Mercado não garante banda larga universal
Internet p/ todos com qualidade e preços baixos depende de retomada do Estado. Mas não são só os objetivos de garantir o interesse público que justificam a necessidade da presença estatal. A própria estrutura econômica das telecomunicações faz que o mercado seja incapaz, de prestar o serviço de forma eficienteBraúlio Araújo e João Brant|Veridiana Alimonti
O lançamento em 2010 do Plano Nacional de Banda Larga deu a impressão de que o Brasil tinha acordado. Depois de anos com o serviço de internet deixado na mão dos interesses das empresas de telecomunicações, o Estado brasileiro parecia disposto a assumir o protagonismo necessário para mudar a realidade de uma banda larga cara, lenta e para poucos. Os acordos firmados no final de junho deste ano, contudo, mostram que o governo não assumiu a postura capaz de lidar com esse problema, insistindo em negociar com base no que as empresas aceitam oferecer e não a partir de um plano estratégico de longo prazo. Aquilo que o mundo inteiro já sabe parece não ter ficado claro por aqui: oproblema não se resolve sem forte presença do Estado seja na regulação sobre as empresas privadas seja como provedor direto da infraestrutura e dos serviços.
“Resolver o problema” aqui tem a ver com atender a quatro objetivos: o serviço deve ser universalizado, com preços acessíveis, com qualidade e velocidade satisfatórias e com garantias de que não vai ser interrompido. Tudo isso porque a banda larga, pelo que representa à concretização de direitos fundamentais – especialmente liberdade de expressão, acesso à informação, à comunicação, à educação, à participação política e à cultura – e ao acesso a outros serviços, deve ser considerada um serviço essencial e garantida pelo Estado, por meio, inclusive, do controle público sobre a infraestrutura.
Mas não são só os objetivos de garantir o interesse público que justificam a necessidade de uma forte presença do Estado no setor. A própria estrutura econômica das telecomunicações faz que o mercado seja incapaz, por si só, de prestar o serviço de forma eficiente. Isso se dá por conta do alto investimento inicial para instalar redes e da necessidade de o prestador levar seu sinal até a residência de cada usuário. Essas características criam fortes barreiras à entrada de concorrentes e levam a uma falta de incentivos para o mercado prestar o serviço nas áreas que demandem mais investimento ou que não tenham tráfego suficiente para gerar retorno econômico. Assim, o setor é praticamente um monopólio natural e não consegue garantir eficiência econômica por seus próprios meios.
Portanto há a combinação de dois desafios: garantir os objetivos de interesse público e, ao mesmo tempo, garantir a eficiência econômica. Induzir a competição é certamente um dos objetivos da regulação, mas o setor privado, mesmo com razoável grau de competição, é incapaz de garantir o interesse público se não for obrigado a isso. As empresas não vão atuar em áreas que não ofereçam retorno econômico, e, portanto, serviço universal e tarifas baixas não são alcançados sem obrigações impostas pelo Estado. As experiências da Europa, Estados Unidos e Brasil mostram isso com clareza.
O histórico aqui e lá fora
Ainda que com modelos diferentes, a expansão dos serviços de telecomunicação nesses países foi promovida com a participação efetiva do Estado. Nos países europeus, havia monopólios estatais que garantiram universalização, controle de preços e de qualidade, entre outras obrigações. No processo de liberalização e privatização, a maioria dos países manteve participação estatal em uma companhia central e abriu o mercado para competidoras, mas sem perder a dimensão de serviço público. Nos EUA, havia um monopólio privado (AT&T), quebrado em 1983, mas sempre houve a imposição de obrigações que respondiam à essencialidade do serviço. Ao longo das últimas décadas, buscou-se ampliar a competição, especialmente na longa distância, mas a recente redução do mercado a duas empresas mostra que a tendência é mesmo de forte concentração.
O Brasil teve um desenvolvimento bem particular do setor, com um início privado, um processo de estatização na década de 1960 e uma reprivatização em 1998. No início da década de 1960, apesar de contar com cerca de novecentas companhias telefônicas, o Brasil estava entre os países com menor densidade telefônica do mundo – tinha apenas um telefone para cada 100 habitantes, abaixo de países como Estados Unidos (38), Suécia (35), Argentina (6) e Uruguai (5).1 A estrutura de telefonia do país compunha-se de operadoras privadas municipais, o que dificultava principalmente a comunicação intermunicipal e de longa distância.
