Memória, justiça e esperança
Em janeiro de 2020, aconteceu a primeira Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho. Coordenada pela Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário, da Arquidiocese de Belo Horizonte, o evento contou com uma ampla construção coletiva. Envolvemos muitas forças eclesiais e sociais, depois de um árduo ano de acompanhamento das famílias e comunidades atingidas pela mineração. Estiveram presentes, em Brumadinho (MG), aproximadamente 5 mil pessoas. Foram celebrações, caminhadas, momentos culturais, que ecoaram, através das vozes e dos meios de comunicação, a força viva dos que lutam por um mundo melhor.
Depois dessa experiência, veio a pandemia de Covid 19. Com o acúmulo das vivências, estávamos mais fortalecidos para ajudar, ainda mais, nossas comunidades, fortalecendo-as na fé e na solidariedade. Nesse contexto, realizamos de forma virtual a II Romaria. Avançamos, sobretudo, na construção de nossas redes de comunicação. Com lives, artigos, testemunhos e a publicação do Pacto dos Atingidos pelo Crime da Vale, alcançamos um grande número de pessoas que acompanharam nossa caminhada. No dia 25/01/21, tivemos uma celebração eucarística com representações de nossas comunidades e grupos parceiros, na comunidade Nossa Senhora da Dores, no Córrego do Feijão, em Brumadinho. Limitados pelo distanciamento social, pelo risco do contágio do vírus, tivemos todo o cuidado sanitário para viver aquele momento celebrativo.
Chegou a terceira Romaria. Fazemos, mais uma vez, um grande e bonito percurso. Reforçamos os vínculos com nossas comunidades eclesiais do Vale do Paraopeba, Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário (Renser). Composta por aproximadamente 200 comunidades, essa grande rede eclesial, com seus padres, diáconos e fieis, assumem uma celebração “Laudato Sì”, em cada comunidade, a partir da cartilha publicada pela nossa própria equipe de assessores. No dia 25/01/22, a atividade principal acontece no Santuário Nossa Senhora do Rosário, às 9h, em Brumadinho. Com presença ainda limitada por conta da nova variante ômicron, incentivamos a participação de representantes das diversas paróquias e grupos parceiros. Após a missa, acontece a caminhada, por memória, justiça e esperança, até o letreiro da cidade, onde participamos do Ato das Famílias. Por conta da pandemia e das terríveis enchentes que atingiram nossas comunidades, no início de janeiro, adiamos dois grandes e importantes eventos que estavam programados, a saber, a Feira dos Atingidos com exposições de projetos que acompanhamos e a Assembleia dos Atingidos do Bacia do Paraopeba, uma atividade construída com os movimentos sociais. Além disso, estão programadas lives com parceiros internacionais.
Desde a primeira Romaria, orientamo-nos a partir de três eixos. Memória pelas 272 pessoas que morreram na tragédia criminosa da Vale, com o rompimento da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho. “Nossas joias” como falam os familiares das vítimas fatais. São pessoas, com suas histórias e sonhos brutalmente interrompidos, não são números. Insistimos que é preciso lembrar sempre de um crime que nunca poderia ter acontecido e para que nunca mais aconteça. O longo e doloroso caminho do luto precisa ser acompanhado pela luta. Luto é também do verbo lutar, criar horizontes de vida. Isso não se dará sem a lembrança dos nossos mortos como força para os vivos transformarem o caos, a dor, o trauma. Na memória, os mortos reivindicam seu direito de não serem esquecidos. “Pensaram que tinham os enterrado, mas se esqueceram que eles eram sementes”, diz nossa gente.
Juntamente com esse pilar, todas as atividades foram motivadas pela luta por justiça. A reparação, em nosso caso, não acontece sem o reconhecimento de quem são os culpados. Por isso, a denúncia de que não foi acidente, foi crime e existem responsáveis. A Vale já sabia das possibilidades de rompimento da barragem e, mesmo assim, com a conivência também da Tüv Süd, manteve as estruturas administrativas e refeitório logo abaixo da barragem de lama de rejeitos. Causa muita indignação pensar que são três anos de impunidade. Ninguém está preso, apesar de a Justiça ou do poder Legislativo, através de comissões parlamentares de inquéritos, apontarem vários crimes e seus responsáveis. Porque lidamos com transnacionais, fazemos também diversos diálogos com instituições internacionais parceiras.
