Milei e os ataques à cultura: implementando o roteiro da extrema direita
Milei ataca o mundo da cultura, baseado na sua compreensão limitada da liberdade – uma liberdade autoritária e ultra individualista
Em pouco mais de dois meses, a Argentina entrou numa espiral inflacionária e de miséria poucas vezes vista. Entre os vários desacertos, a decisão política contra subsídios nos serviços essenciais alterou a vida de milhares de cidadãos, jogando-os na pobreza (cerca de 57% da população). Nesse percurso, o presidente argentino Javier Milei mostrou suas limitações na articulação política e seu repertório emprestado. Neste breve texto, abordaremos seu ataque à cultura e os paralelos com o governo de Bolsonaro.
De fora para dentro
Internacionalmente, a extrema direita tem roteiro, nortes e ações comuns. Talvez o ícone do desmonte e da erosão democrática tenha sido o governo do ex-presidente Bolsonaro. Ele foi adaptando nortes e estratégias implementadas pelo ex-presidente Trump, entre outras lideranças e mandatários da mesma linha. Nesses tipos de governos, a cultura sempre foi alvo.
A extrema direita é misógina e racista, odeia o diverso e fomenta a violência (simbólica e material). A homogeneização cultural é parte do roteiro dos fascistas. A reflexão, o pensamento crítico e a sensibilidade são aspectos a serem apagados. A arte, a ciência e as universidades são foco principal dos ataques. Sem eles, não existem limites, e a impunidade é garantida.
Bolsonaro é um ser desinteressado pela cultura, sem inquietude intelectual e que tem um rudimentar senso do coletivo. Ele enxerga a cultura como uma ameaça e um desperdício. Por sua parte, Milei, desde sua aparição pública, de forma idêntica, atacou o mundo da cultura, baseado na sua compreensão limitada da liberdade – uma liberdade autoritária e ultra individualista. Nela, não existe solidariedade, comunidade ou humanidade.
O caso dos ataques recentes do presidente argentino tem nas suas ações as marcas das pegadas do ex-mandatário brasileiro. É difícil identificar a autoria das seguintes frases: “o ensino de artes nas escolas é uma perda de tempo”, “as universidades são centros de doutrinação ideológica”, “a pesquisa científica é um luxo que o país não pode se dar”. Poderiam ser de Bolsonaro, mas foram ditas por Milei.
Se, por um lado, os inimigos são os espaços de construção de imaginários e futuros, de reflexão e criação; pelo outro, enaltecer a liberdade ultra individualista, a tradição e o patriotismo, misturando tudo no liquidificador das fake news, garante a crença de que se trata de um governo que defende o nacional.
Também são interessantes as formas de criar oponentes e culpáveis, os inimigos. Se, por um lado, o Bolsonaro falava de eliminar o marxismo cultural, Milei fala de desarmar o Gramsci Kultural. Assim, colocam na sociedade teorias conspiratórias, importadas do hemisfério norte, indicando que o problema local se deve a um esvaziamento da moral e da perda do rumo das tradições nacionais por culpa de uma esquerda que dominou o mundo. Tudo na interseção e no limite do delírio, dos desejos e do “até poderia ser”.
A cultura como alvo
O primeiro decreto de Milei como presidente da nação, ainda no seu primeiro dia de trabalho, extinguiu o Ministério da Cultura para ser incorporado como Secretaria do Ministério de Capital Humano, liderado por Sandra Pettovello. O novo ministério abraçou também os antigos ministérios de educação, de desenvolvimento social, do trabalho, emprego e seguridade social e das mulheres, gênero e diversidade. Ou seja, um ministério cambalache: tem tudo para que não funcione nada. Uma redução violenta de espaços fundamentais da dinâmica democrática.
Da mesma forma, aconteceu no governo Bolsonaro. Anunciada antes de tomar posse, em novembro de 2018, a dissolução do Ministério da Cultura já estava na agenda. Do mesmo modo que o mandatário argentino, no seu primeiro dia de trabalho, Bolsonaro eliminou o Ministério de Cultura. O que sobrou do MinC foi ao Ministério da Cidadania, como Secretaria especial de Cultura, logo transferida para o Ministério de Turismo – designado como responsável, Roberto Alvim. O flamante secretário não ficaria muito tempo no cargo: em 16 de janeiro de 2020, Alvim divulgou um vídeo institucional anunciando o Prêmio Nacional das Artes, um programa antigo de incentivo à cultura. Mas foi o vídeo que chocou a todos: nele Alvim copiou trechos do discurso de Joseph Goebbels, ministro de propaganda nazista: “a arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional.” Alvim atuou caricatamente no vídeo. Mas não foram só as palavras, também a estética, preocupação nazista. No vídeo, a estética foi imposta: a aparência do secretário, seu tom de voz e a música de fundo, de Richard Wagner, o compositor favorito de Hitler. Outros falaram que se tratou de um apito de cachorro, mensagem codificada que só a turma cativa de apoiadores compreende, estratégia da extrema direita internacional.
