Coração vulgar – O Terno, melodrama e o Brasil digital
Canção romântica recupera tradições que se mantiveram vivas mesmo com as transformações da última década. Leia no novo artigo da série Entrementes
Naipe de sopro, banda cerimoniosa no palco, vocalista ao centro. Todos em branco: imagem tradicional da televisão brasileira, com encontro marcado para os finais de ano. No repertório, canções de amor. Principalmente, composições de despedida, ruptura ou separação. Letras criadas pelo próprio cantor de guarda baixa, emoção exposta em versão intimista na comparação com os jovens anos de esbórnia. A imagem combina com a comoção dos auditórios, o desfecho catártico, os olhos rasos d’água, o sentimento nos televisores.
É a paisagem de Roberto Carlos Especial, que desde os anos 1970 ocupa a programação dedicada às festividades de Natal na TV Globo. Inspirado nas atrações televisivas centradas em Frank Sinatra, demorou bastante até que o programa com o antigo símbolo brasileiro da juventude chegasse às feições atuais. No entanto, se na década de 1960 o parceiro de Erasmo Carlos e Wanderléa havia despontado na televisão, a partir dos shows exibidos em dezembro o cantor se converteu em ídolo maduro, religioso, digno de culto.
O cenário é muito próximo ao projetado pela banda paulistana O Terno para sua turnê de despedida. No fim de 2024, o conjunto entra em hiato por tempo indefinido e planejou um clima que, ainda que inconscientemente, recupera fatores primordiais para o desenvolvimento a canção popular. Retoma, especialmente, vínculos perdidos com a televisão – e a afirmação pode soar descabida para artistas que se profissionalizaram em meio a plataformas de audiovisual e a ouvintes que executavam seus arquivos digitais.
Os públicos já se organizavam, é certo, por meio de fóruns e comunidades online no começo da segunda década do milênio. Quase meio século separava aquela Era do MP3 dos festivais da canção, ainda no início da televisão. A internet, contudo, não estabeleceu uma nova realidade. Não nasceu do nada, distante dos costumes do dia a dia ou de tradições ancestrais. E curiosamente O Terno, trio brasileiro de rock conectado às novidades da música global, exemplifica as relações com a cultura popular.
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No novo milênio, crises foram comemoradas – o fim da história, a ruptura com as grandes narrativas, a dissociação entre real e virtual. A vibração com esses supostos marcos sociais ressoou nas artes, com o estilhaçamento dos circuitos culturais. Mas nenhuma dessas viradas definitivas se concretizou. As versões para o que acontecia eram o fruto de disputas, tentativas de controle e silenciamento. Talvez o problemático ano de 2013 represente uma fratura decisiva para as pretensões totalizantes, no Brasil e no mundo.
Não à toa é o ano das divulgações de Edward Snowden sobre os procedimentos dos Estados Unidos. Vazamento e o uso de dados entravam em conflito com a ideia redentora de primaveras políticas, de um despertar contra o autoritarismo simultâneo em vários países. Por um lado a proposta de internet livre ainda tinha alguma força; por outro a perseguição a iniciativas contra os monopólios, como a do Napster, deveria ser suficiente para colocar ao menos sob suspeita qualquer salvacionismo.
Os relatos fragmentados se espalharam pelo Brasil àquela altura. As manifestações no ano anterior à Copa do Mundo masculina de futebol simbolizam isso. Foi a década da profusão de partidos, coligações e alianças – a ser reduzida, progressivamente, pelas reformas políticas instauradas no decorrer dos sucessivos colapsos em Brasília desde então. Na comunicação, o quadro era de pulverização. Grandes conglomerados não resistiram às novas concorrências e à emergência de novos atores.
As multiplicidades que se apresentavam a cada segundo nas interações pela internet fizeram ruir, por exemplo, o Grupo Abril. A empresa havia chegado a concentrar o principal semanário do país, a maior editora voltada para as bancas de revistas, uma empresa de canais por assinatura e uma emissora direcionada ao público jovem, concentrada em música e comportamento. Era a MTV Brasil, inaugurada em 1991 em parceria com a firma dona da marca, de origem norte-americana.
