Memória tem águas espessas: Luna Vitrolira, poeta e performer pernambucana, fala sobre seu lançamento
Livro se configura como um longo poema narrativo, escrito a partir de uma experiência imersiva da autora em busca de sua ancestralidade canavieira, natural da Zona da Mata de Pernambuco
O desconhecimento do passado e dos ancestrais é uma realidade que muitos brasileiros enfrentam devido ao processo de colonização e ao sistema escravocrata, que dispersou a genealogia do povo negro e originário. Esse aspecto e a investigação desse passado ancestral são abordados com poesia em Memórias tem águas espessas, de Luna Vitrolira. Publicado pela editora Diadorim, o livro se configura como um longo poema narrativo, escrito a partir de uma experiência imersiva da autora em busca de sua ancestralidade canavieira, natural da Zona da Mata de Pernambuco.
Luna Vitrolira é poeta, cantora, compositora, atriz, pesquisadora, palestrante e Mestra em Teoria da Literatura, com ênfase em oralidade e poética das vozes. Em 2018, lançou o livro Aquenda – o amor às vezes é isso (Selo Livre), que foi finalista do Prêmio Jabuti em 2019. Foi jurada na categoria de poesia no Jabuti e no Prêmio Oceanos nos anos de 2022 e 2023, e integra a exposição Falares no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Luna é facilitadora, entusiasta e colaboradora de planos, projetos e programas que têm como meta construir políticas de equidade de gênero e combate ao racismo institucional, com foco em diversidade e inclusão, e atua em programas de formação e acolhimento, voltados para as juventudes das periferias, em comunidades, escolas e colônias penitenciárias.
Confira a entrevista exclusiva da poeta e performer ao Le Monde Diplomatique Brasil.
Em Memória tem águas espessas somos inundados por uma espécie de olho d’água ancestral que se transforma em rio caudaloso. De que manancial vem as águas que banham esse livro?
Meu ponto de partida é um lugar de não memória. Durante muito tempo me vi sufocando nesse olho d’água, sem perceber que o leito desse rio vinha secando pouco a pouco, há séculos, de geração a geração. É doloroso ter consciência de que nosso passado está perdido, que nossa família foi vendida, separada, dispersada e que, por isso, não conseguimos nos entender, construir nossa árvore genealógica, porque o mais longe que chegamos é aos avós ou bisavós. O que vem antes disso está enterrado. Me sinto um fragmento de algo que está perdido e sofro com a desintegração, inclusive desse afeto parental que não cheguei mesmo a conhecer. O rio caudaloso renasce, devido à persistência na busca dessas memórias e o manancial são as mulheres da minha família. Sofri o abandono da paternidade e meu núcleo familiar se resumiu a minha mãe e a minha irmã. A busca começou na caixinha de inutilidades da minha avó que não deixei ir para o lixo depois de sua morte. Através dessa caixinha, comecei a conhecer um pouco da sua história. Soube que vovó foi entregue, ou vendida, não sei, para um casal de italianos e que, por isso, foi a única a sair do canavial. Escapou de ser uma cortadora de cana. Minha mãe estava há mais de 40 anos sem ver as pessoas da família e nós decidimos voltar na zona da mata durante a pandemia para reconhecer a fonte de tudo isso que se tornou o livro. No livro eu falo sobre a necessidade de fazer o caminho de volta ao útero geográfico, porque não existe futuro sem o passado ancestral. Assim consigo saber de onde eu vim e para onde deverei seguir.
Do olhar de quem vem do mar, o continente é um mundo infinito. E olhando para uma Améfrica Latina cortada por todos os cantos e cercada por todos os lados, o que essas (suas) águas querem nos dizer? O que sua literatura faz por você e pelo outro?
Quer dizer que a água está em constante movimento, assim como a memória, que nunca é fixa. As lembranças fluem, se misturam, são reconstruídas e reinterpretadas. Assim como a correnteza molda a paisagem, a memória molda nossa identidade, a nossa história e percepção do mundo. O fundo de um rio ou de um oceano contém vestígios de histórias passadas, assim como a nossa memória carrega camadas de experiências antigas. A água purifica, limpa, lava. Conecta territórios, pessoas e culturas. Da mesma forma, a memória tem um caráter coletivo, ligando gerações e criando laços entre o passado e o presente. A memória, como as águas que passam por vários lugares, transportam histórias de um lugar a outro. Essas águas que cercam o continente, simbolicamente, dizem tanto sobre os prantos e as feridas do colonialismo quanto sobre as travessias, resistências e sobrevivências. Essas águas são as memórias que continuam cercando e moldando o território do corpo, da mente, da espiritualidade e da geografia propriamente. Nesse sentido, a minha poesia também são essas águas que surgem como um movimento de cura e reconexão dentro de mim e é o que busco multiplicar. A minha literatura me salva todos os dias, me deu vida. Sem ela Luna Vitrolira não existiria, eu não estaria aqui. A minha literatura me deu uma profissão, motivo para viver, me deu um futuro, amigos e tudo o que tenho. Eu recebo muitas mensagens de leitoras e leitores e me sinto muito realizada, porque as pessoas se emocionam, se identificam e se reconhecem nas minhas palavras. Dizem que se sentem fortalecidas, acolhidas, inspiradas, representadas. De alguma forma, a literatura que eu faço também as salvam, ajudando-as a se perceberem no mundo. Quando eu não desisto, sinto que também ajudo as pessoas a não desistirem.
Me parece que você se esforça em recuperar memórias que são arrumadas por fantasmas de um passado colonial e que se arrasta até os dias de hoje. Interessante pensar que a memória para os antigos do Kemet e do Kush também se relaciona com as águas, com o batismo: um conceito africano que mais uma vez traz a água como um lugar de passagem e conhecimento. O que você descobre sobre si quando remonta a poesia-ficção do seu ser [quase batismal] na sua obra?
A água é a essência da vida e tem significado o meu renascimento. É como se, voltando ao útero geográfico, eu encontrasse esse olho d’água ancestral e conseguisse, de fato, me reconhecer, percebendo o que herdei de dores, sofrimentos, padrões negativos e preciso romper, curar para trás e para frente; e o que herdei de bom que preciso dar continuidade, como missão. Descobri que minha história, meus sonhos, minha relação com a palavra, com a poesia, com a cultura popular, não começaram em mim. Minha família tem um Maracatu chamado Pavão Dourado e essa relação com a arte me antecede. Descobri também minha capacidade de regeneração. Descobri que minha avó deu um passo à frente quando saiu do canavial, que minha mãe deu mais um passo adiante quando deixou de ser caixa de supermercado e se tornou publicitária, mesmo sem estudo e formação, e que eu estou dando mais um passo para o lugar que estou construindo e que também significa a nossa prosperidade. Entendi que tenho a missão de puxar minha ancestralidade para frente, que não posso repetir os erros nem reproduzir as dores da nossa história, e que não posso morrer lutando. Sobretudo, descobri que sou eu quem estou enterrada sob o mar de cana e a voz que pede para se libertar também é a minha.
Em Memória tem águas espessas sua voz poética atua como um eu lírico onipresente. E ela se desdobra também na figuração material —um corpo que já lhe coube—, espelhada por você ao longo do processo de construção da obra, onde temos a proximidade mais íntima de uma relação que é por si só ancestral e afetiva em busca de memória, identidade, pertencimento e reafirmações. Que outros corpos —e seus esforços de memória—, foram cabimento para o seu criar?
De fato, são muitos os corpos que compõem essa narrativa. Existe o meu corpo dentro e fora de tudo isso, mas também foram evocados corpos de ancestrais que carregam histórias e experiências coletivas, como os de familiares desconhecidos, que trazem legados de luta e resistência. Corpos que pertencem a comunidade, inclusive espiritualmente, também se tornaram essenciais. Em um sentido mais amplo, esses corpos incluem cortadores de cana, o caboclo de lança, a entidade maluguinho, a guerreira que aparece no meio do canavial, os candangos, o território, o mar de cana, a própria voz e memória, tudo se entrelaçando no tecido da obra, criando um mosaico rico de significados e reafirmações. Houve também a necessidade de considerar os corpos naturais — as águas, as terras, o açúcar, o barro, a pedra, dentre outros, que se tornam simbólicos, ampliando os limites da experiência humana e da relação com o tempo, destacando uma ancestralidade mais ampla.
Se Exu matou pássaro ontem com a pedra que atirou hoje e a memória é um movimento cíclico do viver e do perpetuar das gerações por meio da oralidade; que pedra você atira para alcançar novos futuros possíveis e imaginados a partir da sua arte?
A referência à ciclicidade da memória também em “Exu matou pássaro ontem com a pedra que atirou hoje” evoca a ideia de que cada ato criativo é uma ação que ressoa no tempo, produzindo efeitos tanto no passado, quanto no presente e futuro. A pedra que atiro é como uma manifestação de minha arte, um ato simbólico que busca criar novos futuros a partir das narrativas que compartilho. Essa pedra é a minha palavra, que se transforma em poesia e performatividade. É através dela que conto histórias, que identidades são afirmadas e memórias são restauradas. Ao me ater às questões de pertencimento, ancestralidade e resistência, busco lançar essa pedra em direção a um mar de possibilidades onde o novo pode emergir, ressoando com as vozes de quem veio antes e abrindo espaço para as vozes que ainda estão por vir. Essa pedra também representa a minha relação com a comunidade, a troca e o diálogo com outras experiências e subjetividades, porque a arte é um meio de conexão, uma ponte entre o passado e o futuro, onde os desafios contemporâneos são refletidos e reinterpretados. Ao lançar essa pedra, pretendo criar um impacto que reverbere nas relações sociais, nos conflitos de identidade e nas lutas por justiça e reconhecimento. Assim, a arte não é apenas um reflexo do mundo, mas uma ferramenta poderosa para moldar novos futuros possíveis, instigando reflexões e promovendo transformações que se estendem além da própria obra.
Jorge Pereira é CEO e editor-chefe da revista Philos.