O retorno do Brasil de 2020 à “moral e bons costumes” do Estado Novo
O trágico episódio da menina de 10 anos nos mostrou que o retrocesso do bolsonarismo não remonta apenas à época da ditadura militar, mas aos costumes do Estado Novo, quando o direito ao aborto no caso de estupro sequer estava assegurado em lei
Com seu discurso falso moralista religioso “Deus acima de tudo” em que o “mito” surge personificado como herói da nação, no qual tudo que se refere às esquerdas é tido como inimigo que deve ser “metralhado”, Bolsonaro nunca escondeu os diversos aspectos do fascismo de sua candidatura, que não se limita ao pouco apreço à democracia, apologia à tortura e o discurso de ódio ao “inimigo”, mas inclui a concepção retrógrada do papel da mulher na sociedade.
Em meio a tantos absurdos que remontam a um passado autoritário com saudosismo e revisionismo histórico, veio à tona o recente caso da menina de 10 anos, estuprada pelo tio no Espírito Santo, que precisou passar por um calvário para conseguir acesso a um direito previsto no Código Penal desde 1940. O trágico episódio nos mostrou que o retrocesso do bolsonarismo não remonta apenas à época da ditadura militar, mas aos costumes do Estado Novo, quando o direito ao aborto no caso de estupro sequer estava assegurado em lei.
Assim, diante da negação de um direito das mulheres que ainda não existia década de 1930, percebe-se um retorno ao que de pior existiu durante o regime do Estado Novo quando imperava “a trilogia fascista – religião, pátria e família – e a reificação do conceito de ordem em contraponto à ideia de desordem, identificada com as ideologias opostas aos cânones defendidos em nome do nacionalismo e catolicismo”[1], que no Brasil de 2020 abrange as denominações evangélicas, estando ainda inacreditavelmente presente o “medo do comunismo” como se ainda estivéssemos sob a ameaça de um “plano Cohen”.
Pretende o bolsonarismo operar um retrocesso nos costumes a um momento do regime autoritário da década de 1930, em que mulheres não tinham lugar na sociedade, mas apenas no “seio da família” e como trabalhadoras exploradas por um modelo econômico capitalista, porém atualmente agravado pela lógica neoliberal, com menosprezo a direitos trabalhistas e ao sindicalismo, em que tanto se avançou na era Vargas, além de um “nacionalismo” às avessas, em que se prega “Brasil acima de todos”, mas se aposta no entreguismo do nosso patrimônio público e na livre destruição e exploração de nossas riquezas naturais, como ficou comprovada em sua fala em Davos.
Em que pese as gritantes diferenças no âmbito econômico e trabalhista, no qual deve ser reconhecido o avanço da Era Vargas, quero me ater às semelhanças no campo dos costumes, eis que o governo atual tenta impor uma agenda moral que retroage à década de 1930, na qual o Departamento de Imprensa e Propaganda, por meio do “Jornal das Moças” propagou a ideia de “mulher ideal”, a qual o governo tinha a missão de educar, com vistas a influenciar as gerações futuras, e desta forma, tornar a sociedade mais saudável, cristã, trabalhadora, patriota e civilizada[2], termos que voltaram a ser empregados constantemente no discurso oficial governista e de seus apoiadores.
Deve ser lembrado que o direito ao voto feminino foi inicialmente reconhecido em 1932, portanto, no Estado Novo houve alguns avanços em termos de direitos das mulheres, especialmente em direitos trabalhistas. Foi a partir daí que as mulheres menos favorecidas economicamente passaram trabalhar fora, mas ainda tinham que fazer todos os afazeres domésticos, cuidar dos filhos, do marido e, ainda, fazer do seu lar “um recanto de amor e felicidade”[3], sendo instituída e romantizada a dupla jornada que passou a sobrecarregar a mulher trabalhadora numa sociedade desigual, patriarcal e capitalista.
Durante o Estado Novo, o grande propósito era mudar a face do Brasil e fazer com que o número populacional aumentasse, mas também que essa nova nação fosse higienizada, disciplinada, saudável e educada nos padrões do cristianismo. Nessa empreitada de “modernizar” o país Vargas deu às mulheres um cargo muito importante: o de mães, cuidadoras e protetoras de suas famílias. [4]
Na obra da historiadora Semiramis Nahes “A imagem da mulher no Estado Novo (1937/1945)” esta afirma que nesse período as matérias divulgadas na mídia brasileira funcionavam como uma campanha massiva de reforço da moral e dos bons costumes. Por isso, em relação às mulheres, exacerbava-se seu papel de boa mãe, esposa, dona de casa, de uma mulher assexuada, quase um anjo. Nesse contexto, elas foram orientadas a não apenas cuidar da família, mas também educar, oferecer proteção, atenção, perdoar, doar-se completamente, chegando a se anular enquanto sujeito.
