Ministro da Defesa, Moshe Dayan, admitiu ocupação da Palestina
Em 1971, durante sua visita a Israel, Herbert Marcuse participou de uma conversa confidencial na qual o então Ministro da Defesa, Moshe Dayan, admitiu que Israel estabeleceu seu Estado em territórios árabes
A análise de Herbert Marcuse sobre Israel e a Palestina durante sua estadia em Israel, em dezembro de 1971, é intrigante e oferece uma perspectiva singular sobre as complexidades políticas daquele período. Marcuse, judeu, filósofo renomado e membro proeminente da Escola de Frankfurt, expressou suas conclusões em um artigo publicado em no jornal israelense The Jerusalem Post e traduzido para o hebraico no Haaretz. O título sugestivo, “Israel é forte o suficiente para ceder“, indica uma abordagem crítica ao conflito.
Durante sua estadia em Israel, ao receber convites para proferir conferências na Universidade Hebraica de Jerusalém, Herbert Marcuse empreendeu a busca por uma compreensão mais profunda das intrincadas dinâmicas políticas e sociais do Oriente Médio. Nesse contexto, ele participou de encontros com diversas personalidades influentes. Entre os notáveis com quem se reuniu estavam Moshe Sneh, político israelense, comandante da Haganah (principal organização paramilitar sionista que operava para o Yishuv no mandato britânico na Palestina) cuja experiência e perspectiva forneceram a Marcuse uma visão aprofundada da política interna de Israel.
Além disso, Marcuse teve encontros com Amos Oz, proeminente escritor e intelectual israelense, cujas obras muitas vezes abordavam as tensões e dilemas da sociedade israelense. A troca de ideias com Oz não apenas enriqueceu o diálogo cultural, mas também proporcionou a Marcuse insights valiosos sobre as complexidades da identidade israelense.
Outro encontro significativo foi com Eliezer Be’eri, uma figura destacada na esfera política israelense, conhecido por suas contribuições para o desenvolvimento socioeconômico do país.
Marcuse ampliou ainda mais sua compreensão ao se encontrar com Moshe Dayan, que, à época, desempenhava o papel de ministro da Defesa israelense. Dayan, uma figura-chave nas operações militares de Israel, líder na frente de Jerusalém durante a Guerra Árabe-Israelense de 1948 e posteriormente Chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel de 1953 a 1958 durante a Crise de Suez de 1956, destacou-se, especialmente, durante a Guerra dos Seis Dias em 1967, tornando-se um ícone representativo da luta global do recém-estabelecido Estado de Israel. Durante esse encontro, Dayan compartilhou sua visão sobre as questões de segurança e geopolítica na região, proporcionando a Marcuse uma compreensão mais profunda das dinâmicas conflituosas que moldavam o cenário político do Oriente Médio.
Além de suas interações em solo israelense, Marcuse também se envolveu em diálogos com dignitários palestinos na Cisjordânia. Durante sua estadia, ele foi convidado a visitar a casa da escritora e jornalista palestina Raymonda Hawa-Tawil, mãe de Souha, que mais tarde se tornaria esposa de Yasser Arafat (líder da Autoridade Palestiniana, presidente da Organização para a Libertação da Palestina, líder da Fatah e codetentor do Nobel da Paz). Além disso, Marcuse teve reuniões com o prefeito de Nablus, Hamdi Kanaan. Essa opção de Marcuse em se reunir tanto com líderes israelenses quanto palestinos, reflete seu compromisso com a compreensão dos desafios enfrentados pela região naquela época.
Marcuse e Dayan
O conteúdo da reunião entre Herbert Marcuse e Moshe Dayan, conforme detalhado por Zvi Tauber, professor de filosofia da Universidade de Tel Aviv, no artigo “Herbert Marcuse on the Arab-Israeli Conflict: His Conversation with Moshe Dayan” (2012), e minuciosamente registrado em um protocolo recentemente divulgado pelo Israel Defense Forces and Defense Establishment Archive evidencia a franqueza de Dayan ao admitir que Israel estabeleceu seu Estado em territórios historicamente habitados por populações árabes. Esses encontros, ocorridos no Ministério da Defesa, em 29 de dezembro de 1971, proporcionaram a Marcuse a oportunidade de dialogar com o principal político israelense da época.
A reunião, que até então não havia sido destacada nas análises sobre a visita de Marcuse a Israel, foi organizada por Yehuda Elkana, diretor do Instituto Cohn de História e Filosofia da Ciência e Ideias da Universidade de Tel Aviv. A conversa foi taquigrafada e documentada, mas surpreendentemente, não teve divulgação na época, nem pelos participantes, nem nos registros autobiográficos de Dayan.
