Psicanálises à brasileira
A profusão de trabalhos dedicados às especificidades do encontro da psicanálise com nosso território e a retomada de autoras brasileiras que se ocuparam da denúncia do racismo à brasileira fazem do Brasil o epicentro de onde emanam teorias capazes de ventilar a psicanálise atualmente
Quando ingressei no curso de graduação em psicologia, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, eu tinha tantas certezas quanto costuma ser possível nesse momento da juventude. Uma delas se referia ao desejo de não me aproximar da psicanálise, já que não me identificava com os tons melancólicos associados a essa disciplina. Meu mundo pregresso era repleto de cores, gargalhadas e gestos largos, sempre ao som de pagodes e sambas-enredo. Não entendia absolutamente nada dos termos em francês e alemão, corriqueiramente citados em eventos do campo psicanalítico, mas era versada em falar de trás para frente, invertendo a ordem das sílabas, como um dos meus primos tinha me ensinado na adolescência. Dananfer, assim ele me chamava, era o código para que passássemos horas brincando com a Língua Portuguesa.
Anos mais tarde, tive acesso a uma entrevista em que o Bezerra da Silva equipara a tecnologia das gírias com a do jargão intelectual: “a gente pode conversar com o doutor o dia todo e ele ficar do mesmo jeito, sem entender nada também. Aí é zero a zero” [1]. Nas aulas da graduação, não era possível falar de trás para frente, nem estou propondo que o seja, mas gostaria de lembrar que quando ingressei na Universidade nunca era zero a zero. Precisei deixar as cores de lado e até aprendi a reproduzir alguns dos jargões intelectuais, tendo me mantido tão longe quanto possível da caricata melancolia associada à psicanálise.
O rumo dessa prosa mudou quando cursei uma disciplina obrigatória com o professor Antônio Geraldo Peixoto. Psicanalista de voz baixa e esculpida por décadas lecionando, em torno do qual os estudantes se agrupavam como mosquitos guiados por uma lâmpada. Geraldo sorria, explicava os textos de Lacan como quem pula corda com uma criança no outono e transmitia uma psicanálise que falava sobre nós e nossos afetos. Antes mesmo de entender o significado do conceito de transferência [2], saí daquela aula decidida a ser psicanalista, pois naquele momento entendi ser um ofício para continuar brincando com a Língua.
Não demorou muito e me juntei à equipe de estágio em clínica psicanalítica sob supervisão dele, espaço em que éramos estimulados a sair para dançar. Segundo Geraldo, era importante dançar para abrir a escuta na clínica. Dançar eu sabia, aí era zero a zero. Quem já teve o prazer de dançar com um desconhecido deve saber que é uma forma de encontrar com o desconhecido em nós: dois corpos que improvisam avançando e recuando nos hiatos que o encontro deixa, incorporando os desencontros como parte da dança. Para essa dança, é fundamental que se tenha um outro. Em outros termos, é preciso que tenham desequilíbrios, desencontros, diferenças. Do contrário, corremos o risco de reproduzir uma coreografia militarizada, tais como as dos vídeos que viralizaram à época das eleições de 2018. Vale, portanto, repetir: que tenham desequilíbrios, desencontros, diferenças. Não seria essa também a aposta de um encontro analítico?
Essa é a aposta da coletânea Psicanálise à brasileira [3], obra que não parte de uma tese consensual, tampouco tem perspectivas harmônicas sobre os temas abordados. Com o Geraldo, tive acesso a uma psicanálise que dança e, de quebra, à percepção de que a psicanálise não é uma só. Mais adequado seria falar sempre de psicanálises, no plural, com a provocação de que quando o sentido se fecha em uma única versão, a psicanálise, talvez estejamos falando de qualquer sorte de tirania, menos de psicanálise. Em outros termos, para continuar no passo dessa dança, quando a tirania do Um busca se impor [4], estamos mais próximos da coreografia militarizada e não de um bailado que tem o encontro com o outro como premissa.
Sendo assim, quando falo de psicanálise à brasileira estou me referindo às psicanálises produzidas por aqui, no Brasil, as quais trazem as marcas dos nossos sotaques, portanto das incidências dos territórios sobre os nossos corpos. Afinal de contas, é com o corpo inteiro que um psicanalista escuta, como bem me ensinara a psicanálise que dança. Não se trata de pensar sobre características específicas da psicanálise que floresce da nossa cultura, mas de extrair as devidas consequências do encontro desse saber, gestado com Freud, ainda na modernidade europeia, com os fenômenos à brasileira, tais como o racismo à brasileira.

Créditos: UFMG
A tarefa não é novidade em nossas terras. Aventar uma psicanálise supostamente à brasileira é estar em filiação inequívoca com Lélia Gonzalez, pensadora contumaz da cultura brasileira, cuja obra alcança, nos últimos anos, maior circulação entre espaços acadêmicos e de formação psicanalítica. O movimento faz indagar o que se estaria passando na cartografia geopolítica da psicanálise para que o Brasil esteja em alta nas formulações do campo hoje, o que se associa à retomada de formulações como as de Lélia, cuja trajetória ficou adormecida na história do movimento psicanalítico brasileiro até então. O pensamento de Lélia, marcadamente à brasileira, permaneceu historicamente à sombra de epistemologias especialmente eurocentradas na psicanálise. Em 1986, o sambista Jorge Aragão gravava Coisa de pele, um verdadeiro tratado sobre a cultura brasileira que traz o verso “nem tudo que é bom vem de fora”, advertência que não parece ter sido escutada por grande parte de meus colegas dedicados ao ofício da escuta na década de 1980.
Desde então, identifico pelo menos dois movimentos que contribuíram significativamente para uma reviravolta nesse estado de coisas. De um lado, a chegada do debate decolonial ao campo psicanalítico, ainda que tardiamente, se comparada a áreas afins, como as Ciências Sociais. Ao criticar a persistência da colonialidade em teorias e práticas psicanalíticas, o referido debate denuncia a falácia de um modelo de subjetividade – que vem de fora – e é alçado à ficção de universal. Em submissão epistêmica, a psicanálise importa esse universal abstrato na tentativa de fazer nossos corpos dançarem uma coreografia militarizada. Digna de nota é a influência do Sistema de Cotas nas universidades, contribuindo para a diversificação de seu público-alvo e, dessa forma, forçando os docentes, vindos majoritariamente das elites, a revisitarem os referenciais com os quais operam.
Por outro lado, e vibrando no diapasão do debate decolonial, assistimos no Brasil a um aumento da demanda negra por psicanálise e psicoterapias devido a uma maior circulação e acesso desse grupo social na última década [5]. Como mostram Márcio Farias e Emiliano de Camargo David, as gestões progressistas do Partido dos Trabalhadores trouxeram também a possibilidade de consumo de terapia por parte da população negra, forçando reformulações epistemológicas em nosso campo.
Arrisco a dizer que essa conjunção é a verdadeira responsável para a psicanálise brasileira estar na crista da onda. A profusão de trabalhos dedicados às especificidades do encontro da psicanálise com nosso território e a retomada de autoras brasileiras que se ocuparam da denúncia do racismo à brasileira fazem do Brasil o epicentro de onde emanam teorias capazes de ventilar a psicanálise atualmente. Somos lidos por quem antes apenas nos vendia teorias, constatação que nos leva a crer que estamos finalmente tirando as epistemologias europeias do púlpito de onde sempre ditaram as regras na psicanálise. Resta saber para quê: assumirmos seu lugar? Proponho que derrubemos o pilar, deixando-o na horizontal, pois assim pode servir de mesa à qual nos sentaremos para uma bela roda de samba.
Que esta roda não seja, no entanto, mais um recurso festivo como manobra para a reedição do mito da democracia racial. Lélia já nos advertiu a respeito da tentativa de apropriação de elementos afro e indígenas por parte da branquitude para a afirmação da suposta identidade nacional de um país pretensamente miscigenado [6]. É também com Lélia que temos a dinâmica cultural como “a grande responsável pelo estilhaçamento de classificações impostas de cima para baixo” [7], dinâmica esta representada amplamente por sujeitos anônimos das classes populares. Que essa roda seja, assim, ocasião para que a psicanálise tornada hegemônica também por essas bandas possa estilhaçar o pacto narcísico da branquitude [8] e a distribuição desigual das condições materiais de existência, revestindo-se de cores, gargalhadas, gestos largos e saberes populares. Para ter lugar nessa roda, que os termos em alemão e francês cheguem no sapatinho e embalados pelo tacaracatá dos tamborins.
Fernanda Canavêz é professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), coordenadora do marginália – Laboratório de Psicanálise e Estudos sobre o Contemporâneo. Organizou, em parceria com Joel Birman, a coletânea Psicanálise à Brasileira (Devires, 2024).
Referências:
[1] Derraik, M. e Neto, S. (Diretores). Coruja. Curta-metragem, 2001.
[2] Transferência é um conceito basilar na psicanálise, referindo-se à repetição dos investimentos afetivos nas relações, entre as quais a do analisando com o psicanalista.
[3] Canavêz, F. & Birman, J. (Orgs.). Psicanálise à brasileira. Salvador: Devires, 2024.
[4] Canavêz, F. Da resistência autoimunitária ao múltiplo na psicanálise. Psicologia USP, v. 28, n. 3, p. 424-431, 2017.
[5] Farias, M. & David, E.C. Psicanálise e demanda negra: reflexões sobre a escuta crítica. In F. Canavêz & J. Birman. (Orgs.). Psicanálise à brasileira. Salvador: Devires, 2024.
[6] Lélia desenvolve a tese principalmente no trabalho Racismo e sexismo na cultura brasileira. O trabalho foi apresentado no Colóquio Psicanálise e Política, em outubro de 1980, evento realizado no Rio de Janeiro pela Clínica Social de Psicanálise Anna Kattrin Kemper. As comunicações feitas na ocasião foram publicadas em livro, mas temos notícias da intervenção de Lélia bem depois, graças a uma publicação que data de 1984, a partir da apresentação posterior em um evento de Ciências Sociais, também em 1980. O episódio sugere como a apresentação de Lélia sobre o racismo e o sexismo parece não ter ressoado na plateia repleta de psicanalistas, tendo sido somente a partir de outro campo que tivemos notícias de sua brilhante fala sobre a cultura brasileira.
[7] Gonzalez, L. Festas populares no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2024, p. 46.
[8] Bento, C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.