Desde 2013, vórtice no Carnaval explica o Rio
Transformações no samba, na imagem e no controle da festa reforçam disputas contra extrema direita
Dois dos maiores sambistas vivos, versos e harmonia que remetem a tradições rurais que ainda residem no Carnaval, um desfile impecável – quando a Unidos de Vila Isabel percorreu em 2013 a Avenida Marquês de Sapucaí, uma ruptura foi saudada, talvez sem a devida atenção, pelas arquibancadas. A vitória no Grupo Especial do Rio de Janeiro, organizado pela Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), significou simultaneamente o ápice e o início da derrocada de um modo de encarar essa expressão popular.
O que o enredo “A Vila canta o Brasil celeiro do mundo – Água no feijão que chegou mais um…” proporciona supera até a união dos cantores Martinho da Vila e Arlindo Cruz com os demais compositores, André Diniz, Tunico da Vila e Leonel. A maneira como as alas evoluíram, os contagiantes versos e as feições do desfile anteciparam a década que, se não conseguiu alcançar os exemplares heroicos no patamar do século XX, pelo menos legou sambas de histórias fortes que permanecem em coros de esquina, nas batucadas menos pretensiosas.
No mínimo os desempenhos em 2016 e 2019 da Estação Primeira de Mangueira estão inscritos nesse rol de excelência, ao lado daquele ao som dos protagonistas Martinho e Arlindo. No entanto, a experiência da Vila não é marcante apenas pela inventividade poética: é na dimensão da imagem que o desfile impõe uma virada. Ainda que as mudanças não sejam automáticas, características permaneceram e confundiram olhares apressados sobre os atravessamentos sociais do período, até para a política.
A escola do Morro dos Macacos, da Zona Norte, realizou simbolicamente a transição do paradigma visual: progressivamente, a televisão perdia o monopólio sobre a paisagem do Carnaval em detrimento dos fragmentos erráticos, plurais e menos coordenados das redes digitais. A partir dali, vídeos e fotos dos componentes no chão da Avenida, do público em camarotes, frisas ou arquibancadas entravam definitivamente em cena – ainda que a participação disso na definição de vencedores derrotados seja dificilmente quantificável.
A difusa replicação pelos usuários, com a ampliação da banda larga no Brasil, promoveu ainda a cisão perante as imagens estáticas e distanciadas das transmissões televisivas de Carnaval. A consequência imediata é o enquadramento de desfiles vibrantes, conectados às suas respectivas identidades. Som, cor e movimento passaram a facilitar, assim, mais sensação de pertencimento. Mas é temerário identificar nessa pluralidade um sentido único, em direção à democratização da festa.
***
Ruas lotadas, inversão de prioridades, silêncios raros – a carnavalização instaura uma profunda inversão na vida. A seriedade, que reveste o que cotidianamente é compreendido como digno de respeito, passa a ser reconsiderada em batalha travada contra a austeridade. O desfrute de instantes passageiros se opõe a formas sufocantes de ver a realidade. O Carnaval é celeiro de outros mundos: no mínimo, alivia; no limite, faz erodir constelações de certezas e estabilidades. Isso, no entanto, é ainda abstração.
Existem condições históricas para essa profana celebração, com sotaques regionais, ritmos particulares e rituais específicos. Caso seja aceita a afirmação de que tamanha força está envolvida nesses ritos, qualquer transformação precisa ser enxergada com nitidez. Porque cada alteração pode fazer com que os propósitos, que levam a cabo a subversão, sejam expostos a desvios. Ao dobrar as esquinas, as disputas contra tentativas de controlar a turba, de adestrar os ímpetos e de restaurar a ordem estão em curso.
Embora o caráter transgressor se mantenha, várias dimensões têm sido abaladas. A primeira é a própria fugacidade. A disposição para registrar tudo é inversa ao gozo de cada segundo como se fosse o último. Há uma mudança entre temporalidades, ao estar na rua, com a multidão, subitamente a experiência do Carnaval passa a ser dividida com a eternidade insossa da imagem digitalizada. A preocupação com a captura do momento diminui a sensação prioritária de estar sob um céu em ruínas – que merece ser celebrado.
