desfiles de escolas de samba que redefiniram o carnaval carioca. Com as decisões do executivo, o evento passaria a ser orientado para a disputa e destinaria troféus aos vencedores.
No futebol, o incentivo às participações da seleção brasileira, em especial na simbólica Copa do Mundo de 1938, e o empenho para a criação de um estádio que comportasse uma considerável parcela do então Distrito Federal significam isso. Nesse sentido, é menos obscura a oposição da Tribuna da Imprensa, liderada pelo político e jornalista Carlos Lacerda, à defesa do Maracanã no Jornal dos Sports. Mario Filho se colocou a favor da construção, que sediou o último jogo do Mundial de 1950, e participou de conselhos de Estado para a promoção do futebol.
O relacionamento com clubes, com as federações que administram torneios locais e com a principal entidade da modalidade exigiu circulação pelos gabinetes, tomadas de partido e proximidades com representantes no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. O trânsito político, com Mario Filho em destaque, articulou a retórica a respeito do futebol e diferentes interesses nas disputas de poder. Por isso, é necessário enxergar as dinâmicas dessas ações com a amplitude da radiodifusão – principalmente por transpor as barreiras da cultura letrada e se basear na oralidade.
Em um contexto de dificuldade para leitura e interpretação – e, no limite, de analfabetismo –, o rádio e a televisão alcançam parcelas maiores de brasileiros. Enquanto executivo de imprensa no Jornal dos Sports, Mario Filho conservou a atenção para os comportamentos dos cariocas e seria difícil que essa característica central da audiência fosse negligenciada. A experiência da Rádio Guanabara na década de 1960 é ilustrativa: o empresário foi contratado para redefinir a emissora e, por sua vez, anunciou outros símbolos da cobertura esportiva à época.
A programação previa a leitura diária de um texto redigido pelo próprio cronista. A possibilidade de conectar a Rádio Guanabara ao jornalismo impresso deu origem a campanhas para a participação do público, com prêmios a jogadores. Somada à intimidade com os líderes da TV Globo, a capacidade de se comunicar em diferentes linguagens difundiu principalmente o futebol, em um período de grandes vitórias esportivas. As consequências desses laços vão desde a criação da identificação nacional com o esporte até o estabelecimento de tendências políticas.
O alcance de Mario Filho foi amplificado por esse desconhecido trabalho no rádio antes de sua morte em 1966. Até por esse motivo, é imprescindível colocar em questão as diferentes maneiras pelas quais a perspectiva política do executivo de mídia ressoou com a radiodifusão. Valores e conflitos sociais, presentes na cobertura esportiva desde a década de 1930, foram transmitidas por cabos e antenas – isso permitiu assimilações, tensões e reinterpretações definitivas para os modos como os torcedores lidam com o futebol até hoje no Brasil.
Helcio Herbert Neto é doutor em História Comparada (UFRJ), mestre em Comunicação (UFF), formado em Jornalismo (UFRJ) e em Filosofia (UERJ).