Moscou entra na decisiva batalha por Alepo
O envolvimento militar direto na Síria permitiu a Putin alcançar um sucesso inesperado. Mais capaz que os Estados Unidos de fazer os jihadistas recuarem, a Rússia se impôs no Oriente Médio como um ator determinante, ditando a ordem do dia. Por outro lado, a iniciativa de intervir na Batalha de AlepoJacques Lévesque
O principal objetivo da intervenção russa em setembro de 2015 foi rapidamente atingido: impedir uma derrota militar do regime sírio, que vinha perdendo terreno havia meses.1 A implicação de forças aéreas russas também tornou impossível a interdição de sobrevoo no território sírio. Em 2013, a diplomacia russa já havia evitado qualquer pretexto para uma intervenção ocidental ao conseguir que o presidente Bashar al-Assad renunciasse ao uso de armas químicas.2
Os outros objetivos revelados por Putin em seu discurso nas Nações Unidas, em 28 de setembro de 2015, eram muito maiores e mais ambiciosos. Foram formulados como um desafio aos Estados e seus aliados ocidentais, e visavam a colocá-los na defensiva. Mas o momento escolhido foi oportuno: era o ápice do fluxo de refugiados sírios para a Europa e dos atentados organizados desde a Síria pela Organização do Estado Islâmico (OEI).
Putin sustentava que apenas as forças do regime de Al-Assad e os curdos “enfrentavam corajosamente o terrorismo” e que, como estavam alinhadas às demandas do governo sírio, suas ações estavam no escopo do direito internacional, diferentemente dos bombardeios ocidentais. Além disso, Putin defendia que a zona de exclusão aérea posta em prática na Líbia e o apoio aos rebeldes tinham conduzido não apenas à eliminação do regime de Muamar Kadafi, mas também à destruição de todo o aparelho estatal, criando um terreno favorável à implantação da OEI. Em sua argumentação, dada a importância estratégica da Síria, os efeitos seriam os mesmos com a eventual derrota do regime no poder. Putin também evocava a grande coalizão que havia reunido a URSS, os Estados Unidos e o Reino Unido a partir de junho de 1941 para fazer frente à ameaça hitleriana. Advogava a favor de uma aliança similar para combater o perigo da OEI, que buscava “dominar o mundo islâmico”, sublinhando: “Os integrantes da chamada ‘oposição síria moderada’, apoiada pelo Ocidente, acabam de engrossar a ala dos radicais”. Em resumo, a mensagem que passava aos seus interlocutores ocidentais era a seguinte: entre dois males, é preciso saber escolher o menor. Propôs promoverem juntos a ideia de um cessar-fogo entre todas as forças combatentes na Síria, à exceção da OEI, e, em paralelo, buscarem coletivamente uma solução política. Os dirigentes ocidentais tinham pactuado havia tempos que a saída de Al-Assad do poder era uma premissa indispensável para qualquer resolução do conflito. É de espantar? A primeira dirigente europeia a romper essa premissa foi Angela Merkel. Em 23 de setembro de 2015, a chanceler alemã afirmou: “É preciso falar de diversos atores, e isso implica Al-Assad”.3 Rapidamente foi seguida pelo britânico David Cameron e, enfim, por Barack Obama. Mas foi preciso esperar até 13 de novembro de 2015, em Paris, para que o ministro francês das Relações Exteriores abandonasse essa condição: “Uma Síria unida implica uma transição política. Isso não quer dizer que Bashar al-Assad deva sair antes dessa transição, mas são necessárias algumas seguranças para o futuro”.4
Desde o início, contudo, Washington e outros defendiam que as forças aéreas russas não atingiam muito as bases da OEI, e sim as das outras formações rebeldes. O primeiro objetivo de Moscou era fortalecer as posições do regime, ameaçadas por outros além da OEI. Podia-se pensar, entretanto, que se tratava de colocá-lo em melhor posição política com vistas a negociações futuras. Para dar garantias aos parceiros ocidentais e seus aliados, a Rússia aderiu, no dia 18 de dezembro de 2015, à resolução do Conselho de Segurança da ONU, proposta pelos Estados Unidos, que exigia uma solução política e a “formação de um governo de transição dotado de plenos poderes”. Sobre essas bases foi estabelecida a difícil, se não impossível, cooperação internacional, e essa resolução foi evidentemente mal recebida pelo governo Al-Assad. Ao insistir na necessidade de uma conciliação internacional, a Rússia reconhecia que o apoio militar que havia disposto para a empreitada não era suficiente para retomar o controle de toda a Síria, nem mesmo das zonas nas mãos dos rebeldes apoiados pelos ocidentais.
A grande coalizão preconizada por Moscou ficou apenas no discurso. É preciso falar antes de outras duas, que se encontraram no âmbito das “Negociações de Viena”, copresididas pelo ministro de Relações Exteriores russo, Serguei Lavrov, e pelo secretário de Estado norte-americano, John Kerry, em meados de novembro de 2015. A coalizão liderada pela Rússia conta com o Irã (com o apoio, no território, das tropas do Hezbollah libanês) e o Iraque, que também pertence à segunda. A dos Estados Unidos, mais ampla, reagrupa cerca de cinquenta Estados. Mas é muito mais heteróclita e envolve Estados muito resistentes em relação ao processo, notadamente a Turquia e a Arábia Saudita. Para esta última, na Síria, assim como em outros lugares, o principal perigo continua sendo o Irã, cuja brigada Quds combate ao lado dos soldados sírios. A Turquia se inquieta com a emergência de um Curdistão sírio independente de fato – daí sua intervenção no fim de agosto último para impedir a união de territórios curdos ao sul de sua fronteira. Foi somente pela pressão de Washington que, em Viena, a Arábia Saudita aceitou se sentar à mesma mesa que o Irã.
A busca por uma solução política, contudo, seguiu em nível não somente internacional, mas também regional. Sob pressões conjuntas de Moscou e Washington, um “fórum” das partes combatentes em território (à exceção da OEI e da Frente al-Nusra, componente da Al-Qaeda) foi aberto em Genebra por um representante especial do Conselho de Segurança da ONU. Ele encontrou as partes separadamente em diversas ocasiões para discutir não somente um cessar-fogo, mas também as condições para solucionar o conflito por etapas. Sem sucesso, é preciso dizer.
A cooperação entre Washington e Moscou resistiu à destruição de um avião russo pelas forças turcas, em 13 de novembro de 2015, assim como à tentativa – infrutífera – do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, de recorrer à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Em 14 de março de 2016, para surpresa geral, Putin anunciou uma retirada gradual das forças de intervenção russas, que foi iniciada rapidamente e de forma notável. A mensagem se dirigia em especial a Al-Assad. O apoio militar russo havia permitido ao presidente sírio reconquistar um pouco do território perdido, e ele pretendia aproveitar ao máximo a vantagem conquistada com a tentativa de retomada completa de Alepo, a segunda maior cidade do país, a favor da violação de um cessar-fogo duramente concluído
entre os representantes da Rússia e dos Estados Unidos no dia 27 de fevereiro.
Visivelmente, Moscou controlava pouco seu aliado sírio. Al-Assad tem plena consciência de que a Síria é o único ponto de ligação entre a Rússia e o Oriente Médio, onde ela busca restabelecer uma influência significativa. Sem retirar abertamente a solidariedade em relação ao seu aliado, Putin buscou mostrar que cabe a ele fixar as condições do envolvimento da Rússia. A tomada de Alepo teria dado ao regime sírio o controle de um território onde residiam 70% da população do país e também permitido que se plantassem indefinidamente em suas posições para invalidar as negociações com a oposição. Mas ela não aconteceu, e mais um cessar-fogo precário terminou. Ao escolher tomar certa distância, Putin buscava não comprometer seu objetivo máximo na Síria: demonstrar que a Rússia era uma potência parceira dos Estados Unidos e da Europa, incontornável apesar de inferior, e que grandes problemas internacionais não poderiam ser solucionados sem compromissos por meio dos quais os interesses russos fossem levados em conta.
A cooperação entre Rússia e Estados Unidos seguiu ainda por alguns meses, por meio da busca de um cessar-fogo constantemente quebrado pelos aliados de um ou de outro. No fim de junho de 2016, revelou-se que Obama havia autorizado uma proposta feita à Rússia: operações militares conjuntas não somente contra a OEI, mas também contra a Frente al-Nusra, com a condição de que Moscou conseguisse manter as forças aéreas em solo e um cessar-fogo com as outras formações de resistência armada apoiadas pela Arábia Saudita, emirados do Golfo e Turquia.5
Essa proposta, revelada por Kerry, suscitou forte oposição no âmbito da administração norte-americana, em particular junto a Ash Carter. O secretário de Defesa considerou-a demasiado vantajosa à Síria e à Rússia, na medida em que a Frente al-Nusra é de longe a força de oposição armada mais importante, enquanto cerca de trinta outros grupos, considerados moderados, representariam no máximo 15% do conjunto das forças combatentes. Além disso, opunha-se ao compartilhamento de informações militares com a Rússia – entendida por ele como o principal adversário dos Estados Unidos, coisa que Obama e Kerry se resguardam de explicitar. Segundo fontes do Washington Post,6 ele afirmava, não sem razão, que Putin procurava na Síria sobretudo “romper o isolamento russo que se seguiu à intervenção militar de Moscou na Ucrânia”. Em resposta, o Pentágono conduziu um reforço da Otan sem precedentes desde a Guerra Fria, com introdução de uma nova força militar de 4 mil homens na Polônia e nas repúblicas bálticas.7 Essas divisões e ambiguidades que surgiram não têm facilitado a missão de Washington.