Como terceiro eixo, a esperança de um futuro melhor, pautado não no lucro acima da vida, mas na Ecologia Integral, que nos ensina que todos somos irmãos e irmãs, na Casa Comum. Empenhamos na defesa de modos de sobrevivência alternativos para enfrentar a questão da minério-dependência. Nosso solo não tem só minério, tem água; nossa sobrevivência não vem só da mineração, mas também da agricultura familiar; nosso povo não quer ser massa de manobra de um trabalho pesado, ele resiste também em sua religiosidade, em suas diversas expressões culturais. Se é para ter empreendimento minerário, que ele aconteça com soberania popular.
Então, romaria é ocasião de reforçar nossa condição itinerante, como Povo de Deus, sempre a caminho, em busca de dias melhores. Vivemos uma mudança de época provocada por uma crise socioambiental. Porque seguimos o Deus da vida, manifestado pela pessoa de Jesus, queremos promover a passagem de uma cultura de morte, imposta por esse sistema capitalista neoliberal, que coloca o lucro acima da vida, para a globalização da solidariedade e do cuidado para com nossa Casa Comum. Por isso marchamos, sem deixar ninguém para trás. Nesse sentido, destacamos que nosso diálogo não se dá apenas no interno da Igreja. Se por um lado, cuidamos daqueles que frequentam nossos templos, por outro lado, fazemos parcerias locais, nacionais e internacionais com vários Movimentos Populares e setores políticos. Nossa Romaria é um diálogo contínuo de fé e política, em busca do bem comum.
No contexto específico de Brumadinho e região, a Romaria reforça o cotidiano trabalho pastoral e socioambiental que fazemos. Somos feridos por um trauma muito doloroso. Suas marcas continuam e são reforçadas por um estilo de mineração violento. É um verdadeiro crime continuado. Por isso, queremos dar voz aos atingidos, que vivem seu processo difícil de luto e de luta. Caminhamos com eles, na esperança de que construiremos um futuro melhor. A liturgia, as caminhadas, a arte de nosso povo nos empurram para um tempo novo. As danças, os cânticos de nossos indígenas, das guardas dos quilombos, faz nossos corações pulsarem no desejo de um mundo mais justo e fraterno. E mostra que somos muito mais que minério, somos pessoas com histórias, com laços afetivos em territórios que também amamos com todas suas belezas. Fazer romaria é mostrar que estamos vivos, apesar dos vários cenários de morte que caem sobre nós.
Pela Ecologia Integral, caminhamos. Tudo está interligado nessa Casa Comum e não tem como resolver problemas antropológicos sem cuidarmos da natureza. Somos parte de nosso planeta. Por isso, a romaria também é uma forma de gritarmos pela terra. Ela está ferida, como afirma o Papa Francisco, “por conseguinte, pedimos que cessem os maus-tratos e o extermínio da “Mãe Terra”. A terra tem sangue e está sangrando, as multinacionais cortaram as veias da nossa Mãe Terra” (Querida Amazônia, n. 42). Para nós, essa é uma pauta transversal, a conversão ecológica. Não pode ficar restrita somente nas lutas de alguns ambientalistas ou de pequenos grupos. Ou salvamos nosso planeta, ou estaremos, cada vez mais, comprometendo o futuro de nossa espécie humana. Mais uma vez, destacamos que a romaria não apresenta somente denúncia contra a mineração predatória. Na Romaria, mostramos nossos projetos alternativos de agroecologia, de arte, de energia solar, de cultivo de nossas nascentes, de fortalecimento das comunidades nos quilombos, aldeias e assentamentos Sem Terra. Mostramos a força dos Movimentos Sociais que nasceram da luta contra empreendimentos econômicos predatórios.
Por fim, ser romeiro, nos cenários de destruição, é acreditar na terra prometida e caminhar com coragem. Como nossos antigos esperavam, “uma terra onde corre leite e mel” (Ex 33, 3). Ou como nos ensinou Jesus, “buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6, 33). Somos promotores do reinado de Deus quando buscamos uma terra na qual todos, sendo irmãos e irmãos, pudermos ter uma vida digna. O Reinado de Deus não tolera a injustiça social, a discriminação e nem a destruição da criação. Ser romeiro é colocar o amor na bandeira de frente e, de mãos dadas, construir um futuro digno para todos. Não é muito o que desejamos. Queremos apenas que nossos povos vivam com dignidade nesse sagrado planeta que é casa de todos.
Dom Vicente Ferreira, bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte.