Mistérios e o poder da frota pesqueira chinesa
Ninguém sabe exatamente quantos navios tem a frota pesqueira chinesa. Mas não há dúvida de que essa armada, que cruza todo o planeta, é maior do que qualquer outra, tanto em termos de porte quanto de raio de ação. Para o governo chinês, ela tem um papel crucial, seja alimentando seu povo, seja posicionando suas peças no tabuleiro geopolítico
Para quem navega em alto-mar, o poder e o destemor da frota pesqueira chinesa são incontestáveis. Em 2019, quando passamos uma semana a bordo de uma unidade da polícia marítima da Gâmbia patrulhando mais de 150 quilômetros de costa, assistimos à inspeção de quinze embarcações estrangeiras acusadas de violações do direito trabalhista e pesca ilegal. Apenas uma não era chinesa. Nesse mesmo ano, um pouco antes, passamos um mês a bordo de um espinheleiro que zarpou do porto chileno de Punta Arenas para a pesca da merluza-negra no Oceano Glacial Antártico, e em nossa rota não cruzamos com praticamente nada além de navios cerqueiros1 chineses, uma dúzia deles, todos em péssimo estado de conservação.
Em agosto de 2020, mais de 340 navios pesqueiros chineses foram avistados nos arredores da reserva marinha das Ilhas Galápagos, pertencente ao Equador, cuja fauna excepcional é considerada patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).22 A maioria deles havia sido fretada por armadores envolvidos em atividades de pesca ilegal, como revelou o Center for Advanced Defense Studies (C4ADS, Centro de Estudos de Defesa Avançados).3 No verão de 2017, uma flotilha chinesa quase tão grande como essa já havia sido vista rondando o santuário da vida marinha. Um barco foi apreendido com quase 300 toneladas de pesca ilegal a bordo, incluindo espécies ameaçadas de extinção, como o tubarão-martelo-entalhado.
Péssimo encontro
A recente descoberta de oitocentos arrastões chineses presentes ilegalmente nas águas norte-coreanas pode explicar o desaparecimento de mais de 70% das lulas que outrora eram ali abundantes.4 Com sua armada de navios industriais avançando sobre essas águas proibidas, a China não apenas exauriu os recursos pesqueiros, mas também expulsou sem cerimônia os pequenos barcos norte-coreanos que ali navegavam. Essa presença naval, antes invisível, foi detectada pelo site Global Fishing Watch com o uso de uma nova tecnologia de satélite. Questionado sobre essa revelação pelo canal NBC, o ministro das Relações Exteriores chinês não confirmou nem negou. Ele apenas se contentou em responder que seu país “respeita conscienciosamente” as resoluções do Conselho de Segurança da ONU, que proíbem a pesca estrangeira em águas norte-coreanas, e é “implacável” na punição de práticas ilegais.
Encorajados por sua própria quantidade e pelos agentes de segurança armados que muitas vezes viajam ao seu lado, os navios chineses costumam ser agressivos com os concorrentes ou com qualquer embarcação considerada ameaçadora. Tivemos a oportunidade de observar isso em maio de 2019, quando, interessados em verificar pessoalmente sua presença ilegal no Mar do Japão, embarcamos, mediante pagamento, em um barco sul-coreano de pesca de lula. O capitão era um homenzinho magro, de seus 70 anos, olhos fundos e pele enrugada. Na manhã da partida, todos os tripulantes contratados para a ocasião desertaram: eles explicaram que não queriam se envolver em uma reportagem sobre a Coreia do Norte nem chegar perto demais dos pescadores chineses. O capitão declarou-se pronto a continuar a expedição com o auxílio de seu imediato, desde que aceitássemos condições um pouco mais caóticas e menos confortáveis que o normal e que eu estivesse disponível para ajudá-lo quando ele pedisse.
Ele não mentiu sobre as condições da viagem. Nossa embarcação – um barco de madeira com cerca de 20 metros de comprimento – não pôde ser limpo depois da última viagem. Um forte odor de isca podre pairava no convés, que escorregava feito gelo por causa dos resíduos da pesca anterior, e as instalações reservadas à tripulação estavam cheias de lixo. Para piorar, o motor nos deixou na mão quando estávamos a centenas de quilômetros da costa, e foi somente após duas horas de um suspense agonizante que conseguimos retomar a rota.
Na primeira noite, logo após o anoitecer, o radar alertou sobre a proximidade de um barco. Acelerando, conseguimos alcançar o que se revelou ser não um, mas duas dúzias de navios que seguiam em fila rumo às águas territoriais da Coreia do Norte, desprezando as resoluções da ONU. Todos hasteavam a bandeira chinesa, e todos estavam com o transponder desligado, ao contrário do que exigem as regulamentações sul-coreanas.