Em 1965, foi criada a Embratel, empresa pública que em cinco anos interligou as principais cidades das cinco regiões do país, permitindo a discagem direta à longa distância (DDD). Em 1972, foi criada a Telebrás, que incorporou a Embratel e, por meio de suas subsidiárias (as “teles”, empresas polo estaduais), adquiriu as companhias municipais, uniformizou e expandiu a telefonia fixa residencial. Valendo-se de subsídios cruzados – cobrança de taxas maiores para o sistema empresarial e regiões mais densas para financiar o desenvolvimento do sistema residencial e de regiões menos povoadas –, a Telebrás teve grande êxito em expandir a infraestrutura de telefonia fixa no Brasil.
O incremento anual do número de linhas nos anos 70 realizou-se a taxas sempre superiores a 15%, tendo chegado a 32% em 1976. No final da década, essas taxas caíram, principalmente por conta do uso das estatais para fazer empréstimos a fim de cobrir a dívida externa. De toda forma, de 1970 a 1990, enquanto a população brasileira cresceu 50% e o PIB 90%, a planta instalada de terminais telefônicos do Sistema Telebrás cresceu 500%.
O rápido desenvolvimento das comunicações no Brasil impulsionou a indústria eletroeletrônica e atraiu empresas fornecedoras transnacionais. Ao longo da década de 1970, o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento da Telebrás (CPqD) desenvolveu uma série de novos produtos, obteve patentes no Brasil e no exterior e celebrou vários acordos e contratos de transferência de tecnologia.
Toda essa expansão não se deu sem problemas. Durante os anos 80 e 90, a Telebrás perdeu capacidade de investimento ao ser utilizada pelo governo brasileiro para cobrir problemas econômico-financeiros. Além disso, o modelo de negócio – baseado em alto investimento inicial pelo usuário e assinatura básica baixíssima – começou a gerar especulação em torno das linhas e criou um mercado paralelo. Em 1994, começou-se a preparar o terreno para a privatização. A assinatura inicial, que era de R$ 0,69 mensais, subiu rapidamente para alcançar R$ 12 em 1998, ano da privatização.
De toda forma, o processo histórico mostra que a participação estatal no setor foi determinante na saída de um modelo fragmentado, sem condições de se desenvolver, para um patamar de ampla expansão e ampliação do serviço que poderia ter ido ainda mais além se acompanhado por uma mudança no modelo de negócio.
Privatização e modelo atual
Com a privatização, limitou-se o poder de intervenção do Estado. A Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/97) separou a prestação dos serviços de telecomunicações no regime público e no regime privado. Para os prestados em regime público (apenas o serviço de telefonia fixa), reservou ao Estado um poder maior de regulamentação, atribuindo às prestadoras, entre outras, obrigações de universalização e continuidade dos serviços e de reversibilidade de bens. No regime privado, por outro lado, o Estado incumbiu-se de observar “a exigência de mínima intervenção na vida privada”, tomando a liberdade como regra.
O processo de privatização alterou o modelo de negócio do serviço de telefonia fixa. As empresas se beneficiaram de uma base já instalada de clientes, de uma demanda reprimida e do aumento do valor da assinatura básica (mais de R$ 40, atualmente), que passou a sustentar o negócio. As obrigações de universalização impuseram a necessidade de investimentos por parte das empresas e geraram uma ampliação significativa do serviço nos anos pós-privatização, mas a fraca atuação da Agência Nacional de Telecomunicações e um problema na própria conceituação de universalização fazem que ainda vivamos um serviço limitado.
Em mais de 10 anos da privatização das telecomunicações no Brasil, apenas 43% das residências têm telefone fixo, como mostram dados do IBGE.2 Ainda que se possa afirmar que a infraestrutura esteja presente em praticamente todas as localidades brasileiras, grande parte da população não utiliza o serviço. Isso porque a Lei Geral de Telecomunicações entende universalização como a possibilidade de o cidadão contratar o serviço, mas não considera que o valor da assinatura fixa constitui uma barreira econômica que impede o acesso de muitos. É como se alguém considerasse o serviço de saúde universalizado em determinada localidade simplesmente por haver um hospital privado na região.
Além disso, para muitos o telefone celular passou a substituir a linha fixa. Porém, a despeito do razoável grau de competição e do enorme número de linhas ativas, a desigualdade no acesso ao serviço móvel é uma realidade. Em 2009, apesar de o Brasil fechar o ano com cerca de 174 milhões de linhas ativas, o IBGE mostrou que o número de adultos com telefone móvel para uso pessoal fica em pouco mais de 60%.3 Entre os usuários do serviço, cerca de 80% das linhas são pré-pagas com R$ 8 de média mensal de ativação de créditos em 2010, segundo a Anatel.Na prática, muitos utilizam suas linhas apenas para o recebimento de chamadas, não tendo condições para efetivamente fruir o serviço. A União Internacional de Telecomunicações confirma isso ao mostrar que o Brasil está em 121º no ranking mundial de preços do serviço. Só 37 dos países pesquisados têm serviço mais caro.
