Mídia francesa em campanha na Ucrânia
Após a queda do avião malaio na zona controlada por separatistas ucranianos, muitos jornalistas russos soltaram seus fantasmas, com a condição de que eles perturbem o poder estabelecido em Moscou. Num conflito em que cada um se vê impelido a escolher um lado, a mídia francesa não é exceção na completa falta de rigorMathias Reymond
Em fevereiro de 2010, Viktor Yanukovich ganhou as eleições presidenciais na Ucrânia no segundo turno, por uma curta vantagem em relação à candidata Iulia Timochenko. De acordo com João Soares, presidente da Assembleia Parlamentar da Organização pela Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), essas eleições inquestionáveis ofereceram uma “demonstração impressionante de democracia”.1 Os resultados desenhavam uma Ucrânia dividida em duas: Yanukovich triunfava no leste e no sul do país, enquanto Iulia tinha maioria no oeste, no centro e em Kiev.
Pouco atenta a essas eleições ou à vida cotidiana dos ucranianos depois da decepção com as esperanças geradas pela “revolução laranja”, em 2004, a imprensa francesa de repente lançou um olhar agudo à Praça da Independência (Maidan), epicentro das manifestações populares contra o governo a partir do fim de novembro de 2013.
Em um primeiro momento, a maioria dos jornalistas e especialistas interpretou o conflito de forma unilateral: já que algunsucranianos expressavam simpatia pela União Europeia, então osucranianos seriam pró-europeus. Já que algunsucranianos rejeitavam um poder corrompido e com métodos policiais abusivos, então osucranianos apoiavam a saída do presidente eleito quatro anos antes e cujo partido, em 2012, acabava de ganhar o pleito legislativo. Foi preciso que a Crimeia organizasse um referendo para ratificar sua anexação à Rússia para que eles percebessem as nuances e complexidades da história da Ucrânia e enxergassem que há vozes dissonantes.
O cenário construído de uma oposição entre “sábios” pró-europeus e “maus” pró-russos logo ganhou ares de farsa. “De memória de europeu, não víamos uma declaração de amor assim desde… desde quando?”, emocionou-se o Le Monde em 25 de novembro de 2013, decidido a apoiar o movimento com uma metralhadora vespertina de editoriais pró-europeus. “Para povos que não se beneficiam do Estado de direito, a Europa simboliza a esperança da liberdade, da democracia e da modernidade. […] As manifestações de 2013 reivindicam reformas, um Estado limpo e democrático. Um Estado europeu” (2 dez.). Um coro entusiasta retoma o refrão. “Há países cujo povo se rebela para se unir à Europa”, maravilhava-se o editorialista François Sergent no Libération (12 dez.). No canal Arte, o programa 28 Minutos dava a palavra apenas a convidados hipnotizados pelos contestatários de Maidan.2
Dois meses depois, na Marianne, Jacques Julliard proferia o sermão: “Enquanto os povos europeus, essas crianças mimadas da história contemporânea, fazem cara feia à sua casa comum, ou seja, à Europa, é em nome dessa Europa, sob a bandeira da Europa, que os combatentes da liberdade em Kiev sacrificam a vida” (31 jan. 2014). Da mesma forma que no conflito em Kosovo em 1999, essa retórica de Guerra Fria não representa inteiramente as clivagens ideológicas da imprensa francesa. L’Humanité à esquerda, Le Figaro e Valeurs Actuelles à direita abstiveram-se de entrar no discurso efusivo do escritor Bernard-Henri Lévy (BHL): “Os verdadeiros europeus estão aqui reunidos, em Maidan”, gritava aos manifestantes de Kiev no dia 9 de janeiro. Não levou muito tempo para essas palavras repercutirem na França. André Glucksmann imitou-o em um texto lido diante da multidão em Kiev e reproduzido no Huffington Post francês (5 mar.): “Estamos unidos contra os rastros de totalitarismo vermelho ou negro. Aguentem firme, a sorte da Ucrânia depende de vocês, a Europa depende de vocês, a verdade depende de vocês, o mundo inteiro ficou sem ar diante da coragem de vocês. Vocês, homens e mulheres de Maidan, são as estrelas da bandeira da Europa”. Assim como vários jornalistas ocidentais, Glucksmann parecia ignorar que a bandeira horizontal vermelha e negra empunhada com frequência pelos militantes era do Exército Insurrecional Ucraniano (UPA), o braço militar da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN), que colaborou com o Terceiro Reich.3