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O Terno lançou seu segundo disco, homônimo, em 2014. Àquela altura, até a configuração das canções havia sido colocada em suspeita: inicialmente com expressões musicais como o rap, no século XX; depois, com experimentos erráticos do rock’n roll, a exemplo dos do Radiohead. A forma álbum já convivia com acusações de irrelevância, diante da explosão dos singles. A ampla circulação, com os aparelhos celulares e a banda larga, fazia com que fossem alcançados mais ouvintes, em dinâmica rápida – e extremamente passageira.
Na contramão do esfacelamento, O Terno apostou em faixas longas. O detalhe poderia ser irrelevante caso as composições não reforçassem essa dimensão. Os versos delineiam tramas sofisticadas, com conclusões surpreendentes, em cenas elaboradas. Do desespero de um filho trocado ainda recém-nascido às descobertas do fantástico mundo dos sonhos, a banda traça perfis exóticos até para o versátil pop brasileiro. Assim mesmo a crônica de um dia chuvoso em São Paulo e o ambiente escuro do quarto recebem profunda descrição.
As introduções de 2014 remetiam ao som jovem dos anos 1960, é certo, com as suas introduções sintetizadas. Contudo, entre saudade e vanguarda, as experimentações eram evidentes. A vocação romântica aflora de vez no disco seguinte, Melhor do que parece. Lançado depois de um intervalo de dois anos, o trabalho antecipa o álbum que inspirou a turnê de despedida, Atrás/Além. A proposta pessoal, quase acanhada, deu corpo às excursões por cidades do Brasil e do exterior. E à comoção do público.
Antes de tudo isso, a banda havia sido reconhecida como a aposta de 2012 no Video Music Brasil. O prêmio acompanha a atmosfera do sucesso de 66, álbum de estreia, e da faixa de trabalho com o mesmo nome. A canção lamenta a condição da música àquela altura, com superadas trilhas sonoras de novela e paradas de rádio irrelevantes. O evento que concedeu o troféu era promovido pela MTV Brasil – a última premiação antes de o Grupo Abril ruir, o canal ser desativado e reaparecer com outra direção.
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A despeito da audiência restrita, o canal para música e comportamento do Grupo Abril concentrava as atenções do público jovem. O fim das atividades, no ano das grandes manifestações, sugere que houve uma reacomodação complexa naquele período. O barulho – dos instrumentos, dos beats eletrônicos, das reivindicações e dos tumultos –, sem dúvida, aponta para as transformações que trouxeram o Brasil, a política institucional, a música e a cultura de maneira mais abrangente até aqui.
São tantas as afeições entre o popular e o melodrama. Os excessos, tão raros na carência diária dos bairros operários, reaparecem no exagero da canção romântica. Há o reconhecimento com os sofredores, diante da possibilidade de reparação para malsucedidos, desafortunados, martirizados pelo cotidiano. A promessa de amor, além da poética aparente, tem entranhas que resgatam atritos da sociedade – entre classes, inclusive. Sob o céu paulistano, Roberto Carlos e O Terno se valeram da imagem transmitida aos telespectadores; o teor melodramático, serviu de conexão com os fãs.
Roberto Carlos se comunica com multidões há mais de meio século, em caudalosa lista de discos divulgada e cultivada em radiodifusão; na iminência de interromper a própria trajetória, O Terno se volta para públicos específicos, não depende da comunicação tradicional e diante da profusão de singles detém a discografia com quatro lançamentos. Falar de melodrama não é depreciar: é uma tendência na cultura popular latino-americana, que remete à colonização. As camadas melodramáticas nas artes se expandiram com a comunicação de grande alcance.
Exemplifica isso a canção romântica nos aparelhos de rádio, novela na TV. O caso da banda se une aos circuitos em torno do funk no Rio de Janeiro e ao do Boogarins no centro-oeste. Levadas ao extremo, as transformações do carnaval também se juntam para mostrar que as continuidades históricas são determinantes para que os rumos da cultura sejam entendidos. As interações digitais, velozes, não instituem do nada outro mundo. Tamanhas mudanças são carregadas de disputas sociais. Nem redenção com a tecnologia, nem apocalipse. Há política.
Helcio Herbert Neto é autor do livro Palavras em jogo (2024). Atualmente, realiza pesquisas sobre cultura popular em âmbito de pós-doutorado no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF, instituição pela qual também se tornou mestre em Comunicação. Formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ), é ainda professor e doutor em História Comparada pela UFRJ.