MTV Brasil, 35 anos: na iminência digital, às vésperas do fim do mundo
Anotações sobre as lembranças que recolocaram em cena a emissora desativada em 2013
Irromperam recordações sobre a MTV Brasil quando, em 2023, o encerramento das atividades da emissora completou uma década. Embora sem um longa ficcional ou documental de fôlego acerca de sua história, houve uma profusão de ações para recuperar a aura jovem das transmissões, com o recurso a fragmentos de registros sobre o que foi ao ar e, principalmente, a depoimentos dos antigos funcionários – é possível que derive desses relatos pessoais o halo quase mitológico dessa retomada.
Séries no YouTube, que se valeram de propostas tão diversas quanto os videocasts e os documentários, assinalaram o movimento para revisitar a MTV Brasil. Na verdade o gesto dá continuidade a outro, mais gradual e menos visível, do mercado editorial. Rememorações em livro de VJs como Zeca Camargo, Luiz Thunderbird, João Gordo e Fábio Massari já acenavam para essa direção. Contudo, as impressões causadas pelas imagens em movimento, combinadas à música, acrescentaram outras dimensões à recuperação das lembranças.
Um motivo para que as versões dos apresentadores se sobressaiam é nítido: a interdição do arquivo inviabilizou tentativas para reprocessar, editar e montar fitas e registros digitais a respeito do que foi transmitido de 1990 a 2013. O acervo nunca foi público e ficava refém de decisões do conglomerado em torno da editora Abril – responsável pelo controle da marca no Brasil durante o período. Depois aqueles resquícios e uma nova emissora, homônima, recaíram sobre o grupo atualmente concentrado sob a estrutura Paramount.
As dinâmicas empresariais raramente aparecem nos testemunhos. A ausência ajuda a explicar por que nas ações para retomar a memória da MTV Brasil nuances sobre a economia e, como consequência, acerca da política também não reapareceram em paralelo às recordações mobilizadas pelos dez anos daquele desfecho. Em contrapartida, o apelo à interação dos antigos programas fez com que as plataformas digitais não se mostrassem arredias: foram um ambiente propício à recuperação dessa memória.

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Poucos anos depois da unidade brasileira da MTV entrar em ação, em outubro de 1990, foi iniciado um intervalo de relativa estabilidade na Praça dos Três Poderes. A partir do impeachment do então presidente Fernando Collor, em 1992, é inaugurado o período de consensos que escanteou militares para as casernas, conservou referenciais econômicos muitas vezes em descompasso com o combate às desigualdades e conteve históricas investidas contra o voto universal ou em oposição às eleições presidenciais diretas.
Houve atritos que encaminharam a sociedade ora para direcionamentos autoritários, ora para posições democráticas: da conquista da reeleição pelo presidente Fernando Henrique Cardoso aos resultados da Comissão Nacional da Verdade com a presidenta Dilma Rousseff. O breve hiato foi rompido em meados dos anos 2010. Os intérpretes que focalizarem as dinâmicas no Congresso podem detectar a ruptura na formação do bloco que tirou Michel Temer da vice-presidência e o alçou ao posto mais importante da República.
Quem estiver concentrado no Judiciário incontornavelmente vai notar nos desmandos da 13ª Vara da Justiça Federal, no Paraná, um ponto de partida. A cruzada da operação Lava-Jato contra a representação no Executivo e no Legislativo em geral deslocou a política para uma ofensiva moral. O salvacionismo trouxe messianismos, vilanias artificiais e heroísmos ocos – da divisão grosseira entre bem e mal surgiram protagonistas que, do Ministério Público e da Magistratura, chegaram a conquistar cargos eletivos.
A história extravasa esses salões, revestidos de ares oficiais. A política é imanente e as ruas podem dizer muito acerca das disputas em curso. Especialmente no instante em que, na primeira vez desde a redemocratização, multidões protestaram por causas difusas a partir de perspectivas até antagônicas – o calendário de 2013, diante de tamanhas manifestações, é central para a compreensão da ruptura: as trocas na sociedade mudaram, a comunicação se digitalizou. E é precisamente o ano do fim da MTV Brasil.
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As últimas horas da emissora realizaram uma sofisticada operação com a memória. Ao mesmo tempo que reverenciava o seu caráter desbravador na concentrada radiodifusão brasileira, a MTV Brasil reforçava a participação no vórtice de transformações em andamento na década de 2010. Nessa visão, youtubers estariam na linha evolutiva dos VJs por serem despojados, estabelecerem um diálogo direto com quem assiste ou pela atenção às tendências da juventude, ignoradas pela produção televisiva.
Tudo o que era exibido ali apontava para o YouTube: durante os programas, apresentadores convocavam para as suas próximas empreitadas digitais; inclusive os intervalos anunciavam um canal com VJs. O tempo desde a interrupção das transmissões tornou o caso de Daniel Furlan mais exemplar. Fundador da TV Quase, ainda antes da contratação pela MTV Brasil, passou pela Amada Foca e chegou ao Porta dos Fundos uma década depois. Os três canais se consolidaram, em menor ou maior grau, na plataforma.
O deslumbramento com o ocaso talvez explique porque os aniversários do fim das atividades sejam mais lembrados do que as efemérides que remetem à inauguração na virada para os anos 1990. Nas últimas horas, havia um clima de otimismo com o avanço tecnológico – demarcado pelo convite à emergente Mídia Ninja para participar das atividades. O potencial da descentralização da produção com as redes digitais foi saudado como o alento na crise que levou ao fechamento das portas.
A despeito da falência, remanesciam a jovialidade e as esperanças adolescentes na exibição desse longo trecho, de mais de duas horas. Nas manifestações do mesmo ano, igualmente cobertas pela Mídia Ninja, a efusividade também preponderava. As expectativas eram diferentes daquelas, quase cataclísmicas, que emergiram com a década de 2020: a crise parecia se restringir à mediação realizada pela televisão. Aos olhos de hoje, a ideia de que superar a radiodifusão era a apoteose em si ignorava aspectos políticos e econômicos. Era ingênua.
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As recordações repisam a versão de que a produção ocupou a vanguarda política – o primeiro beijo LGBTQIA+ transmitido em imagens pela radiodifusão é um exemplo constantemente requisitado para justificar isso. As opções empresariais do grupo que controlava a emissora iam em sentido contrário: as revistas da editora Abril articularam simplificações, constituíram oposições nada civilizadas e proporcionaram condições para que a extrema direita recuperasse a sua centralidade no debate sobre país.
A ausência de representatividade negra sugere uma revisão desses vanguardismos. A comparação com iniciativas mais recentes, como a própria Mídia Ninja, também promove relativizações: é impensável que o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) tivessem o mesmo protagonismo na MTV Brasil do que no conteúdo em circulação atualmente nas plataformas digitais. A comunicação fragmentada, centrada em públicos segmentados, explica a diferença.
O tensionamento maior da MTV Brasil, também com efeitos políticos, era contra a estética televisiva. O derradeiro episódio de O Último Programa do Mundo, transmitido na iminência do corte do sinal, é ilustrativo. Porque eram condensados ali traços populares como humor e, evidentemente, música ao lado de referências ao futebol: inclassificável do ponto de vista dos gêneros de televisão, cada segundo a partir da estreia se indispunha com o ambiente festivo frente à decadência da emissora.
Plasticamente, O Último Programa do Mundo antecipa a ansiedade às vésperas de catástrofes climáticas, de ofensivas restauradoras orquestradas pelo fanatismo religioso ou de expressões múltiplas de intolerância – sensação que se tornou, após a pandemia que eclodiu em 2020, sólida e objetiva. Em janeiro de 2025, quando Donald Trump assume a Casa Branca para novo mandato e setores da extrema direita brasileira dão demonstrações de força, o experimento apocalíptico naquela derrocada assume outro brilho.
Helcio Herbert Neto é o autor do livro Palavras em Jogo (2024). Doutor em História Comparada (UFRJ), é formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ). Atualmente, desenvolve pesquisas sobre cultura popular em âmbito do pós-doutorado na UFF, mesma instituição pela qual concluiu o mestrado em Comunicação.