Milei, a coisa e as causas
A vitória de Javier Milei nas eleições primárias argentinas de 13 de agosto é explicada tanto pelos fracassos do neoliberalismo de Macri e como pelo estatismo suave da atual coalizão governista. No entanto, o candidato da extrema-direita não escapa da maldição da encruzilhada argentina, aquela que sentencia que uma vitória eleitoral não é sinônimo de capacidade de impor um projeto político
“Milei pode não estar com a razão, mas aqueles que votam nele estão”, escreveu Martín Rodríguez. O jornalista argentino tocou num ponto sensível que se transformou em gangrena neste dia 13. É disso que se trata: encontrar as razões por trás da loucura do homem que ama cachorros, fala com o além e se acredita o rei de um mundo perdido. Pensá-lo não do ponto de vista de sua indecifrável biografia pessoal, mas sim como um fenômeno político brutal.
Há muito tempo a Argentina se tornou um cemitério de ambições hegemônicas, onde os diferentes blocos sociais (e suas expressões políticas) têm a capacidade de vetar os projetos uns dos outros, mas carecem dos recursos para impor os próprios de forma duradoura.
Javier Milei e o libertarianismo triunfante nas primárias argentinas emergiram desse labirinto e são consequência de dois fracassos e um triunfo.
Os fracassos são representados, por um lado, pelo programa neoliberal rígido que sucumbiu na aventura do governo de Mauricio Macri e, por outro, pelo estatismo suave – cuja expressão mais recente foi a desbotada administração de Alberto Fernández – desprovido da capacidade de cumprir as promessas de sua própria narrativa. Neste último caso, o que o sociólogo Pablo Semán chamou de “mímica de Estado”: um discurso estatista no contexto de capacidades estatais enferrujadas que permitem satisfazer (mesmo que parcialmente) as demandas sociais emergentes de uma crise crônica, profunda e multidimensional.
Já o triunfo foi a habilidade (essencialmente do peronismo) de conter e manter calmas as organizações sindicais e “sociais” que voluntariamente forneceram ordem e governabilidade para um governo que continuou o ajuste por outros meios. Uma rota econômica que aprofundou o mal-estar e gerou um estado de ânimo coletivo dominado pela raiva, pela fadiga e pela exaustão, mas que não encontrou canais para se manifestar como rebeldia.
Confira a animação do Le Monde Diplomatique Brasil sobre a corrida eleitoral argentina.
Em The Tragedy of European Labor: 1918-1939 [A tragédia do trabalhismo europeu] (Columbia University Press, 1943), o sociólogo e jornalista estadunidense de origem austríaca Adolf Sturmthal escreveu que era impossível “entender o que aconteceu na Europa sem relacioná-lo com o destino de suas organizações operárias”. Referia-se à primeira fase do período entre guerras antes da ascensão do fascismo e do nazismo. Impactado pela leitura desse livro, o sociólogo e escritor argentino Juan Carlos Portantiero adotou a noção de “empate” para analisar um período da realidade argentina. Sturmthal sustentava que o grande drama do movimento operário europeu nesse período foi sua mentalidade de “grupo de pressão”: impor a agenda de suas demandas corporativas sem considerar um projeto político coletivo (além do debate sobre qual deveria ser esse projeto).
A maioria das lideranças das organizações sindicais e “sociais” da Argentina adotam prática similar, com uma diferença: sua atuação enquanto “grupo de pressão” ocorre por meio de métodos diplomáticos, negociações ministeriais e paz nas ruas. Isso transforma as classes trabalhadoras (e seus diferentes estratos) em uma “maioria silenciosa” dominada pela desesperança, pela raiva ou pelo remorso, de acordo com a época. Na ausência desse ator e dessa voz na cena pública argentina, a ultradireita encontra sua primeira vantagem no contexto da crise.
Em termos materiais, isso fortalece e cristaliza a dualidade da classe trabalhadora, com um grupo que mantém conquistas e direitos e até consegue enfrentar a inflação, e outro setor cada vez mais amplo que é deixado à própria sorte, vítima da “uberização” e da precarização das condições de vida.
Todo um contingente de pessoas condenadas a um empreendedorismo marginal do qual emergem novas subjetividades – subjetividades estas distantes de experiências coletivas e muito mais propensas a aceitar discursos individualistas. Nessas fissuras emergem o que os pesquisadores brasileiros Daniel Feldmann e Fabio Luis Barbosa dos Santos [1] – tentando explicar as bases sociais do bolsonarismo – chamam de “sociabilidade concorrencial”, de competição, de uns contra os outros: os que trabalham contra os que não trabalham, por exemplo. Um processo que ocorre por meio do esvaziamento das mediações próprio do neoliberalismo em sua fase avançada. O discurso sobre “liberdade” agitado pelos libertarianos durante a pandemia tinha um significado muito diferente para aqueles que compõem o universo de pessoas que não tinham opção senão sair para trabalhar e não podiam se dar ao luxo de “ficar em casa”.
Por outro lado, a reação de direita expressa pelo mileísmo em construção não é apenas contra a “mímica de Estado”; também se combina com a rejeição ao que a filósofa Nancy Fraser chamou de “neoliberalismo progressista”: anos de intensa narrativa estatal progressista combinada com um ajuste econômico bastante ortodoxo.
No entanto, além das raízes sociais e das narrativas estatais, Milei e o libertarianismo tiveram promotores que vieram de cima. Certos setores trabalham para instaurá-los como “agenda” e deslocar o debate público para a direita. Embora não seja essencialmente uma construção artificial, sem os esteroides injetados pelos aparatos midiáticos, o “fenômeno Milei” não seria o que é. Em seu livro El loco. La vida desconocida de Javier Milei y su irrupción en la política argentina [2], o jornalista Juan Luis González revela os esforços concretos e materiais de empresários como Eduardo Eurnekián para posicioná-lo na mídia.
Finalmente, não se deve esquecer o cálculo da pequena política do peronismo que apostou no crescimento de Milei com a ilusão de que ele tiraria votos da coalizão Juntos por el Cambio (direita tradicional). Pode-se argumentar que é um recurso comum e até legítimo na disputa política, mas o problema se amplia quando a estratégia se reduz à loteria de dividir os votos do outro, porque a cada dia se perde uma parte dos próprios sufrágios. O resultado “não desejado” foi um estímulo adicional para o impulso do experimento libertariano.
Entretanto, diante da “depressão pós-PASO” [Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias] que certamente invadirá as almas assustadas do progressismo, é preciso afirmar que Milei não escapa da “maldição” da encruzilhada argentina. Aquela que sentencia que uma vitória eleitoral não é sinônimo de conquista de uma relação de forças para impor um projeto político. O vencedor do dia também corre o risco de tomar a parte pelo todo, e ainda está por ser medido o tamanho da expectativa gerada.
Fernando Rosso é jornalista (@RossoFer).
[1] Daniel Feldmann e Fabio Luis Barbosa dos Santos, Brasil autofágico. Aceleración y contención entre Bolsonaro y Lula [Brasil autofágico. Aceleração e contenção entre Bolsonaro e Lula], TintaLimón, 2022. A edição original “O médico e o monstro. Uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos” (Editora Elefante, 2021) foi tema do episódio #161 do Guilhotina.
[2] El loco. La vida desconocida de Javier Milei y su irrupción en la política argentina [O louco. A vida desconhecida de Javier Milei e sua emergência na política argentina], Juan Luis González, Planeta, 2023.