Mediterrâneo, uma fronteira a ser apagada
A política mediterrânea da União Europeia apoiava-se numa visão um pouco ingênua impregnada pelas doutrinas neoliberais anglo-saxãs, o que facilitou privatizações controladas pelas elites políticas e aprofundou o fosso entre ricos e pobres. E contribui para a explosão atual
"União Mediterrânea”, “União para o Mediterrâneo” e, finalmente, “Processo de Barcelona: União para o Mediterrâneo”… As sucessivas denominações do projeto lançado pelo presidente Nicolas Sarkozy refletem tanto sua imprecisão como as oposições encontradas entre muitos parceiros europeus da França.
Além das dificuldades políticas, o que se esqueceu, mais uma vez, foi a economia real dos Estados ao sul do Mediterrâneo, apesar de um bom diagnóstico de seus bloqueios. Um estudo recente da Agência Francesa de Desenvolvimento traz uma análise realista e corajosa a respeito do assunto: “Na sequência dos ajustes macroeconômicos realizados com o apoio das instituições financeiras internacionais, seus regimes de crescimento não se corrigiram em razão de bloqueios internos profundamente enraizados. As diversas rendas estratégicas das quais esses países se ‘beneficiaram’ contribuíram largamente para endurecer tais bloqueios. De maneira mais ampla e por um longo período, eles não conseguiram iniciar a convergência de suas rendas per capitacom as dos países da costa norte do Mediterrâneo. Ali, o ritmo da atividade continua fortemente dependente de recursos externos, o crescimento não advém de um processo autossustentado”.1
O Mediterrâneo é um espaço de imaginários exuberantes desde a mais alta Antiguidade. E uma questão econômica e estratégica fundamental não apenas para os Estados que o margeiam, mas também para seus vizinhos e qualquer potência de vocação imperial. Do início do século XIX até a metade do século XX, a França e o Reino Unido dominaram completamente a costa sul. A partir da década de 1950, a descolonização atraiu outros atores, especialmente União Soviética e Estados Unidos. O Mediterrâneo tornou-se, então, um grande espaço de confronto para os dois protagonistas da Guerra Fria. O conflito árabe-israelense e a guerra entre Irã e Iraque também tiveram repercussões importantes. As antigas potências coloniais, e mais amplamente a Europa, viram-se politicamente marginalizadas, embora o intercâmbio econômico, cultural e humano conservasse enorme importância.
A Europa Ocidental mobilizou-se essencialmente para introduzir o Mercado Comum e estendê-lo aos países mediterrâneos europeus (Grécia, Espanha, Portugal e, depois, Chipre e Malta), aos países do norte da Europa (Finlândia, Suécia), à Áustria e aos países da Europa Central libertados da tutela soviética (Polônia, Hungria, República Tcheca, Eslováquia, Eslovênia, Países Bálticos e, mais recentemente, Bulgária e Romênia). A Comunidade Econômica Europeia (CEE) transformou-se em mercado único, depois em União Europeia (UE), com moeda única. Nos últimos trinta anos, os países-membros da UE, em particular França, Itália, Espanha e Reino Unido, abandonaram sua tradicional influência política no Mediterrâneo.
Decepção com a Europa
Impulsionada pelo general De Gaulle, contrário à ocupação israelense dos territórios árabes, a política árabe da França foi sendo progressivamente erodida e marginalizada. O circuito de diálogo euro-árabe, criado após o aumento do preço do petróleo em 1973-1974, quase não teve resultados concretos, com exceção de algumas reuniões de especialistas, principalmente sobre a questão da transferência de tecnologia. Esse andamento decepcionou as expectativas dos governos do sul ao Mediterrâneo em ver a Europa atuar mais fortemente na resolução do conflito árabe-israelense.2
No início da década de 1980, o olhar europeu voltou-se para o conflito militar entre o Iraque, supostamente modernista e laico, e o Irã da revolução islâmica “subversiva”. O final da guerra trouxe uma pausa de curta duração. A invasão do Kuwait pelo exército iraquiano, em agosto de 1990, e o fim do regime soviético, em dezembro de 1991, permitiram aos Estados Unidos instalar-se definitivamente como gerente exclusivo das situações de conflito do Mediterrâneo e seu entorno no Oriente Médio. A UE e seus países-membros mediterrâneos aceitaram – ou resignaram-se a – um papel secundário de apoio à política norte-americana. Longe de tentar corrigir o equilíbrio desigual entre árabes e israelenses, eles limitam-se à cooperação econômica, controle da migração, liberalização do comércio entre costa sul e norte do Mediterrâneo, e diálogo intercultural.
Esse é o tema do Processo de Barcelona, impulsionado em 19953 durante o processo de paz árabe-israelense de Madri (1991), lançado sob a égide dos Estados Unidos após a expedição militar ocidental (e, de maneira secundária, árabe) para libertar o Kuwait. Desde Madri afirma-se a ambição de regular não apenas o conflito nos territórios ocupados por Israel, mas de estabelecer uma vasta zona de livre comércio mediterrânea, da Turquia ao Marrocos, incluindo Israel. Assim, Washington organizou sucessivas cúpulas econômicas de empresários e dirigentes políticos do mundo inteiro: em Casablanca, em 1994; Amã, Cairo e Qatar. O projeto de um banco mediterrâneo, já evocado, não teve continuidade. E os acordos israelo-palestinos de Oslo levariam mais miséria e sofrimento à população palestina.