Enquanto as forças governamentais sitiavam duramente o leste de Alepo em 4 de setembro último, a Rússia também impunha suas condições para aceitar a proposição de Obama. Ela exigia que as forças de combate protegidas por Washington e que colaboravam com a Frente al-Nusra se retirassem de forma efetiva, para escaparem aos ataques russos. Com isso, evidenciava-se que tanto os russos quanto os norte-americanos se impunham condições que nenhuma das duas partes poderia garantir. E também a fragilidade dos acordos e parcerias sobre os quais se fundou o cessar-fogo de setembro de 2016, cuja ruptura conduziu à trágica situação atual.
Muitas, se não a maioria, das forças rebeldes não querem ou não podem se descolar da Al-Nusra, onipresente nas zonas rebeldes. A prioridade delas é a derrota do regime de Al-Assad. Além disso, a Frente poderia imediatamente se virar contra elas. Ainda assim, os Estados Unidos tentaram fazer com que se distanciasse. Em agosto de 2016, de acordo com correspondentes do New York Times,8 representantes dessas forças reclamavam que o grande fluxo de armamentos fornecidos pelos Estados Unidos via Arábia Saudita (do qual uma parte era revendido ou passado à Al-Nusra) havia diminuído consideravelmente. Kerry foi acusado de deixar escapar em uma conversa que duas dessas organizações eram “subgrupos” da Al-Nusra.9
Os termos e as condições do cessar-fogo que entrou em vigor no dia 13 de setembro, negociados entre Lavrov e Kerry, eram tão precários e ambíguos que precisavam ser revistos a cada 48 horas e nem sequer haviam sido tornados públicos. Nessas circunstâncias, é surpreendente que tenha chegado a durar alguns dias. Mais surpreendente ainda – e trágico: foi quebrado por um ataque norte-americano contra as forças sírias que causou mais de sessenta mortes. Al-Assad evidentemente se recusou a acreditar que se tratava de um erro, como afirmou Washington, e então aproveitou para lançar uma ofensiva deliberada para tentar a tomada completa de Alepo. Algumas horas após o fim da trégua, um comboio humanitário da ONU foi bombardeado no oeste da cidade. Washington acusou Moscou e seu aliado sírio de “diretamente responsáveis” pelo ataque, que causou cerca de vinte mortes.
Ao apoiar aparentemente sem ressalvas o regime de Al-Assad enquanto a intensificação dos bombardeios agrava o desastre humanitário, a Rússia assume um risco considerável. Moscou precisou usar seu direito de veto no Conselho de Segurança da ONU, em 8 de outubro, para bloquear a reivindicação francesa de cessar os combates. Apenas a Venezuela votou com a Rússia, enquanto a China se absteve. Putin pretende aproveitar o declínio relativo da potência norte-americana e o fim do mandato de Obama para colocar seus aliados em uma posição de força na busca por uma solução política. Mas, se não encontrar meios de relançar as negociações, a credibilidade da Rússia e o futuro de suas relações com os Estados Unidos e a Europa serão fortemente incertos.
A partir do início da intervenção aérea da coalizão árabe-ocidental, em agosto de 2014, a Organização do Estado Islâmico (OEI) perdeu terreno, especialmente em relação aos curdos na Síria e às forças governamentais no Iraque. Após a intervenção russa, em setembro de 2015, as tropas do presidente sírio, Bashar al-Assad, pararam de recuar e em seguida retomaram a ofensiva contra a oposição armada, sobretudo em Alepo. Na Síria, a busca por uma solução política tropeça na desintegração de tropas muitas vezes bastante heterogêneas: exército legalista, curdos e aliados árabes, grupos rebeldes do Exército Livre da Síria frequentemente imbricados com jihadistas mais ou menos próximos da Al-Qaeda, Estado Islâmico. Este acolhe no Iraque e na Síria combatentes vindos de todos os continentes, enquanto a implicação das potências estrangeiras se torna cada vez mais forte. O infográfico revela a diversidade dos apoios internacionais, e não as oposições (a da Turquia contra os curdos na Síria, por exemplo). Ele demonstra a escalada militar, o paradoxo de certos apoios comuns (Irã e Estados Unidos no Iraque) e a ambiguidade de algumas posições, como a dos países do Golfo. Por trás do apoio destes à oposição síria, pairam suspeitas de ajudas indiretas, às vezes diretas, aos jihadistas mais radicais e mesmo à OEI, como indica e-mail de Hillary Clinton de agosto de 2014.
Jacques Lévesque é professor da faculdade de Ciências Políticas e Direito da Universidade de Québec, em Montreal, e autor, entre outros livros, de 1989, la fin d’un empire: l’URSS e la libération de l’Europe de l’Est. [1989, o fim de um império: a URSS e a libertação do Leste Europeu], Paris, Presses de Sciences Po, 1995.