Mitos e verdades da guerra cambial
Na última reunião do G20, a disputa entre as diversas moedas ficou evidente: Guido Mantega foi o primeiro a levantar a preocupação da valorização do real frente ao dólar e ao yuan. Em jogo, o crescimento econômico e a criação de empregos, que continuam dependendo de uma política mercantil protecionistaLaurent Jacque
A reunião de presidentes e chefes de governo dos países do G20 (que juntos representam 90% da economia mundial) ocorreu em Seul, nos dias 11 e 12 de novembro deste ano. O objetivo era reduzir os grandes desequilíbrios econômicos e lançar as bases de um crescimento “forte, duradouro e equilibrado”. O encontro permitiu, sobretudo, que os participantes exibissem suas garras, demonstrando, assim, a fragilidade do sistema monetário internacional.
O ministro da Economia, Guido Mantega, preocupado com a valorização do real em relação ao dólar estadunidense e ao yuan chinês, foi o primeiro a soar o alarme do que ele chamou “guerra cambial”, em setembro deste ano. A expressão foi retomada pouco tempo depois pelo diretor-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn: “Levo muito a sério a ameaça de uma guerra cambial, embora ainda seja algo latente”.
A expressão “choque” remete à Grande Depressão dos anos 1930, agudizada pelas desvalorizações competitivas das principais economias, arrasadas naquele momento. Desde então, o panorama monetário internacional mudou: os protagonistas se multiplicaram e as regras foram redefinidas. O que está em jogo, contudo, não se alterou: o crescimento econômico e a criação de empregos continuam dependendo de políticas mercantis facilitadas pela desvalorização da moeda nacional. A “lei de ferro” de outrora permanece vigente: um país com uma moeda fraca exporta mais facilmente seus produtos, pois eles custam menos.
Jogo de soma zero
A tensão aumenta no cenário monetário internacional, e soam os alarmes: intervenção massiva – sem sucesso – do Banco Central do Japão para enfraquecer o iene, em setembro deste ano; controle seletivo do câmbio sobre a entrada de capitais no Brasil e na Tailândia; voto massivo na Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, no final de setembro, a favor de uma lei que impõe tarifas alfandegárias aos países que desvalorizaram intencionalmente sua divisa (a China é o alvo direto); injeção massiva de liquidez na economia estadunidense pelo Banco Central, com queda da cotação do dólar etc. Cada protagonista deseja secretamente dispor de uma divisa fraca a fim de retomar seu crescimento econômico, mas trata-se de um jogo de soma zero: a desvalorização por parte de um dos jogadores leva a uma revalorização por parte dos outros. A “guerra cambial” já estourou?
De 1944 a 1971, os acordos de Bretton Woods estabeleceram as fundações de uma “nova ordem monetária” destinada a proteger o mundo das crises que o havia despedaçado no período entre guerras. O FMI apareceu no cenário global com a missão de orquestrar – em colaboração com os Bancos Centrais – o sistema monetário internacional. As taxas de câmbio foram ancoradas ao dólar, que por sua vez foi diretamente indexado ao ouro (na cotação de US$ 35 por onça). Qualquer variação de cerca de 1% de uma divisa em relação à sua paridade com o dólar ou com o ouro acionava a intervenção do Banco Central do país em questão. Com efeito, esta arquitetura apresentou alguns desvios: tratavam-se principalmente de desvalorizações – ajustes necessários no valor relativo das moedas para assegurar a perenidade desse sistema e reequilibrar as balanças de pagamentos.
A partir de 1958, os principais países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desmantelaram os controles de câmbio sobre operações comerciais (importações ou exportações de bens e serviços), sem com isso perder o controle sobre as movimentações de capitais. O crescimento sustentado transformou a paisagem econômica internacional, e o sistema monetário concebido para o pós-guerra se tornou obsoleto.
Em 1971, os Estados Unidos suspenderam unilateralmente a convertibilidade do dólar em ouro na cotação de US$ 35 por onça, oficializando, assim, a desvalorização da nota verde. Os principais países industrializados, por sua vez, deixaram que suas divisas “flutuassem” de acordo com a oferta e a demanda: o mercado de câmbios passou a determinar as cotações e substituiu os Bancos Centrais. Fala-se, contudo, em flutuação “suja”, pois os bancos intervêm massivamente para orientar as taxas de câmbio. O amortecimento progressivo dos controles cambiais conduziu os banqueiros centrais à renúncia de seu reino absoluto sobre as taxas de câmbio.
De qualquer forma, não há mais alternativa. As reservas cambiais, arma predileta dos banqueiros, representam atualmente apenas uma gota d’água no oceano do mercado de divisas, cujos fluxos diários ultrapassam US$ 4 trilhões, o que corresponde a praticamente cinco vezes o estoque acumulado de todas as reservas dos Bancos Centrais da zona do euro. Menos de 5% das transações diárias registradas na zona do euro são de operações comerciais, enquanto 95% são de movimento de capitais especulativos.
É praticamente impossível para um Banco Central, nessas condições, reverter alguma tendência (seja de alta ou de baixa). O máximo que pode fazer é acumular dólares massivamente e esperar que isso desacelere a valorização de sua divisa. É isso que se observa há bastante tempo na Ásia: antes, com o peso-pesado Japão (mais de US$ 1 trilhão em reservas cambiais), agora suplantado pela China (mais de US$ 2,5 trilhões), e seguido de perto por Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong, Cingapura e Malásia. Alguns países emergentes – os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), México, Tailândia, Indonésia e África do Sul – continuam restringindo as movimentações de capitais e conservam, assim, um mínimo de controle sobre suas taxas de câmbio. Tal controle, no entanto, torna-se cada vez menor à medida que avança a liberalização dos mercados.