Enquanto o Processo de Madrid foi um completo fracasso, o de Barcelona teve consequências mais duráveis,4 com destaque para o claro aumento dos compromissos de ajuda da Comissão Europeia e do Banco Europeu de Investimento (BEI) para os países terceiros do Mediterrâneo.5 Parte significativa desses fluxos serve para dar continuidade e aprofundar a política de ajuste estrutural e modernização institucional – econômica, comercial e financeira – lançada no início da década de 1980, sob a liderança do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI).
O objetivo é claro: fazer convergir progressivamente as duas costas do Mediterrâneo em torno de instituições homogêneas que estabeleçam economia de mercado, livre comércio (exceto para os produtos agrícolas provenientes da costa sul) e livre circulação de capitais (mas não de seres humanos), gestão rigorosa das finanças públicas, independência do banco central e ortodoxia na gestão monetária. Na óptica algo ingênua dos dirigentes europeus, impregnados das doutrinas neoliberais anglo-norte-americanas, essa convergência institucional deverá incluir a do nível de vida, tão contrastante de uma costa a outra. Os acordos de associação trazem também um componente político relativo aos direitos da pessoa e ao Estado de Direito, algumas disposições que dão certo poder à UE nessas áreas.6 Com exceção da Turquia, onde as pressões de Bruxelas aceleraram as reformas democráticas, esse componente quase não deu frutos. Os governos continuam autoritários ou semiautoritários, pretextando receio de excessos islâmicos para conter as liberdades. Quanto ao conflito israelo-palestino, a UE nunca invocou o artigo 2º do acordo com Israel para exigir que o país respeite as resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU).
Substituição do Processo de Barcelona
O Processo de Barcelona prevê, rapidamente, resultados econômicos substanciais, em conformidade com os cânones da ortodoxia financeira. As privatizações generalizam-se nas áreas mais lucrativas, principalmente nas telecomunicações; as tarifas aduaneiras caem, e a taxa sobre o valor agregado (TVA) é aplicada com sucesso em quase toda parte; as bolsas locais ganham alguma vida; os setores bancários, florescentes, abrem-se aos investimentos estrangeiros; as finanças públicas parecem mais bem geridas, com a gestão monetária dos bancos centrais adequando-se às regras internacionais sobre o assunto.
Por que, então, a UE decidiu, em 2005, criar um novo instrumento para substituir o Processo de Barcelona – a “política de vizinhança”, que reúne os países terceiros do Mediterrâneo e outros (Moldávia, Geórgia, Armênia, Azerbaijão, Bielorússia e Ucrânia)? Agora, os fundos de ajuda inscrevem-se nesse novo esquema, e cada país deve definir prioridades centradas nas áreas de interesse da UE. Esse é particularmente o caso da cooperação para a segurança, com o reforço da capacidade de controle das fronteiras – a fim de sufocar os fluxos migratórios clandestinos provenientes da costa sul e seu entorno africano, e melhor combater o crime organizado e o terrorismo.
Mas a “política de vizinhança” revela o fracasso do Processo de Barcelona na área política: ele não atingiu o objetivo de apaziguamento dos conflitos nem o de normalização entre Israel e seus vizinhos, chave da integração do Estado judeu a seu entorno mediterrâneo. Na realidade, a Europa também abandonou aos Estados Unidos a gestão exclusiva – e bastante parcial – do conflito árabe-israelense.
O novo projeto francês vem menos de quatro anos após o lançamento dessa política. Porém, antes mesmo de nascer, ele já suscitou tensões e querelas abafadas, especialmente sobre dois temas: a estrutura institucional e a repartição de poderes entre europeus e árabes mediterrâneos. Que mecanismo coordenará a nova estrutura com a Comissão Europeia e a direção que se ocupa dos programas para os países mediterrâneos? Como serão repartidos os poderes de decisão, dentro da nova estrutura, entre representantes dos governos árabes mediterrâneos e governos europeus? Sem contar a rivalidade entre dirigentes árabes disputando posições burocráticas de peso…
Essas disputas interárabes e intereuropeias, como as querelas de aparelhos burocráticos dentro da UE, levantam dúvidas sobre a eficácia da nova iniciativa. Ela não atacará de fato os problemas da economia real dos países do sul do Mediterrâneo, e certamente não vai elaborar um programa sério e corretamente financiado de convergência do nível de vida. A experiência dos últimos quinze anos de cooperação euro-mediterrânea é clara em indicar que a modernização de fachada não gera necessariamente dinamização das economias do Sul, e não suprime os imensos bolsões de pobreza, desemprego e, em alguns países, analfabetismo.
Inversamente, a experiência dos “tigres asiáticos” e seu sucesso econômico como política mostram: a ajuda ao desenvolvimento não é a chave principal para o crescimento. Ele depende, em primeiro lugar, das dinâmicas internas e da vontade coletiva de quebrar o ciclo do subdesenvolvimento. Desse ponto de vista, o Processo de Barcelona: União para o Mediterrâneo não mudou grande coisa. Os fundamentos rentistas das economias mediterrâneas não criam as condições para um salto na economia produtiva.7