Após cerca de 45 minutos de observação, ao longo dos quais fizemos vídeos e gravamos os números de identificação dos barcos, decidimos mandar um drone sobrevoá-los para darmos uma olhada mais de perto. A reação chinesa não se fez esperar. Um dos capitães soou a sirene de neblina e piscou as luzes de navegação, desviando repentinamente seu curso em nossa direção. Mantivemos o curso, e ele continuava se aproximando. Finalmente, quando estava a menos de 10 metros, nosso capitão virou apressadamente para evitar a colisão.
Foi o suficiente para o velho capitão. Considerando que era perigoso demais continuar por ali, ele deu meia-volta e rumou para o porto. Durante as oito horas de trajeto, ele pareceu agitado e manteve-se surpreendentemente silencioso, apenas sussurrando de vez em quando: “Eles não estão brincando…”. Enquanto isso, os pescadores chineses mantiveram organizadamente sua jornada rumo às águas norte-coreanas.
Oferecendo amplos subsídios à pesca, a China colaborou para a formação de uma monumental e poderosa frota, hábil em aproveitar a fragilidade das regulamentações para se desenvolver fora de qualquer controle. Mas também insuflou em seus marinheiros uma ambição, uma vontade e uma ousadia que poucos Estados – e ainda menos seus capitães pesqueiros – ousam ou conseguem desafiar.
E qual é a razão disso? A China está interessada em posicionar suas peças no tabuleiro mundial e garantir sua segurança alimentar. Na África ocidental e na Península Arábica, ela conseguiu ocupar o lugar vago deixado pela Marinha dos Estados Unidos, intensificando suas atividades pesqueiras. Paralelamente, no Mar da China Meridional e ao longo da Passagem do Nordeste, ela reivindica sua soberania sobre corredores de navegação muito valorizados, bem como sobre campos submarinos de petróleo e gás. “Com uma frota tão gigantesca e agressiva, a China está claramente no comando”, comenta Greg Poling, diretor da Asia Maritime Transparency Initiative (Iniciativa de Transparência Marítima da Ásia), que integra o Center for Strategic and International Studies (Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais), em Washington. E, acrescenta o pesquisador, ela intimida: raros são os países que ousam retaliar quando os navios chineses invadem suas águas territoriais.
A China precisa alimentar 1,4 bilhão de pessoas. Com a redução dos estoques de peixes em sua costa, por causa da pesca predatória e da industrialização, seus navios são forçados a aventurar-se cada vez mais longe para encher as redes. Segundo um relatório recente do Stimson Center, think tank norte-americano que trabalha com questões de segurança, os cerca de 2.600 navios de pesca de grande escala em alto-mar relatados pela China5 representam o triplo da frota combinada dos quatro países classificados logo atrás dela: Taiwan, Japão, Coreia do Sul e Espanha. E essa é uma estimativa baixa: em um relatório de junho de 2020, o Overseas Development Institute, do Reino Unido, calculou a frota de alto-mar da China em 16.966 embarcações (contra treze, em meados da década de 1980). Uma potência que, segundo Poling, deve tudo às subvenções: “Sem essa fonte de recursos, não apenas a frota seria infinitamente mais modesta, como também não poderia estar presente no Mar da China Meridional”.
Por e-mail, a professora da Universidade de Washington e especialista em políticas de pesca chinesas Tabitha Grace Mallory nos deu detalhes sobre os sistemas de ajuda que há duas décadas funcionam na China. Em 2018, as subvenções oferecidas por esse sistema foram da ordem de US$ 7,2 bilhões, ao passo que o montante total estimado no mundo foi de US$ 35,4 bilhões. Segundo Mallory, esses recursos têm um efeito globalmente “nocivo”, pois ajudam a expandir, e não a reduzir, a frota, inclusive por meio de auxílio para a compra de combustível e a entrada em serviço de embarcações adicionais. Apenas uma pequena parte desses fundos é destinada ao desmantelamento de barcos que chegaram ao fim de sua vida útil.
Espécies ameaçadas
Os subsídios chineses também ajudam a renovar motores e a adquirir cascos de aço mais duráveis para os barcos de arrastão. Eles ainda cobrem parte dos custos ocasionados pela mobilização, nos locais de pesca, de agentes de segurança armados e de embarcações médicas, para que os capitães possam permanecer mais tempo no mar. Por fim, os marinheiros chineses podem contar com dados fornecidos pelo governo para localizar as áreas mais piscosas.
Para o pesquisador Daniel Pauly, diretor do projeto Sea Around Us, do Institute for the Oceans and Fisheries (Instituto para os Oceanos e a Pesca), da Universidade British Columbia, o apoio público “tem um papel crucial no esgotamento dos recursos pesqueiros, pois permite manter em operação navios que deveriam ser sucateados”. A opinião é compartilhada por muitos especialistas: enquanto a sobrepesca for possibilitada pela ajuda financeira, o objetivo da pesca sustentável continuará fora de alcance. Entre os estoques de peixes comercializados que são monitorados pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), 90% sofrem sobrepesca, ou até já se esgotaram – ou seja, não têm mais capacidade de se reconstituir. É isso que ocorre com as dez espécies mais consumidas no mundo.
A China está longe de ser o único país que oferece subsídios milionários à sua frota pesqueira. Mais de 50% das atividades de pesca do mundo não seriam lucrativas em sua escala atual sem o apoio estatal que recebem.6 Quando se trata de pesca em alto-mar – áreas oceânicas que não estão sob jurisdição de nenhum Estado –, o Japão é o mais pródigo, oferecendo US$ 841 milhões em subsídios, o equivalente a cerca de 20% do total mundial. A Espanha responde por 14% dos subsídios à pesca em alto-mar distribuídos em todo o mundo, seguida pela China (10%), pela Coreia do Sul e pelos Estados Unidos.
Em termos de número de navios ativos, porém, a China está muito à frente de todos os outros países. Em 2014, ela poderia orgulhar-se de ter feito mais de 35% das capturas mundiais declaradas em alto-mar. A título de comparação, Taiwan, com 593 navios, representou cerca de 12% dessas capturas, e o Japão, com 478 navios, menos de 5%.
Peixes selvagens como ração
Além de esvaziarem progressivamente os oceanos de seus peixes, todos esses subsídios fazem que haja simplesmente barcos demais no mar. Daí decorre uma sobrecapacidade de pesca e uma concorrência pouco saudável entre as frotas nacionais, gerando disputas territoriais. Isso exacerba a pesca ilegal, pois os capitães procuram desesperadamente novas áreas de pesca menos frequentadas. Peter Thomson, enviado especial para os oceanos do secretário-geral das Nações Unidas, usa uma comparação perturbadora para descrever a situação: “É um pouco como pagar ladrões para roubarem a casa do seu vizinho”.
Segundo um índice criado em 2019 pela Poseidon Aquatic Resource Management Ltd – uma empresa de consultoria britânica especializada em pesca e aquicultura –, a China tem as piores pontuações do mundo em pesca ilegal, não declarada e não regulamentada. Mas o país começa a dar alguns passos tímidos na direção certa, embora ambientalistas e especialistas continuem céticos.
Nos últimos anos, diante da pressão dos defensores dos oceanos e de governos estrangeiros, a China decidiu controlar mais de perto sua frota. Em 2016, foi promulgado um plano quinquenal para limitar a 3 mil o número de navios de pesca de grande escala em alto-mar até 2021. No entanto, na ausência de dados governamentais confiáveis sobre o número de barcos em atividade, é difícil avaliar o cumprimento desse objetivo. Em junho de 2020, as autoridades chinesas anunciaram ter proibido a seus navios a captura de lulas em certas águas territoriais da América do Sul entre julho e novembro, com o objetivo de permitir a recuperação das populações. Foi a primeira vez que a China cancelou uma temporada de pesca por iniciativa própria. “Acho que o governo chinês realmente pretende reduzir sua frota pesqueira de pesca de grande escala em alto-mar”, afirma Pauly. “Quanto a saber se ele tem o poder de fazer cumprir suas decisões, é outra história. Duvido que a China tenha mais autoridade sobre seus navios em alto-mar do que os países ocidentais têm sobre os seus.”
Outro campo de ação: os peixes de viveiro. Com uma classe média em rápida expansão, a demanda chinesa por frutos do mar está explodindo. Para reduzir a dependência em relação à captura de peixes selvagens, entre 2015 e 2019 a China concedeu mais de US$ 250 milhões em subsídios ao setor de aquicultura. Mas a medida coloca um problema: para engordar seus estoques, a maioria das fazendas utiliza farinha de peixe, uma mistura rica em proteínas feita essencialmente à base de peixes selvagens capturados em águas estrangeiras ou internacionais. E eles a consomem em enormes quantidades: antes de chegar ao consumidor, um atum de viveiro pode ter comido mais de quinze vezes seu peso em farinha de peixe. As associações de proteção dos oceanos já soaram o alarme. O grande consumo de farinha de peixe acelera o esgotamento dos recursos pesqueiros e só pode aprofundar o problema da pesca ilegal e desestabilizar as cadeias alimentares marinhas, privando as populações dos países pobres de uma fonte de proteína indispensável para sua subsistência. “Capturar todos esses peixes selvagens para atender à crescente demanda por peixes de viveiro é um absurdo”, argumenta o ex-professor Enric Sala, que se tornou explorador da National Geographic Society. “Essas capturas poderiam ser utilizadas para alimentar diretamente as populações, com um impacto muito menos devastador para a fauna submarina.”
