Mein Führer, ousadia e frustração
Lento e forçadamente debochado, o filme mais recente de Dani Levy pretende debater a relação entre Hitler e o poder. Mas, ao criar a imagem de um ditador pobre-coitado, converte-se em obra estéril, que não dialoga nem com a História, nem com a atualidade.Bruno Carmelo
Elaborar uma comédia sobre um dos ditadores mais odiados da história é um projeto, no mínimo, arriscado. Não que Hitler nunca tenha feito rir anteriormente: Mel Brooks já havia realizado, em 1968, The Producers, no qual uma peça de teatro exaltando a glória nazista obtinha sucesso inesperado.
Mas nesse filme, Hitler nunca era um personagem de verdade, apenas uma figura da peça dentro do filme; e feito com intuito claro de que a montagem fosse um fracasso (para que, após a falência, o dinheiro do seguro fosse para os produtores). Neste caso, a grande surpresa era justamente o fato do público gostar do ditador.
Mein Führer toma uma posição muito mais ousada. Hitler é protagonista, numa espécie de biografia na época final da Segunda Guerra. Se Mel Brooks defendia-se com a estrutura de “ficção dentro da ficção”, o diretor Dani Levy apóia-se nos próprios fatos históricos.
Um festival de micro-elementos de humor físico e exaltações do patético
O grande conflito do filme consiste em colocar o ditador face a um judeu — no caso, um professor de teatro, obrigado a ajudar Hitler com importante discurso que visa encorajar a Alemanha nazista a resistir à derrota na guerra. Vemos esse professor se contorcendo de raiva, ao ajudar Hitler a melhor pronunciar frases como “vamos nos livrar desses judeus imundos”.
Um dos fatores mais controversos do filme é a caracterização de Hitler como um homem triste, deprimido. Ele é manipulado pelo malvado ministro Goebbels, mas sua grande intenção é unicamente a de ajudar o povo. “Eu nem odeio tanto os judeus”, ele diz, para em seguida lembrar que teria um bisavô judeu.
Um Hitler bonzinho? Mesmo o professor passa a ter piedade pelo pobre sujeito, e por conseqüência o espectador também é incitado a ver no ditador alguém que é manipulado pela própria propaganda e poder. Enfim, uma irônica vítima do nazismo. Entretanto, estamos longe do processo de “humanização” proposto por outros filmes nos quais o ditador era mostrado do modo mais objetivo possível. Aqui, ele chega a ser defendido como homem ignorante e fraco, e por isso mesmo sem responsabilidade por seus atos. Mais questionável ainda do que defender as idéias nazistas é retirar a culpa do “führer” e assim apagar uma importante página da História.
Numa obra em que Hitler é um pobre-coitado, e na qual genocídio e campos de concentração são secundários, parece irônico alimentar-se de pretensões documentais ou analíticas
O papel da comédia na narrativa é mínimo e, por esse motivo, a cada vez que um elemento cômico aparece, ele faz de tudo para chamar atenção para si mesmo. O resultado é um festival de micro-elementos de humor físico e exaltações do patético: vemos Hitler de pijama, seu cachorro que o utiliza como poste, sem falar nas inúmeras crises de choro (um rápido psicanalismo do estilo “meu pai me batia quando eu era pequeno” visa a justificar as atitudes do ditador) e nos ataques à masculinidade, em decorrência dos problemas de ereção de Hitler.
Exceto essas inserções ocasionais de simples deboche, Mein Führer tem um ritmo surpreendentemente lento para uma comédia. Situado entre as inevitáveis cenas de drama correspondentes à amizade entre Hitler e o professor judeu e a comédia que nunca se desenvolve nas ações (e sim nos elementos cômicos propositadamente inseridos dentro delas), o filme não comove nem faz rir. Para uma proposta inusitada que funciona como maior publicidade ao filme, o diretor quis se precaver e fez uma obra pequena, modesta, ainda que um pouco mais pretensiosa no final.
Nos últimos momentos, uma voz off de um personagem (ou do diretor?) vem nos lembrar didaticamente que “fazemos filmes para tentar entender o que ainda não compreendemos”. Numa obra sobre a Segunda Guerra Mundial em que Hitler é um pobre-coitado, e na qual as idéias de limpeza étnica, genocídio e campos de concentração são secundárias, parece irônico alimentar-se de pretensões documentais ou analíticas.
Na época do lançamento de Mein Führer na Alemanha, o diretor se defendeu das críticas pelo fato de ser judeu. Talvez por isso mesmo seja ainda mais decepcionante ver essa obra em que se fala da história sem refletir sobre ela, em que se utiliza de uma figura histórica sem qualquer questionamento ético e moral.
Não se pode abordar um tema tão importante sem ter responsabilidades pelo retrato, e é capaz que o resultado do filme fosse mais interessante se o diretor realmente fizesse uma obra extrema, defendendo visceralmente um ponto de vista. Neste caso, quando isenta de responsabilidades tanto Hitler quanto a si próprio, ele cria uma obra estéril, que não dialoga nem com a História, nem com a atualidade.
Mein Führer (Mein Führer – Die wirklich wahrste Wahrheit über Adolf Hitler)
Filme alemão de Dani Levy.
Com Helge Schneider, Ulrich Mühe, Sylvester Groth.
Ano de produção: 2006.
Duração: 1h35.
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Mais:
Bruno Carmelo assina a coluna Outros Cinemas. Também mantém o blog Nuvem Preta, onde resenha e comenta outros filmes. Edições anteriores da coluna:
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