Milei contra o setor
Desde o início da campanha eleitoral, Milei mostrava desprezo e desinteresse pela arte. No segundo turno, Milei fez declarações que reverberaram no ambiente da cultura, ao sinalizar sua intenção de fechar o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA). Rapidamente, o setor se mobilizou e lançou uma carta aberta contra a candidatura do líder de extrema direita, que entre outras coisas defendia: “… políticas públicas que estão focadas na redução das desigualdades em todo o território, essenciais para garantir o acesso à cultura e um futuro do cinema federal e diverso”.
A resposta não demorou. Assim que Milei alcançou o poder, a cultura ganhou um capítulo específico no projeto da “Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos” – conhecida como Lei ônibus, pela quantidade de artigos e de modificações que produz em outras leis. Ela propôs a eliminação de instituições (Fundo Nacional das Artes e Instituto do Teatro), alteração da forma de financiamento (INCAA e Instituto Nacional de Música), corte orçamentário, além da restruturação de diversos órgãos (livros e bibliotecas) e da eliminação de 70% dos trabalhadores do INCAA. A reconfiguração dos editais e sua forma de acesso, também limitaram a quantidade de filmes que as produtoras podem concorrer por financiamento por ano. Também foram colocadas em cargos chaves da área pessoas desqualificadas e defensoras da ideologia do presidente, replicando a fórmula implementada por Bolsonaro e Trump.
LEIA TAMBÉM
A Argentina e Milei sob as sombras do século XIX
Da derrota parcial à vitória final de Milei nas eleições
Diferentes setores se opuseram ao projeto de lei, realizando extensos protestos. Nesse contexto, entre as agressões presidenciais via redes sociais, Milei provocou o setor declarando que: “…ou escolher entre usar os recursos do Estado para financiar filmes que ninguém assiste … ou colocar esse dinheiro para alimentar as pessoas”. Foram várias as manifestações de diferentes coletivos, como por exemplo a carta “A cultura está em perigo”, assinada por Charly Garcia, Cecilia Roth, Leon Gieco, Fito Paez e outros pilares da cultura nacional. O ator Ricardo Darin indicou, num vídeo do coletivo SAGAI, que o governo atual não aponta a destruir privilégios, mas direitos. A resposta do descabelado presidente foi a mesma que outros líderes da extrema direita: cultura ou comida. Finalmente, pelo absurdo do conteúdo da Lei Ônibus, pela falta de articulação e inoperância do próprio oficialismo, a lei não foi aprovada. Mas isso se tratou apenas de uma batalha, e não da guerra.
A cultura não serve, se não é do meu agrado
Uma constante é a indicação que dinheiro na cultura não serve. Ou seja, o fomento à cultura deve ser desativado, ou redirecionado para artistas que constroem e apoiam a imagem do governo. Claro, primeiro devemos falar do uso das redes sociais. Os dois personagens tiveram e têm uma grande vantagem nas plataformas. São parte do movimento de extrema direita que utiliza as redes de forma sofisticada e aperfeiçoada, com várias vitórias internacionais na lista. A rede social X, foi e é a preferida destes mandatários. As campanhas de desinformação que brotam nessas plataformas, engrandecem os problemas, manipulando os sensibilizados cidadãos. Todo o dito e escrito é sempre simulando sinceridade e espontaneidade, mas é plástico, artificial, premeditado e organizado. Na terra sem lei, a banalidade dos discursos agressivos e ofensivos, sintoma da sociedade desigual e violenta, facilita as divisões sociais em benefício de interesses específicos.
Milei indicou que os artistas com financiamento público são parasitas. Ele escreveu na plataforma X: “Enquanto as pessoas morrem de fome em Formosa, o governador dessa província, Gildo Insfran, pagou 90 mil dólares a uma artista”. Numa entrevista acusou: “2/3 das crianças estão na pobreza, você vai gastar [dinheiro público] em shows?”. O novo mandatário argentino, segue as pegadas do brasileiro, desprezando a cultura e acusando-a de desviar o dinheiro de outras finalidades mais urgentes. Milei vai colocando o tema, de forma constante, com alvos específicos, como foi com a artista multifacética, Lali Esposito. Utilizando-se da maquinária do Estado, a atacou e no mesmo movimento, enviou um recado para o resto. O mundo artístico saiu em defesa da artista e de todos aqueles que estão sendo objeto de violência institucional.
Aqui reside um aspecto crucial: a cultura é resistência, criação, identidade e sensibilidade. Em momentos complexos, ela consegue forças internas de enorme potência e simbolismo. O produtor e representante artístico, Daniel Grinbank, foi direto, “o ataque à cultura é para desviar a atenção das políticas econômicas que estão sendo implementadas”. Mas, longe de ser distração, é também uma estratégia de redirecionamento da sintonia e dos objetivos do setor. Nesta dinâmica, ressignificar a cultura, especialmente para o público jovem, é fundamental.