A declaração de guerra – se é que de fato há uma guerra cambial – remonta à decisão da China, nos anos 1990, de ancorar sua divisa ao dólar. A medida reabsorveu o excedente comercial chinês e impediu a valorização do yuan. Na época, a economia chinesa galopava. Sua taxa recorde de crescimento anual (entre 10% e 12%) se beneficiou da explosão das exportações, por sua vez estimuladas pelos deslocamentos e operações de terceirização das multinacionais estadunidenses, japonesas e europeias. Em um movimento simétrico, o excedente comercial chinês aumentou à medida que diminuiu o déficit dos Estados Unidos, um fenômeno que se traduziu em acumulação crescente de dólares na China, amplamente investidos em títulos do Tesouro estadunidense.
Pequim, portanto, mantém artificialmente uma taxa de câmbio, que equilibra cada vez menos o lucro de suas exportações, com o custo de suas importações. Dito de outro modo, a China subsidia suas exportações impondo tarifas alfandegárias elevadas aos produtos estrangeiros. Esta prática já fez com que os Estados Unidos e a União Europeia solicitassem uma revalorização do yuan de 30% a 40%. O governo chinês retrucou que tal decisão condenaria uma grande quantidade de empresas à falência e provocaria desemprego e instabilidade social, problemas mais espinhosos a seus olhos que o descontentamento de seus parceiros comerciais. Mais recentemente, a China denunciou, por seu lado, a permissividade estadunidense em matérias fiscais e monetárias, acusando os Estados Unidos de estarem na origem dos desequilíbrios que sacodem a economia mundial.
Os parceiros comerciais da China poderiam adotar medidas de retaliação alfandegária contra Pequim: a guerra cambial se transformaria, assim, em guerra comercial. Este cenário não é improvável no contexto de uma retomada anêmica da economia, embora as políticas tradicionais de recuperação – tais como redução das taxas oficiais de juros acompanhada de déficits orçamentários – prevaleçam. A China, no entanto, tem mudado aos poucos sua política monetária e também realizado experiências com a internacionalização do yuan, ao permitir emissões de divisas chinesas no exterior de suas fronteiras. Eis um sinal precursor e auspicioso do desmantelamento progressivo do controle cambial que desejam os Estados Unidos: o yuan flutuará mais livremente e se valorizará gradualmente em relação ao dólar.
Entretanto, além desse primeiro eixo de um conflito já clássico entre a China e o mundo, um segundo – menos claro, embora bastante inquietante – se estabelece em função do aumento do poder de um exército incontrolável de especuladores: os “carry traders”.
Os presidentes dos Bancos Centrais dos países da OCDE, como vimos, perderam seu poder sobre as taxas de câmbio para essa legião incontrolável de gestores de fundos de pensão, bancos de negócios ou fundos especulativos, além da lendária sra. Watanabe – metáfora da dona de casa japonesa, frequentemente responsável pela gestão das economias familiares. Avançando sobre os mercados, esses “carry traders” saltam as barreiras artificiais das taxas de câmbio defendidas pelos Bancos Centrais. Para aproveitar as diferenças de rendimento entre os diferentes tipos de ativos, tomam empréstimos em uma divisa de rendimento muito baixo (a chamada divisa de “financiamento”) para investir em uma divisa de alto rendimento (a divisa chamada de “investimento”). No começo da década de 2000, quando as taxas de juros no Japão eram praticamente inexistentes, pessoas físicas como a famosa sra. Watanabe começaram a investir suas economias em títulos do tesouro britânico ou australiano, que ofereciam na época rendimentos de 5% a 8%. Rentável durante o período em que a taxa de câmbio permanecer estável, esse tipo de investimento se torna particularmente interessante quando o rendimento dos títulos do tesouro vem acompanhado da valorização da divisa alvo em relação à divisa fonte.
O “carry trade” reside atualmente nos países cujas taxas, em curto prazo, se tornaram quase inexistentes, como Estados Unidos, Reino Unido ou Zona do Euro. O alvo são países como Brasil, Turquia e África do Sul, que oferecem taxas de rendimento substanciais. Ao aproveitar as leis da especulação, o fenômeno se retroalimenta: valoriza a divisa alvo, ao mesmo tempo que leva a uma desvalorização da divisa fonte. Frente a esse maremoto que avança sobre os mercados de câmbio, os Bancos Centrais estão desarmados. O último episódio dessa guerra perdida de antemão foi em setembro deste ano, quando uma intervenção do Banco do Japão injetou US$ 24 bilhões na economia em algumas horas para tentar desvalorizar o iene. A manobra não deu resultado.
Imprimindo dinheiro
Os países emergentes visados pelos “carry traders” – preocupados com a sobrevalorização de suas moedas – utilizam o controle cambial para tentar amenizar a desvantagem competitiva que uma divisa muito onerosa inflige a suas indústrias. Os Estados Unidos e o Reino Unido rodaram suas máquinas de papel-moeda (velho truque trazido à ordem do dia com o nome barroco de “quantitative easing” ou flexibilização quantitativa) para remediar seus déficits orçamentário e comercial. Os países da Zona do Euro, por sua vez, esperam: atrelaram seus vagões à locomotiva alemã e submeteram suas economias a um euro cuja valorização é proporcional à obsessão do Banco Central Europeu (BCE) pela ameaça de inflação. O cenário torna-se mais complexo à medida que, por outra parte, os países periféricos da União Europeia (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia, Espanha) precisam de um enfraquecimento do euro para restabelecer sua competitividade. Enquanto espera que o espectro de uma guerra cambial se atenue, cada país emprega, sem se preocupar com os demais, as poucas armas de que ainda dispõe.
Laurent Jacque é professor da The Fletcher School fo Law and Diplomacy (Tufts University).