O destino do krill, o alimento básico das baleias, também preocupa os ambientalistas. Em 2015, as autoridades chinesas anunciaram a intenção de aumentar sua captura de krill no Oceano Glacial Antártico de 32 mil toneladas para 2 milhões de toneladas, para garantir seu abastecimento de farinha e óleo de peixe. Mas assumiram o compromisso de não tocar nas áreas “ambientalmente sensíveis”.
“Milícias civis”
A superpopulação naval não apenas degrada o ambiente por meio da sobrepesca e do esgotamento dos estoques, mas também é acompanhada por uma intensificação das rivalidades em torno dos locais de pesca, levando a tensões diplomáticas e até a confrontos violentos. Em 2016, a guarda costeira sul-coreana abriu fogo contra dois barcos chineses que ameaçavam atingir seus navios de patrulha no Mar Amarelo – a mesma região onde, um mês antes, um barco a motor sul-coreano havia afundado por causa de um ataque semelhante. Nesse ano, a Argentina também afundou um navio chinês acusado de pescar ilegalmente em suas águas territoriais. Outros países, como a Indonésia, a África do Sul e as Filipinas, passaram por confrontos semelhantes, geralmente com barcos de pesca de lula – espécie que representa mais da metade das capturas da frota chinesa em alto-mar.
Entre os inúmeros navios chineses que singram os oceanos, há alguns que não estão ali apenas para pescar, como explica Poling. Alguns formam “milícias civis” enviadas pelo governo às zonas de conflito marítimo para fins de vigilância, ou ainda, ocasionalmente, para intimidar e destruir barcos pesqueiros ou policiais estrangeiros. A China dispõe para isso de um programa específico de incentivos financeiros destinados a encorajar os pescadores a navegar no Mar da China Meridional a fim de fortalecer suas posições lá. Além dos benefícios de que gozam seus colegas de pesca offshore, eles recebem fundos suplementares para compensar o fato de que a área é relativamente pouco lucrativa.
Assim, há uma milícia de mais de duzentos barcos estacionada ao redor das Ilhas Spratly, região rica em peixes e, potencialmente, em petróleo e gás natural, disputada por quatro países: China, Filipinas, Vietnã e Taiwan. Segundo imagens de satélite, a frota chinesa passa ali a maior parte do tempo ancorada, em formação cerrada.
“Se não fossem pagos para isso, os pequenos pescadores [chineses] nunca pensariam em ir para lá”, afirma Poling. De todo modo, sua presença acelerou o declínio das populações de peixes em torno do arquipélago e causou muitas brigas com navios estrangeiros, dando à China um ótimo pretexto para militarizar a área.
*Ian Urbina, jornalista, dirige a plataforma The Outlaw Ocean Project, que investiga questões ambientais e direitos humanos no mar. Autor de La Jungle des océans: crimes impunis, esclavage, ultraviolence, pêche illégale [A selva dos oceanos: crimes sem punição, escravidão, ultraviolência, pesca ilegal], Payot, Paris, 2019.
1 São barcos que pescam com rede de cerco, que se arrasta sobre os fundos arenosos.
2 “Some 340 Chinese vessels fishing off Galapagos Islands protected waters” [Cerca de 340 embarcações chinesas pescam nas águas protegidas das Ilhas Galápagos], MercoPress, 10 ago. 2020.
3 “Strings attached: Exploring the onshore networks behind illegal, unreported and unregulated fishing” [No rastro do mar: explorando as redes onshore por trás da pesca ilegal, não declarada e não regulamentada], C4ADS, Washington, DC, 2019.
4 “The deadly secret of China’s invisible armada” [O segredo mortal da armada invisível da China], NBC News, 22 jul. 2020.
5 Embarcações de pesca em alto-mar, que atuam para além das 200 milhas náuticas que delimitam as zonas econômicas exclusivas.
6 Enric Sala et al., “The economics of fishing the high seas” [Economia da pesca em alto-mar], Science Advances, v.4, n.6, Washington, DC, jun. 2018.