Em um trecho de um exemplar do “Jornal das Moças”, importante instrumento ideologizante da Era Vargas, publicado em 06 de janeiro de 1938, assim define a mulher: “Desde que chegas ao mundo trazes contigo a doce tarefa de fazer feliz os que te rodeiam. Primeiro com teus risos infantis, mais tarde com tua suavidade juvenil e depois com a tua ternura de esposa e de mãe”.
Todo esse discurso nos soa bem familiar ao governo atual em pleno 2020 com as falas da ministra Damares Alves, no qual se busca o retorno aos valores “dos bons e velhos tempos”, afirmando que “A mulher nasceu para ser mãe. Também, mas ser mãe é o papel mais especial da mulher. A gente precisa entender que a relação dela com o filho é uma relação muito especial. E a mulher tem que estar presente.”
Dessa forma, esse retorno moralista conservador à maternidade compulsória como destino biológico da mulher, reaparece como reação aos avanços dos movimentos feministas da última década, tanto que desde o golpe misógino de 2016, ainda no governo Temer, já ressurge essa idealização sacrossanta e cuidadora da mulher com a tônica da “bela, recatada e do lar”.
2020
É nesse contexto de retrocesso que, em 2020, um Hospital Público Universitário no Espírito Santo, referência em atendimento em saúde da mulher vítima de violência, se recusa a realizar o interrupção da gravidez em um menina de 10 anos violentada, não sendo encontrado nenhuma outra unidade hospitalar habilitada para tanto, fazendo com ela precise viajar 600 km para fazer o procedimento em outra região do país, além de dezenas de militantes governistas serem convocados por uma extremista neoconservadora para se manifestarem e tentarem impedir esse direito, restando evidenciado o retorno a esse ideal de mulher limitado à procriação e à família do Estado Novo – ainda que estejamos falando de uma menina de apenas 10 anos de idade.
Além disso, grupos religiosos se dirigiram até a casa da família menina para pressionar a avó a não autorizar o aborto, conforme noticiado pela mídia, inclusive foram divulgados vídeos e áudios em que se diziam estar “colocando uma equipe à disposição”, pois seria mais seguro aguardar e posteriormente realizar cirurgia cesariana na menina. Num dos áudios, pressionam a avó: “foi Deus quem colocou a alma ali” e continuam: “Vão tentar uma liminar para fazer o aborto nela. Então, a gente está querendo evitar que isso aconteça, queremos salvar o bisneto da senhora”. Também dizem ter acesso à ministra de Direitos Humanos: “Inclusive eu conversei ontem com a assessora da ministra Damares, só para você saber o nível de informação que eu tenho. Olha onde chegou, à ministra Damares! Então a gente quer que a senhora use a voz que a senhora tem para defender esse bisneto da senhora”, insistiu. O caso está sob investigação da Promotoria de Justiça de São Mateus-ES.
Os médicos do Espírito Santo (Hucam) alegaram que não realizaram o procedimento em razão do protocolo do Ministério da Saúde que orienta o abortamento até 22ª semana de gestação, que o feto esteja pesando até 500 gramas, conforme Norma Técnica de 2005, eis que a gestação da menina contava com 22 semanas e 4 dias e o feto pesava 537 gramas, chamando atenção a situação limítrofe, para além da imprecisão técnica do cálculo da idade gestacional e o peso ser estimado por exames de ultrassom.
Deve ser ressaltado que normas técnicas do Ministério da Saúde não estão acima da lei e não podem limitá-la, já que a nossa norma penal não traz qualquer limite de idade gestacional ou de peso.