Os cronistas e o editorialista não olharam para as manifestações espanholas de 22 de março com tanto fervor. Contudo, centenas de milhares de pessoas saíram às ruas em Madri para protestar contra as políticas de rigor prescritas pela União Europeia. No entanto, esse cortejo certamente tinha menos apelo, já que estava sendo conduzido por um bando de “crianças mimadas”. Os raros artigos que abordaram o ato se concentraram em mencionar os excessos e as violências à margem da multidão.4
Desde o fim de fevereiro e da partida forçada de Yanukovich, o anúncio do projeto de referendo na Crimeia e em seguida os movimentos autonomistas do leste da Ucrânia ofereceram aos observatórios da prática jornalística um grande experimento digno de laboratório. Assim como em Maidan, multidões se reuniram para protestar contra o poder (usurpado, segundo os manifestantes), organizaram vigílias, jogaram coquetéis molotov contra as forças da ordem e reivindicaram liberdade. Só que, dessa vez, o governo vilipendiado foi aquele escolhido pelos europeus, e as massas aclamavam Putin…
As mesmas causas não desencadeiam os mesmos efeitos. Essas manifestações provocaram um ataque midiático, notadamente no Le Monde, no qual as tribunas hostis à Rússia, a seu presidente e à cisão da Ucrânia se multiplicaram: “A Rússia contra Maidan” (21 fev.); “A ajuda eterna: pretexto das invasões russas” (7 mar.); “A ameaça russa une os ucranianos” (8 mar.); “Crimeia: um referendo vergonhoso” (14 mar.); “Putin e os instintos primitivos” (14 mar.) etc.
As petições abundaram: os signatários já não sabiam com o que deveriam colaborar. O Libération viu no plebiscito da Crimeia um “golpe político e militar orquestrado por Moscou, [que] criou um precedente perigoso, sem equivalente desde a Segunda Guerra Mundial” (16 mar.). As anexações do Chipre pela Turquia em 1974, do Saara Ocidental pelo Marrocos em 1975, do Timor Leste pela Indonésia no mesmo ano ou de trechos inteiros da Palestina por Israel desde 19485 sem dúvida não mereciam ser mencionadas aos leitores.
Assim, quando a tensão internacional aumenta, apenas uma referência faz sentido aos olhos dos comentaristas: “Hitler argumentava, em 1938, que os sudetos falavam alemão para invadir a Tchecoslováquia… Isso não lembra nada?”, ironizava “BHL” na Le Point (6 mar.). Julliard bradava no mesmo dia, na Marianne: “A Rússia de Putin […] retoma exatamente o argumento invocado por Hitler quando, em 1939 [sic], ele invadiu a Tchecoslováquia: ele protegeria a população alemã dos sudetos”. “Essa anexação lembra a dos sudetos em 1938”, analisava também o Ouest-France, menos atrapalhado com as datas que o editorialista da Marianne (16 mar.).
Importante distinguir, o Le Monde tentou outra abordagem, dessa vez com as “cenas da guerra civil nas ruas de Bucareste que [haviam] precipitado a queda de Nicolae Ceausescu” (25 fev.), como se cada conflito dessa amplitude se resumisse ao enfrentamento entre uma entidade evanescente e virtuosa (a “Europa”, a “América”) e um adversário personalizado e psiquiatrizado ao extremo. Após Saddam Hussein, Muamar Kadafi e Ceausescu, agora é a vez do presidente russo. “Até onde vai a loucura de Vladimir Putin?”, perguntava a Télérama (19 mar.). O site LeParisien.fr consultou os internautas: “Vladimir Putin provoca medo?” (2 mar.). O ouvinte da rádio France Culture dificilmente responderia de forma negativa depois de escutar a jornalista Caroline Fourest anunciar – falsamente – que “os paramilitares separatistas acabaram de arrancar os globos oculares [de três oficiais ucranianos] com uma faca” (6 maio 2014).
