Masp inaugura exposições que desafiam potencial político do museu
Parte da programação anual dedicada às Histórias da diversidade LGBTQIA+, exposições de Catherine Opie, Lia D Castro e Ventura Profana questionam noções de representatividade no museu através de obras que refletem pensamento intelectual contemporâneo sobre questões como racismo e gênero
“Eu não quero e não vou me sujeitar a ser incluída num ambiente hostil e racista.” A fala de Lia D Castro ressoa no subsolo do Masp, o Museu de Arte de São Paulo, onde a artista e intelectual acaba de abrir sua primeira mostra individual. Ocupam o mesmo espaço a exposição “Catherine Opie: o gênero do retrato” e a mostra audiovisual de Ventura Profana.
Em mídias diferentes –pintura, fotografia e vídeo, respectivamente– e versando sobre assuntos variados, o que une as três mostras é a temática proposta pelo museu para o ano de 2024: Histórias da diversidade LGBTQIA+. O objetivo da programação, que dá sequência às exposições dedicadas “às Histórias no MASP” de modo temático desde 2016, é propor “novas narrativas visuais, mais inclusivas” e “debater temas como a representatividade queer”.
A presença de artistas como Lia, Ventura e Catherine, no entanto, assombra o museu ao reivindicar esse espaço sem condescender-se com uma proposta que não deixa de ser, aos olhos de Lia, herança de uma instituição que é colonial em sua gênese: “há duas palavras muito usadas pela branquitude, ‘inclusão’ e ‘representatividade’, que são muito violentas. A representatividade e a inclusividade do museu não são mais o suficiente.”
Em todo e nenhum lugar
Em cores pastéis, Lia D Castro pinta os encontros que definem sua prática artística e intelectual: equiparando pintura e trabalho sexual, ela utiliza a prostituição como ferramenta de pesquisa e desenvolve sua obra a partir de encontros com seus clientes –homens cisgêneros, em sua maioria brancos, heterossexuais, de classe média e alta– para subverter relações de poder que possam surgir entre eles.
Além da troca sexual, Lia exercita uma troca intelectual com os homens com quem se relaciona: “a partir do segundo encontro, eu digo que, se eles quiserem voltar, não necessariamente precisam pagar em dinheiro, mas podem pagar em informação.” As informações que Lia busca são, na verdade, provocações que partem de perguntas como “quando você se percebeu branco? E quando se descobriu cisgênero, heterossexual?” para entender o pensamento desses homens –frequentemente marcado por racismo, misoginia e transfobia– e subvertê-lo.
Sua obra é marcada pelo afeto, não como o termo vazio que é amplamente replicado pelos discursos contemporâneos, mas em seu sentido literal, ela explica: “afeto, para mim, é responsabilidade. É não compactuar com nenhum tipo de discriminação. É uma pintura que alguém vai olhar e se sentir afetada, no sentido de se aproximar pela ternura.” Ela afeta seus clientes ao fazê-los repensarem a forma como eles enxergam a diversidade: com o dinheiro dos encontros anteriores, Lia os compra e lê livros de teóricos que vão de Toni Morrison a Frantz Fanon, cujas frases ocupam os vazios de algumas das cerca de 40 obras expostas no Masp.
Subvertendo a arte e os signos coloniais
Algo presente nas três exposições que ocuparão o subsolo do Masp ao decorrer dos próximos meses é o seu caráter subversivo. É na exposição da fotógrafa norte-americana Catherine Opie que a subversão se materializa visualmente: sobre os cavaletes de cristal projetados por Lina Bo Bardi, intercalam-se 21 pinturas da coleção do Masp e cerca de 60 fotografias da artista, que parte do retrato para representar a comunidade queer.
Marcado pelas representações da alta classe, o retrato foi o gênero escolhido pela artista por sua capacidade de humanizar os seus sujeitos: “pensando a partir da história da pintura, o retrato sempre teve o potencial de fazer as pessoas pararem e observarem. Elas podem não saber ou se importar por quem está na imagem, mas elas são atraídas por ela. Eu estou interessada em retratar e tratar meus sujeitos de maneira humilde e humana.”
Uma mulher lésbica de 63 anos, Opie parte de sua identidade e de seus desejos para realizar também autoretratos, que se destacam entre as fotografias da exposição. Em uma de suas obras mais celebradas, Self-Portrait/Cutting, de 1993, a artista parte de seu desejo de experienciar a maternidade para refletir sobre os modelos familiares impostos desde a infância e “abraçar a complexidade de sua identidade”.
Também partindo das imagens que marcaram o mundo e a arte ocidental, a exibição dos curtas da pastora missionária, cantora evangelista, escritora, compositora e artista visual Ventura Profana finalizam a visita ao subsolo do Masp. Enxergando o seu cinema como “uma grande colagem de sonhos”, Ventura tem o compromisso de ressignificar os símbolos e valores da doutrina cristã. Com ênfase na importância da espiritualidade para a saúde mental de populações marginalizadas, seu trabalho versa sobre o potencial de inclusão e acolhimento presente nos escritos e nas experiências sagradas de doutrinas religiosas como a evangélica.
Sua obra é marcada pela positividade e pelas perspectivas de plenitude e abundância frente à visão opressora que reproduz a exploração de corpos negros e travestis: “trabalhamos para que a vida possa ser multiplicada. Para que uma dinâmica de necropolítica possa ser enfrentada e combatida. Para que um mundo que tem a violência como força modeladora possa ser transformado. O meu chamado, através do meu trabalho, tem a ver com isso: o desejo de ser livre, incapturável, e de viver em abundância.”
Passando por cima das tentativas de categorização e indo além de um desejo institucional de “incluir” e “representar”, as obras de Lia D Castro, Catherine Opie e Ventura Profana celebram a vida e as possibilidades artísticas que a diversidade propõe.
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.