Não bastasse todo esse horror que a menina sofreu e de existir no Brasil uma enorme dificuldade prática de que conseguir pelo SUS o aborto legalmente previsto, o Ministério da Saúde em meio a pandemia, como mais uma reação a demandas por esse direito, editou a Portaria nº 2.282/20, para dificultar ainda mais o acesso ao aborto legal em caso de estupro, passando a exigir a Notificação Compulsória policial, o que diante da dificuldade comprobatória em nosso sistema policial e judicial machista, certamente afastará mais ainda as vítimas dos serviços de saúde, que deveriam ser espaços de orientação e fortalecimento da mulher em situação de violência.
A nova portaria prevê ainda um termo de consentimento do aborto, que deve ser assinado pela gestante, detalhe os riscos do procedimento, com as complicações que podem surgir, burocratizando o procedimento, além de determinar que a equipe médica informe a vítima de violência sexual sobre a possibilidade de visualização do feto por meio de ultrassonografia. Caso a gestante deseje, ela deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada, inserindo mais dificuldade e constrangimento às meninas e mulheres vítimas de violência sexual.
É possível imaginar integrantes de equipes, com seus preconceitos arraigados, indagando à uma vítima de estupro, que além de toda violência e sofrimento que passou para tomar uma decisão dolorida como a do aborto ainda ter que ouvir: “Mãezinha, tem certeza que não quer ver nem ouvir o coração do seu bebezinho batendo?”
Mulheres e meninas que enfrentam situações de violência deveriam ser acolhidas – e não criminalizadas ou constrangidas por normas abusivas como esta.
Depois de todo esse cenário dantesco de retrocesso quanto ao significado social da mulher e seus direitos sexuais e reprodutivos que se desenhou no país diante desse caso, com a alegação de uma justificativa técnica para não realização do procedimento pelo Hospital no ES, além de ofensas e palavras de ordem dos manifestantes que xingaram o médico e a própria vítima de “assassina” – inclusive nas redes sociais, se constata esse retorno ao papel da mulher exclusivamente voltado para a procriação, por influência do discurso do governo de pauta ultraconservadora religiosa.
Tanto é assim que em recente matéria do jornal Folha de S. Paulo foi divulgado um plano do Ministério da Família e Direitos Humanos para enviar a menina para Jacareí (SP), onde aguardaria a evolução da gestação, para realizar uma antecipação de parto, apesar do risco para menina, chegando a enviar médicas do Hospital São Francisco de Assis de Jacareí para São Mateus, fato que foi oficialmente negado pelo hospital, apesar de reconhecerem que se colocaram à disposição do juiz, caso decidissem por levar a gestação adiante.
Na verdade, essa estratégia pretendida pelo governo foi assumida expressamente pela Ministra Damares Alves quando afirmou em recente entrevista que “Os médicos do Espírito Santo não queriam fazer o aborto, eles estavam dispostos a fazer uma antecipação de parto. Mais duas semanas, não era ir até o 9 mês, a criança não ia ficar nove meses grávida, conversa com os médicos. Mais duas semanas poderia ter sido feita uma cirurgia cesárea nessa menina, tirar a criança, colocar numa encubadora, se sobreviver, sobreviveu. Se não, teve uma morte digna.”
Pela fala ministra se conclui que para o governo e seus apoiadores “neoconservadores”, há uma adesão ao retorno ao “ideal de mulher” da década de 30, no qual esta era compreendida não como um ser humano, com toda sua subjetividade e dignidade, mas como um mero meio para procriação. Pelo visto, para estes o que importa é ser “pró-vida” e o corpo de uma menina de apenas 10 anos violada continuamente pelo seu tio poderia ser uma boa “incubadora viva”.
Érika Puppim é promotora de Justiça MPRJ, pós-graduada em Direitos Humanos/PUC-Rio e integrante Coletivo Transforma MP
[1] Revista Brasileira de História Rev. bras. Hist. vol. 18 n. 36 São Paulo 1998 https://doi.org/10.1590/S0102-01881998000200008 Estado Novo: Projeto Político Pedagógico e a Construção do Saber Maria das Graças Andrade Ataíde de Almeida Universidade Federal Rural de Pernambuco
[2] AIENE RIZZA MELO O ESTADO NOVO: HISTÓRIA DAS MULHERES NA REPRESENTAÇÃO NO JORNAL DAS MOÇAS DE 1937 A 1945 Relatório científico apresentado ao Programa de Pós-Graduação em História – Mestrado Profissional, da Universidade Federal de Goiás – Regional de Catalão, sob a orientação da Profa. Dra. Jeanne Silva, como requisito obrigatório para obtenção de título de mestre em História Social.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.