O protocolo revela que, além de Dayan e Marcuse, outros participantes estavam presentes, incluindo Shlomo Gazit, chefe do Departamento do Governo Militar. A dinâmica da reunião mostrou Dayan como o principal orador, respondendo às perguntas de Marcuse em um formato de palestra. Gazit interveio algumas vezes, enquanto outros participantes permaneceram em silêncio.
A ausência de menções posteriores sobre esse encontro, tanto nas obras de Dayan quanto nas análises sobre Marcuse, adiciona uma camada de mistério à sua natureza e importância. A revelação do encontro oferece insights valiosos sobre a perspectiva franca de Dayan em relação à fundação de Israel e sua ocupação de territórios árabes. Essa descoberta também destaca a necessidade contínua de explorar e entender eventos históricos menos conhecidos para uma compreensão abrangente do conflito no Oriente Médio.
“Tomamos deles uma terra árabe e a tornamos judaica”
Em um trecho revelador, Dayan aponta para o mapa do Oriente Médio, enfatizando: “Viemos aqui, e (a) cortamos as duas partes do mundo árabe uma da outra; e (b) tomamos deles uma terra árabe e a tornamos judaica”. Essa admissão explícita surpreende Marcuse, que observa: “Você admite isso? Você é o primeiro israelense que encontro aqui no país que admite isso”. A resposta de Dayan é direta: “Claro que eu admito. É um fato”.
Essa revelação desafia a narrativa oficial sionista da época, reconhecendo a fundação do Estado de Israel em território árabe. Marcuse, por sua vez, expressa suas preocupações sobre as implicações dessa fundação, destacando que a criação do Estado de Israel pode ser vista como uma injustiça, pois foi estabelecida em terra estrangeira sem considerar adequadamente os problemas da população local. É importante frisar que só no conflito de 1948, cerca de 750 mil palestinos foram deslocados de suas terras.
Além disso, durante a conversa, uma série de pontos cruciais sobre a situação no Oriente Médio foram abordados. Dayan, expressando uma postura firme, afirmou que Jerusalém permaneceria judaica, rejeitando a possibilidade de retirada para as fronteiras de 1967. Ele enfatizou que o país permaneceria judeu, e os desenraizados não retornariam a Israel. Além disso, Dayan declarou que capturaram Jerusalém e tomaram a terra, mas não aniquilaram os habitantes, e é compreensível que desejem voltar.
Quando Marcuse questionou se a ação de Dayan trouxe o nacionalismo árabe para a região, Dayan admitiu que sim, considerando isso um fato. No entanto, ele acreditava que tal mudança de motivação entre os árabes era a chave para a solução, não apenas uma discussão sobre fronteiras. Sobre a retirada, Dayan afirmou que não se retirariam de Sharm el-Sheikh [atual Egito], mas estariam abertos a discutir um acordo temporário para a presença nessa região.
Sobre a iniciativa de paz, Dayan considerou que seria oportuno, mas questionou sobre o que poderiam oferecer que não comprometesse sua posição. Ele expressou preocupação com a possibilidade de uma mudança no equilíbrio militar caso ocorresse uma retirada total ou para as linhas/fronteiras de 1967, indicando que isso poderia ser mais perigoso para Israel.
A conversa também abordou as ações do presidente egípcio, Nasser, em 1967, com Dayan considerando-o intoxicado por suas capacidades militares e esperançoso de encerrar rapidamente o conflito. Em relação ao futuro, Dayan expressou incerteza quanto à capacidade do então presidente egípcio Anwar Sadat de destruir Israel, mesmo dentro das linhas de 1967.
O ponto crucial dessa conversa revelou-se na recusa firme de Israel em realizar uma retirada completa, especialmente do Sinai, uma região estrategicamente significativa. Dayan, fundamentou essa posição com base em uma profunda preocupação com a segurança nacional de Israel. Sua argumentação destacou que uma retirada total poderia ser interpretada pelos países árabes como uma fragilidade estratégica, potencialmente incentivando a crença de que Israel poderia ser destruído.
O Ministro enfatizou que, na perspectiva israelense, a aceitação da existência do país dentro das fronteiras anteriores a 1967 estava intrinsecamente ligada à percepção dos árabes sobre a invulnerabilidade de Israel. Para ele, enquanto persistisse a ideia de que Israel era vulnerável ou suscetível a ameaças destrutivas, qualquer concessão territorial significativa seria vista como uma fraqueza estratégica.
Além de questões militares, parte fascinante dessa discussão girou em torno da visão de filósofo alemão sobre a possibilidade de um estado palestino coexistir ao lado de Israel. Marcuse, conhecido por sua perspectiva crítica e seu compromisso com a justiça social, advogou pela criação de um estado palestino independente ou, alternativamente, por uma federação que incluísse Israel ou a Jordânia. Essa proposta de coexistência e compartilhamento de territórios buscava, de acordo com Marcuse, atender às aspirações nacionais legítimas do povo palestino.
