Migalhas suecas
Lutar contra o desperdício alimentar oferecendo às populações pobres preços vantajosos ou até um trabalho: os supermercados “sociais e solidários” Matmissionen, na periferia de Estocolmo, apresentam-se como virtuosos. Testemunham, contudo, uma mudança da Suécia, onde o recuo do Estado social conduziu a uma sociedade desigual
Meio-dia de uma terça-feira normal, em Hägersten, na periferia sul de Estocolmo. Dezenas de clientes aguardam diante dos portões do supermercado “social e solidário” Matmissionen (cujo significado é “missão alimentar”). Os primeiros chegaram duas horas antes, a fim de obter uma senha melhor na fila de espera. Podem, enfim, entrar na loja, mas a conta-gotas, não mais de dez por vez. Tal procedimento estabelecido bem antes da pandemia de Covid-19 visa evitar tumultos. Antes de sua aplicação, os consumidores mais ágeis e experientes se apropriavam rápido das melhores mercadorias.
As portas só ficam abertas do meio-dia às 17 horas, de segunda a sábado. Todavia, muitos clientes passam boa parte de seu dia deslocando-se para chegar às lojas Matmissionen, montadas, desde 2015, pela associação Stockholms Stadsmission na periferia da capital (a mais recente, em Jakobsgerg, foi aberta em abril). Muitos não hesitam em aguardar bastante tempo na esperança de eventuais entregas imprevistas de produtos que não teriam meios de comprar em um supermercado comum. Para tornar-se cliente-membro e aproveitar os descontos de pelo menos 70% em relação ao preço do supermercado mais barato, é preciso estar inscrito em um programa social ou ganhar menos de 9.972 coroas suecas (R$ 6.351) por mês. Exceções são abertas de acordo com o tamanho do lar ou diante de situações de endividamento. A estrutura concentra assim sua ação sobre as unidades familiares que vivem na linha da pobreza (11.830 coroas suecas, ou seja, R$ 7.535 por pessoa), às vezes bem abaixo disso. Metade do quadro de funcionários é composto de assalariados contratados, sendo a outra metade formada por estagiários, que recebem uma contribuição a cargo da agência local para o emprego e condicionada ao cumprimento do estágio.
As compras são levadas bastante a sério, e a maioria dos clientes aplaude essa iniciativa, que lhes permite economizar em alimentos em um contexto social cada vez mais difícil. Isso possibilita a John T.,1 por exemplo, convidar suas duas filhas para jantar e preparar-lhes belos pedaços de salmão, algo que não poderia servir em outras circunstâncias. Também consegue se dar pequenos prazeres graças às economias realizadas: uma caixa de snus (pó de tabaco), café ou ainda um bilhete de loteria. Nesrin G., por sua vez, consegue alimentar seus cinco filhos e até cozinhar um prato vegetariano para três deles: “Eles fazem muito exercício físico e evitam comer carne… Aqui é perfeito. Hoje peguei verduras e ingredientes para fazer lasanhas vegetarianas: uma caixa por 60 coroas suecas (R$ 38)! […] A qualidade é importante para nós”. Para o Natal, um generoso doador anônimo ofereceu ajuda nas compras dando 150 coroas suecas (R$ 96) a cada membro, gerando um frenesi entre a clientela e uma explosão de vendas.
Ideologia do “ganha-ganha”
Nessas lojas, podemos encontrar produtos de marcas mais básicas, mas também de boa qualidade, orgânicos etc. Tudo depende do que as marcas parceiras decidem ceder naquele momento. Os Matmissionen se abastecem junto às redes alimentares clássicas, que se livram assim de seu excedente quando a data de validade se aproxima, a embalagem foi danificada ou quando compraram mercadorias em excesso. Adquirindo com desconto e no último estágio da cadeia alimentar, esses clientes conseguem em definitivo fazer economias nos custos ligados à triagem, à gestão das reservas e à destruição dos produtos perecíveis. Com tantas despesas evitadas para as empresas que estão por trás do projeto, o grupo agroalimentar Axfood, um dos gigantes nacionais, obteve até um salto no princípio da “responsabilidade social da empresa” (RSE) e pôde em seguida comunicar seu engajamento em favor de uma sociedade mais igualitária. Vistos em muitos aspectos como um “excesso” do sistema de proteção social, esses clientes também são integrados ao circuito econômico de produção de mais-valia.
O Matmissionen aplica uma lógica empresarial na gestão da insegurança alimentar: trata-se de fazer os núcleos familiares de baixa renda consumirem produtos retirados do circuito mercantil tradicional nos supermercado clássicos. Tal lógica se acompanha de um discurso que retoma a ideologia do “ganha-ganha”. A comunicação da Stadsmissionen é bem clara: o objetivo é levar ajuda pontual aos lares em dificuldade, reforçando seu egen makt, ou seja, sua capacidade de recuperar o curso da própria vida.
A irrupção desse tipo de solução na Suécia se explica pela evolução ocorrida no país desde os anos 1990, marcada pelo retorno dos partidos burgueses ao poder, seguido de um desvio liberal dos sociais-democratas, que aprovaram o recuo do Estado-providência e a privatização dos serviços públicos.2 A redistribuição de renda não é mais tão igualitária como já foi, conforme mostra o aumento do coeficiente de Gini – medida estatística que determina o nível de distribuição de riquezas em uma população. Ainda bem inferior à média europeia, passou de 0,21 a 0,28 entre 1985 e 2017, enquanto o da França passou de 0,30 a 0,31, e o do Brasil, de 0,60 a 0,533 (quanto mais esse indicador se aproxima de zero, menores são as discrepâncias de renda). Outrora conhecida por suas políticas sociais, a Suécia não faz mais parte da exceção ao aumento da “precariedade”, com um endurecimento das condições de acesso às prestações sociais e a um emprego estável.
Essa consolidação liberal do projeto explica que a ajuda concedida se concentre na figura do consumidor. Participando da iniciativa, o setor de associações de caridade tem por objetivo um tipo de inclusão das populações vulneráveis por meio do consumo. Tal maneira de reciclar a pobreza “alivia” o Estado social, minimizando as falhas estruturais do sistema de produção (desperdício, desemprego, desigualdades), que não proporciona a todos uma alimentação decente.
Yacine Boukhris-Ferré é doutorando em Ciência Política no Centro Émile Durkheim, Universidade de Bordeaux, França, e ex-voluntário em uma unidade do supermercado Matmissionen.
1 As pessoas entrevistadas pediram anonimato, e seus nomes foram modificados.
2 Ler Violette Goarant, “En Suède, au nom de la ‘liberté de choix’” [Na Suécia, em nome da “liberdade de escolha”], Le Monde Diplomatique, set. 2018.
3 Fontes: Desigualdade de renda, base de dados da OCDE, 2020; Fabrice Perrin, “Des inégalités croissantes en Suède…” [Desigualdades crescentes na Suécia…], Regards, n.45, mar. 2014; e IBGE.