A situação se prestava a todo tipo de investigações apaixonadas, das quais os meios alemães oferecem alguns bons exemplos. O que aconteceu exatamente em Maidan no dia 20 de fevereiro, durante os confrontos sangrentos que deixaram dezenas de mortos, principalmente entre os manifestantes? A pesquisa feita pela emissora de televisão alemã ARD arruína qualquer certeza ao mostrar que tiros também teriam sido disparados de edifícios ocupados por insurgentes.6 Como o acordo concluído em 21 de fevereiro entre a oposição e o presidente Yanukovich e firmado sob a supervisão de diversos países europeus poderia ter sido desfeito em uma noite? Invoca-se a implicação do poder russo – com escassas provas que apoiariam a tese –, mas e a dos serviços ocidentais? Segundo o jornal alemão Bild(4 maio), Kiev recrutava mercenários da Academi, uma empresa militar privada norte-americana antes chamada Blackwater e conhecida por sua atuação no Iraque, e teria recebido ajuda de agentes da CIA para colocar fim aos movimentos autonomistas da região de Donetsk. Como quinze anos antes os independentistas do Exército de Libertação de Kosovo (UÇK), os ucranianos “bonzinhos” não se encaixavam no retrato imaculado que pintaram deles…
Nos meios de comunicação franceses, a linha divisória – situada tradicionalmente entre prós e antiatlantistas – também tensionou nesse aspecto. Le Monde, Libération e France Inter, ao atribuírem todos os males à Rússia, atraíram a réplica não somente dos adversários habituais do imperialismo norte-americano (L’Humanité, por exemplo), mas também de comentaristas de direita, para quem a Rússia, hoje, constitui não um prolongamento da União Soviética, e sim um laboratório do neoconservadorismo.7 O polemista Éric Zemmour explicou com paixão: “A Rússia de Putin tornou-se uma espécie de anti-França de [François] Hollande. Hostil ao multiculturalismo, sem qualquer cessão ao lobby gay, combatendo o islamismo, aproximando-se da religião ortodoxa enquanto a França e a Europa negam suas raízes cristãs, ousando até a condenar Lenin (o revolucionário comunista) e reabilitar Stalin (a ordem e grandeza da nação), enquanto a intelectualidade parisiense faz o contrário há décadas”. Além disso, “para os últimos gaullistas, soberanistas franceses, ele é quem defende seu país dos miasmas da decadência ocidental”.8
De resto, as violências atribuídas à extrema direita aliada ao novo poder oriundo da ressurreição, a organização do referendo na Crimeia e a eclosão da guerra civil no leste do país tornavam mais difícil a defesa do unilateralismo editorial. Como em todo conflito, a propaganda provocava ira dos dois lados. O público não demorou a perceber esse movimento, e a ficção do bem contra o mal tornou-se comercialmente duvidosa.
Desde então, vozes levantaram-se para denunciar a “caça aos russos”, notadamente a de Christophe Barbier, diretor da L’Express: “A Crimeia decidir tornar-se totalmente parte da Rússia é normal” (France Inter, 22 mar.) – posição compartilhada pelo ensaísta Jacques Attali (L’Express, 26 mar.) e pelo filósofo Luc Ferry (Le Figaro, 20 mar.). A TF1 chegou a dar a palavra longamente a Putin em seu jornal das 20 horas (4 jun.).
As imagens nem sempre estavam a favor dos apoiadores de Kiev: nos jornais da France 2 e da iTélé do dia 16 de abril, viam-se, por exemplo, os habitantes do leste dirigirem-se, desarmados, aos tanques de guerra. A realidade ficava cada vez mais difícil de ser distorcida. No dia 2 de maio, o incêndio da Casa dos Sindicatos de Odessa, provocado pelos coquetéis molotov dos membros do movimento Praviy Sektor (“Setor à direita”), causou a morte de trinta ucranianos anti-Maidan. Se a France Presse, citando um oficial de Kiev, evocou ao longo das primeiras horas uma “provocação dos serviços especiais russos”,9 o drama e sua origem só não passaram em silêncio pelos vários registros amadores de vídeo recolhidos por telefones celulares, mas não desencadearam o coro de vozes indignadas que provavelmente suscitariam se as vítimas, em vez de contestatárias do novo poder ucraniano, fossem agitadores da bandeira europeia.
Mathias Reymond é economista, membro da equipe editorial da Action Critique Médias (Acrimed).