No entanto, o Ministro israelense, demonstrou ceticismo em relação a essa proposta. Seu ceticismo pode ser interpretado à luz das complexas dinâmicas políticas e de segurança que caracterizavam a região naquele período.
O contraste entre a visão de Marcuse e a postura cética de Dayan destaca as divergências fundamentais que permeavam as discussões sobre o conflito israelense-palestino. Enquanto Marcuse buscava soluções que abordassem as aspirações de ambas as partes de maneira justa, Dayan, imerso nas realidades políticas e de segurança da região e no interesse israelense, pode ter percebido obstáculos práticos que tornavam essa proposta difícil de ser implementada.
Essa divergência de perspectivas sobre a criação de um estado palestino ao lado de Israel ilustra a complexidade intrínseca das negociações na época e destaca como diferentes atores viam as soluções para a questão palestina de maneiras diversas e, por vezes, conflitantes. Essas discussões ecoam até os dias de hoje, influenciando os debates contemporâneos sobre a busca por uma paz duradoura no Oriente Médio.
“Sou um filósofo, não um político”
A conversa entre Marcuse e Dayan evidenciou as preocupações do filósofo com uma iminente guerra entre Israel e países árabes. Marcuse, enfatizando sua identidade como filósofo, expressou temores sobre a motivação árabe para o conflito. Essas apreensões foram menosprezadas por Dayan, que subestimou a possibilidade de uma guerra.
A afirmação de Marcuse, “Sou um filósofo, não um político”, foi publicada no jornal Haaretz. O desenrolar da história confirmou as preocupações de Marcuse, com a Guerra do Yom Kipur em 1973, mostrando que suas análises eram pertinentes.
O genocídio atual
A previsão do filósofo sobre a possibilidade de uma nova guerra, juntamente com a menção à eventual realização de acordos parciais, ganha uma ressonância profunda quando consideramos o contexto do conflito atual que eclodiu em 7 de outubro de 2023 (com um ataque do Hamas e a posterior declaração de guerra por Israel) e agora se aproxima dos 100 dias de duração. Marcuse antecipou dinâmicas que, de certa forma, ecoam nos eventos contemporâneos. O conflito já dura 76 anos.
As ações recentes de Israel na guerra, anunciando uma nova fase e retirando algumas forças do norte de Gaza, reforçam a complexidade da situação. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, afirmou que “Israel não será dissuadido pela Corte Internacional de Justiça de prosseguir com sua ofensiva em Gaza até alcançar a vitória total”. Esse posicionamento ocorre em meio a um processo apresentado pela África do Sul, com apoio de mais de 70 países, alegando genocídio dos palestinos ao Tribunal de Haia.
O porta-voz do Ministério da Saúde de Gaza, Ashraf Al-Qidra, informou que os ataques israelenses resultaram na perda de vidas de 24 mil palestinos desde o início do conflito, com a maioria sendo civis. Simultaneamente, Israel alega ter neutralizado pelo menos 8 mil soldados do Hamas (Movimento de Resistência Islâmica) em Gaza. Na Cisjordânia, território sob ocupação, a violência já estava em ascensão antes do ataque de 7 de outubro, e sua intensificação tem sido observada desde então.
Embora a conversa entre Marcuse e Moshe Dayan tenha ocorrido há décadas, suas ramificações e análises ainda são relevantes para a compreensão das tensões no Oriente Médio. Marcuse trouxe uma perspectiva única como filósofo, enquanto Dayan representava a visão política e estratégica de Israel naquela época tumultuada. Essa troca de ideias oferece uma visão valiosa do pensamento político e das complexidades do conflito entre Israel e a Palestina.
Bruno Fabricio Alcebino da Silva é bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC. Pesquisador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).
Referências bibliográficas
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ISRAEL. Israel Defense Forces and Defense Establishment Archives. Protocol of the Conversation between the Philosopher Herbert Marcuse and Israel’s Minister of Defense, Moshe Dayan, December 29, 1971. In: Telos, Spring 2012, pp. 185-191. Translated from Hebrew.
MARCUSE, Herbert. Israel is Strong Enough to Concede. The Jerusalem Post, January 2, 1972. In: MARCUSE, Herbert. The New Left and the 1960s: Collected Papers of Herbert Marcuse, vol. 3, edited by Douglas Kellner. New York: Routledge, 2005. pp. 54–56.
MARCUSE, Herbert. My Opinions on the Arab-Israeli Conflict: Israel Must Accept the Existence of a Palestinian State. Haaretz, January 2, 1972 (in Hebrew).
TAUBER, Zvi. Herbert Marcuse on the Arab-Israeli Conflict: His Conversation with Moshe Dayan. Telos, 2012, no. 158, 171–184. doi:10.3817/0312158171.
Parabéns, artigo excelente!