Meios, fins e anticapitalismo: 99 teses de Brian Massumi
Resenha do livro 99 teses para uma revaloração do valor, livro de Brian Massumi (Editora GLAC, 2020)
A aproximação entre os meio e fins da revolução anticapitalista é uma constante questão nas discussões e práticas anarquistas ao longo de sua(s) história(s). Este aspecto se faz presente, por exemplo, na discussão entre Emma Goldman e Lenin, na qual a anarquista enuncia que meios libertários levariam a fins libertários, questionando o autoritarismo bolchevique como possibilidade de transição a uma sociedade não capitalista. Emma defendia que os valores do amanhã deveriam ser produzidos no presente, de modo que fins e meios coincidissem o máximo possível entre si.
Muitos anos depois de suas reflexões, a máxima “é hora de tomar de volta o valor” retorna como a primeira dentre as 99 teses para uma revaloração do valor, livro de Brian Massumi, publicado no Brasil pela editora GLAC. O livro traz 99 teses escritas sequencialmente, desdobrando-se umas nas outras, mas também se interpenetrando, se desmanchando, e mantendo aberturas. Um livro que não se encerra em si mesmo. Seu ponto final, arbitrário como todos os pontos, é movimento.
Massumi cruza os sentidos da produção de valor enquanto realidade monetária, seja em sua fisicalidade, seja na especulação futurista do mercado financeiro, e do valor no sentido do juízo. A base deste cruzamento se assenta na ideia de equiparação e comensurabilidade. A ideia de uma troca equitativa provém da equiparação entre o valor de uso e um preço atribuído na forma mercadoria. Trata-se de uma relação abstrata que se transporta para a orientação de uma escolha racional no mundo contemporâneo: “o custo-benefício”, a escolha entre bem e mal e, em sua releitura democrática, entre o normal e o patológico. Faz-se presente também na decisão de reduzir os danos da alimentação, dos usos de drogas, de uma saída em meio à pandemia da Covid. O voto, os estilos de vida ou lifestyles, a promo do Instagram, as decisões do trabalhador convertido em empreendedor de si mesmo… Uma escolha racional centrada no cálculo.
A despeito da assinatura que designa autoria, um nome é sempre coletivo. Massumi faz parte do Senselab, um “laboratório para o pensamento em movimento”, que realiza cruzamentos entre arte, filosofia e política. A partir do Senselab, grupo de pesquisa vinculado à Universidade de Concórdia, criou-se o Instituto 3 ecologias, um experimento extra-universitário. Ali, associados à Economic Space Agency, coletivo que tentava sequestrar as lógicas de criptomoedas na produção de uma altereconomia pós-capitalista, estes coletivos se lançaram na missão de retomar o valor para pensar novas possibilidades de vida. O livro de Massumi surge deste caldeirão de experimentação, ultrapassando velhas dicotomias entre teoria e prática, produzindo um pensamento em movimento capaz de articular meios e fins para lançar flechas que atinjam a si próprio e se espraiem para outros alvos. “Nunca é cedo demais para plantar sementes de vida não fascista e pós- capitalista nos poros do presente”, diz Massumi ao fim do prefácio à edição brasileira, em referência ao Anti-Édipo de Deleuze e Guattari.
Em Anti-Édipo o capitalismo aparece como uma força de descodificação dos fluxos, enquanto o Estado surge como aquele que recodifica a forma do “um” em uma nostalgia dos antigos impérios. Juntando uma força que tudo expande (o capital) com outra que tudo recorta (o Estado), cria-se uma série de Estados dentro do Estado, reivindicando a mesma nostalgia dos antigos impérios: algumas igrejas, assistências sociais, vertentes psiquiátricas etc. Em Massumi, não existe uma única forma de poder, mas uma ecologia de poderes. O capitalismo é ecumênico, isto é, capaz de articular formações de poder com procedências distintas, mantendo formações passadas de poder incorporadas como arcaísmos com função moderna. O Estado acrescenta uma dimensão temporal nostálgica, zumbi, post-mortem. Junta-se o “sempre foi assim” de um passado sem diferença com o roubo de um futuro que só pode se alterar dentro de um mesmo mundo. A mudança só existe de forma aparente no prolongamento temporal do capitalismo.