No Brasil, o âmbito da cultura resistiu ao rolo compressor bolsonarista. Numa democracia em coma, o setor foi fundamental no processo de resistência e luta social. Atacar artistas popularmente conhecidos foi vital para colocar o tema de forma imediata e a nível nacional. Não se tratou de dissenso, divergências, foi ataque mesmo. Agressão, com a força das instituições, e abuso da potência do discurso presidencial que opera e influencia a sociedade de forma diferente que qualquer outro cidadão. No caso de Bolsonaro, existiu um gabinete do ódio, especialmente criado com o objetivo da perseguição e da difamação, operando contra todo aquele que rebatia ou se posicionava contra ações do seu governo.
Recordemos, no início do seu mandato, o ataque massivo ao ícone da cultura popular, o carnaval (e suas figuras). Uma estratégia de desprezo à cultura popular negra, alvo especial do governo. Foram vários os artistas que viraram alvo, entre outros: Caetano Veloso, Anitta, Wagner Moura, Paulo Coelho, Emicida, Daniela Mercury, Chico Buarque, Fernanda Montenegro, Lazaro Ramos. Cada um deles foi atacado ao se posicionar sobre assuntos da vida cotidiana do país, ou ao mostrar divergência no rumo desse governo. Temas que vão do meio ambiente, homofobia, Covid-19, passando pelo fomento à cultura, e o racismo. A arte nos indaga, cria horizontes. A resistência do setor cultural, nas suas diversas manifestações, esteve presente.
Se, por um lado, o ex-presidente atacou, pelo outro, abraçou a força de privilégios e dinheiro, como no caso dos cantores sertanejos, Gusttavo Lima, Zé Neto e Cristiano, Leonardo, a dupla Simone e Simaria. A dupla Mateus & Cristiano chegou a lançar um jingle para a campanha presidencial. Muitos deles tinham as portas do Planalto abertas. Aliás, Gusttavo Lima, Zezé Di Camargo, Chitãozinho, e outros mais, foram ao Palácio da Alvorada, residência presidencial, demostrar apoio a Bolsonaro, dias antes das eleições de 2022. Outros tiveram cargos em diversas instituições chaves na área, como Regina Duarte, Sergio Reis, e Mario Frias.
Neste sentido, é importante destacar que cooptar as instituições, redirecionar e selecionar os artistas aceitáveis são uma fase destes tipos de governos. Foi o que aconteceu com a música sertaneja, trilha sonora do governo Bolsonaro. Uma mão basta para contar quem não apoiava Bolsonaro, como Marilia Mendonça, Lauana Prado e Gabeu, que sofreram ataques. Muitos ficaram em silêncio ante a perseguição bolsonarista. Mas a grande parte dos músicos desse estilo se posicionou a favor de Bolsonaro, sendo sua maioria conservadores, principalmente quanto a costumes. O sertanejo foi se tornando a música do agro, das feiras agropecuárias, dos rodeios, com expressiva popularidade. O agro se tornou um dos principais financiadores de Bolsonaro, e o sertanejo moldou a estética do agro: homem branco, machista, conservador e chapéu country. O Brasil é um dos países mais musicais do mundo, uma diversidade única de ritmos e estilos. Mas o sertanejo se tornou a pauta hegemônica nas rádios e espaços de comunicação, existindo uma intenção de homogeneização da música e da estética, um movimento profundamente racista. Assim, o sertanejo demonstrou ser um mercado musical altamente controlado e vinculado às alas burguesas mais retrógradas do país.
Unidos pelo autoritarismo
Milei, desde o início do seu mandato, deixou claro quais são os seus objetivos para o setor, mesmo com a aparência de desordem e improvisação. Olhar a experiência brasileira facilita pensar formas de resistência e estratégias de luta. A constituição, tanto da Argentina como do Brasil, garante direitos e liberdades de criação, protege a identidade e pluralidade cultural, protege o patrimônio cultural e promove a cultura. Ambos os países são signatários de diferentes instrumentos internacionais que protegem os direitos culturais.
Os passos de Milei não são inovações nem coincidências, mas são parte de um roteiro internacional da extrema direita. Não se pode pensar a transformação e destruição do setor sem incorporar a variável internacional. Os vínculos de Milei com os Bolsonaro não nasceram com sua chegada à presidência. Os vínculos, da vice-presidente Villarroel, com o partido Vox da Espanha, também não são recentes. Lembremos que em outubro de 2022, num evento do Vox, Milei gritava em Madri, diante de uma multidão “somos superiores produtivamente, somos superiores moralmente“. O ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, festejou como sua a vitória, declarando orgulhosamente que Milei vai tornar a Argentina grande novamente.
O processo de desmonte do setor, a perseguição aos artistas, a reorientação institucional e orçamentária para beneficiar aqueles que dançam ao ritmo de Milei, são parte do presente e do horizonte. Mas não se trata apenas de um setor, mas do estilo de democracia que queremos. Esse filme a gente já viu em outras latitudes e períodos. E Milei está pronto para produzir a versão argentina: monocromática e autoritária. A resistência, dos diferentes movimentos e setores da sociedade, é fundamental para evitar a destruição.
Andrés del Río é Doutor em Ciência Políticas IESP-UERJ e professor da Universidade Federal Fluminense – UFF. Coordenador do NEEIPP/UFF.