Dificuldades de expansão da banda larga
Todo esse balanço é essencial para se compreender as barreiras de expansão do serviço de banda larga no Brasil, prestado em regime privado. Hoje, apenas 27% das residências têm acesso a internet, sendo 22% com banda larga.4 O acesso é desigual entre as cinco regiões brasileiras, entre áreas urbanas e rurais, entre municípios mais e menos populosos e entre diferentes classes sociais. Mesmo em municípios que possuem acesso à banda larga, há grandes áreas sem oferta do serviço. As operadoras de telefonia fixa são responsáveis por 65% das conexões de banda larga, e a expansão do serviço claramente depende delas, por sua penetração. Não é à toa que o Programa Nacional de Banda Larga brasileiro se ampara nessas empresas para buscar a expansão.
O problema principal do PNBL é que ele não reconhece a necessidade de o Estado atuar para impor metas de universalização e controle de preços sobre o setor privado. Os acordos assinados pelo governo federal com as empresas de telecomunicações no final de junho estabelecem que até 2014 as empresas devem oferecer em todos os municípios um serviço de banda larga (móvel ou fixo) com velocidade de 1 Mbps por R$ 35 mensais. As letras miúdas revelam os limites do pacote: há uma inaceitável franquia de download que restringe completamente o uso da internet e impede a utilização plena do serviço. O plano permite a venda casada da banda larga fixa com o serviço de telefonia, praticamente dobrando o preço final. Além disso, não há nenhuma garantia de atendimento dentro dos municípios atendidos (o serviço acabará concentrado nas áreas rentáveis), e a velocidade estabelecida está fora do que já hoje é considerado banda larga. Apenas para se ter uma ideia, o Plano Nacional de Banda Larga dos EUA prevê universalização da internet com velocidade mínima de 4 Mbps, com 75% da população com velocidade de 100 Mbps em 2020.
O plano brasileiro não estabelece a universalização nem como meta (fala-se em massificação, tomando a telefonia celular como referência), não prevê controle de preços (fora o pacote popular, os preços são livres) e não garante continuidade. Ele se ampara na tentativa de gerar competição no setor e na definição de um pacote popular com condições limitadas e diferenciadas. A internet, que deveria ser tratada como um direito de todos os cidadãos, torna-se mercadoria com qualidade diferenciada de acordo com o preço.
Qual o caminho?
Obviamente não há uma fórmula mágica para se garantir um serviço barato, de qualidade, para todos, mas a experiência histórica mostra caminhos. Estimular a competição é importante, mas não garante nenhum dos objetivos listados acima. Para garanti-los, é preciso retomar o papel do Estado como organizador do setor. Aliás, o artigo 21 da Constituição Federal é claro em dizer que compete à União “explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações”. É preciso então reconhecer a banda larga como um serviço público, em coerência com o texto constitucional, e combinar investimentos diretos com forte regulação sobre o setor.
Concretamente, nas regras atuais da Lei Geral das Telecomunicações, isso significa definir o regime público para prestação do serviço. Formalmente, para essa definição, basta um decreto da Presidência da República. Contudo, é preciso aprofundar o debate sobre o que isso implicaria em termos de novas regras e modelagem do sistema. As exigências deveriam ser diferenciadas de acordo com a capacidade técnica e financeira de cada empresa. Além disso, devem ser levadas em conta as diferenças nas áreas de prestação de serviço e o poder de mercado de cada ator, definindo-se um plano geral de outorgas que aponte para a universalização do serviço.
Seria preciso também definir a diferença nas obrigações das empresas que prestam o serviço junto com a TV a cabo e como a transição seria trabalhada na banda larga móvel de forma convergente e coerente com essa nova modelagem. A Telebrás, como empresa pública, poderia combinar a oferta de capacidade de tráfego no atacado com atendimento direto a áreas remotas e a áreas bastante lucrativas, para ajudar seu equilíbrio financeiro. Poderia ainda assumir o papel de fonte indutora de pesquisa e desenvolvimento tecnológico nacional.
O desafio de universalizar uma banda larga barata, rápida e com qualidade impõe-se como necessário ao efetivo desenvolvimento econômico e social do país e à garantia de direitos básicos. Fazê-lo possível é tarefa urgente e implica assegurar ao Estado os poderes de exigir da iniciativa privada as obrigações voltadas à dimensão de interesse público na prestação do serviço. Sem isso, o Plano Nacional de Banda Larga é um passo absolutamente insuficiente.
Braúlio Araújo e João Brant são integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
Veridiana Alimonti é advogada do Idec ( Instituto Brasileiro de defesa do Consumidor).