O livro de Massumi aponta precisamente para a constante captura do futuro pelo capital. Captura-se o futuro pois captura-se a mudança. Exige-se que tudo seja feito do mesmo modo. O capitalismo se alimenta de seu fora. Pensemos como muitas das lutas revolucionárias foram enquadradas em algum produto comercializável, sobre como a própria palavra revolução pode passar a ser usada para a venda de um hamburguer de sabor novo, ou, ainda, como revoltas podem ser reenquadradas em quadros políticos de Estado. Não existe fora absoluto do capitalismo, tampouco um dentro absoluto.
As forças se locomovem nessa ambivalência entre o dentro e o fora. Mas é preciso inventar, agora, no presente. Para isto, Massumi se vale do conceito de duplicidade criativa. Principalmente agora, sob a racionalidade neoliberal, a cumplicidade se torna uma condição ontológica do capitalismo. Não existe uma posição de pureza para resistir à formação de poder do processo capitalista. Em algum ponto, estas forças atravessam nossos corpos, cada qual ao seu modo e espacialidade. Assim, a duplicidade criativa definida por Massumi provém do fato de que “a cumplicidade deve ser praticada estrategicamente, de modo a sempre aumentar o coeficiente de fuga sobre a captura” (p.108).
Nesse sentido, um dos pontos interessantes do livro resulta de uma especulação filosófica sobre a possibilidade de pensarmos novos algoritmos que sejam mais afeitos às diferenças intensivas. O livro ousa sob o conceito de mais-valor, designando a extração capitalista como medida da exploração de trabalho (tal como descrito por Marx), mas também sinaliza para como essa medição é uma captura de um mais-valor de vida que está solto no mundo, selvagem. Nesse sentido, especula quais possibilidades algorítmicas estariam mais afeitas a estas diferenças próprias de um fluxo vital, não mensurável.
Independentemente de como o filósofo pensa esses algoritmos e suas possibilidades outras, Massumi nos chama atenção novamente para os meios. Seu foco é demonstrar como as criptomoedas existentes reproduzem algoritmicamente a mesma captura de futuro da especulação do mercado financeiro. Não há nada de resistente nessas próteses modernas do capitalismo neoliberal. Trata-se, então, de investigar quais as possibilidades de se trabalhar nestas cumplicidades.
99 teses sobre a revaloração do valor é um livro urgente. Neste momento, somos convocados a “produzir conteúdo”, profissionalmente ou não, para/em plataformas de redes sociais de grandes empresas. Produzimos o conteúdo desde que se mantenha a forma. Nesse sentido, as redes integram as ecologias de poderes narradas por Massumi. Cada formação de poder que se aglutina no ecumenismo capitalista é também uma forma de captura, isto é, um aparelho que se alimenta, compara e integra a exterioridade. Todos estão aptos a comentar, a redigir, desde que dentro do mesmo registro, da mesma relação estabelecida entre afeto e engajamento. Qualquer conteúdo está sempre apto a ser bloqueado, banido, vigiado, esquadrinhado por meio de ações da empresa que os mantém online. Estamos submetidos a linhas algorítmicas produzidas por empresas, capturando e modulando afetos específicos, e tendo nossas informações (das mais distintas) roubadas e armazenadas em seus bancos de dados. Neste tempo e neste contexto, o livro de Massumi parece frequentemente nos dizer: “é preciso tomar certa distância”. Sua convocatória à retomada do valor é, também, uma para que ousemos radicalizar os meios. Uma filosofia política do processo.
Wander Wilson é doutor em Ciências Sociais (Antropologia) pela PUC-SP. Trabalha como acolhedor e redutor de danos no Proad – Unifesp.