A urgência em postar é avessa à necessidade de se perder, tão voraz nos poucos dias de folia. O perfil, a célula que permite que as redes sejam acessadas e os demais elementos que compõem a rotina das atualizações em tempo real de stories vão na direção da individuação. O amontoado de gente a se esbarrar por ruas estreitas, no calor do verão, procura, pelo contrário, a dissolução. Fronteiras entre as pessoas, as convicções e até as da fé são borradas em ação que tende ao indiscernível.
O samba documentou a reversão, quando ainda no passado o visual foi alçado a padrões que impediam as antigas relações com o Carnaval. É ingênua a percepção de que a festa se desvirtuou definitivamente com o privilégio que as plataformas assumiram; talvez tão inocente quanto o diagnóstico de um Carnaval cristalizado, feriado que entretém sem contrapor atritos: espécie de parque de diversões em espaço público, sem restrições para entrada. A inversão brutal de padrões promove desconfortos, desagrada e estimula reações.
***
O ano de 2013 serve também de parâmetro para a inflexão nos recursos para o Grupo Especial. As duas primeiras décadas do milênio observaram enredos excêntricos – a apologia de companhias aéreas, a trajetória épica do iogurte e a homenagem a uma raça particular de cavalos são ilustrativas. Eram todas bancadas por investidores externos ao Carnaval, na expectativa de aproveitar a popularidade das escolas para publicidade. O caso da Vila Isabel é significativo também por esse motivo: o desfile era patrocinado pela Basf.
Com o processo de desregulamentação dos últimos anos, a marca ficou conhecida como uma das principais fornecedoras de agrotóxicos no Brasil. Portanto, o Carnaval da escola sobre o homem do campo, a hospitalidade rural e a amigável rotina campestre foi sustentado por uma empresa das barricadas da fronteira agrícola. Menos caricato do que outros casos, o exemplo de “A Vila canta o Brasil celeiro do mundo” remete à tensa combinação entre a manutenção das escolas e as inclinações mais democráticas no Rio.
O ano das Jornadas de Junho é igualmente o último de crescimento substancial antes da retomada da pandemia: outro marco para as mutações. Desde então, houve recessão superior a três pontos percentuais em três anos, distribuída por um trio de chefes do Executivo. Dilma Rousseff esteve em 2015 no Palácio do Planalto, enquanto Michel Temer terminou 2016 com a faixa presidencial. No exercício do mandato, Jair Bolsonaro assistiu à retração com a emergência do coronavírus em 2020.
A sucessão de crises econômicas dos anos 2010 pressionou a grandiosidade projetada pelos carnavalescos. Rapidamente, o interesse privado pelos desfiles encolheu por conta das instabilidades a que o Brasil foi submetido. Em seguida, foi a vez de o próprio poder público reduzir as verbas para a manutenção da festa – a princípio, devido ao desequilíbrio com a queda de arrecadação; depois, por opção do Executivo. No movediço cenário político, a capital elegeu em 2016 um prefeito atrelado à ofensiva neopentecostal.
Houve seguidas negações ao gesto comemorativo para o início à folia de entregar a chave da cidade ao Rei Momo. Para escapar da festa da carne, o prefeito chegou a viajar a Israel – país que se converteu em polo da extrema direita mundial ao patrocinar a perseguição a civis em Gaza. O halo de pecadores coube de tal maneira a quem aproveitava o Carnaval que as fundamentalistas acusações contra os desvios morais no Rio se proliferaram, a ponto de caracterizar a eclosão do vírus da Covid-19 como uma punição celestial na internet.
***
A cúpula do Carnaval carioca sem óculos de aviador, camisa aberta quase até a metade ou de pulseiras e cordões de ouro à mostra pode surpreender algum desavisado. Em maio, foi anunciado como o novo presidente da Liesa Gabriel David, filho do contraventor Anísio Abrahão David. Após décadas de tintura no cabelo, a liderança passou a recair sobre um jovem, com o léxico do mercado e trânsito com artistas. A mudança não indica descontinuidades: e as permanências não estão só no sobrenome.
No hiato entre a mais recente vitória da Vila Isabel e 2024, a diretoria de marketing aumentou a presença do evento nas plataformas: houve a expansão das vendas pela internet; ao fim da pandemia, o departamento decidiu colocar em streaming os sambas concorrentes meses antes de as escolas atravessarem a Sapucaí; e foi registrada a expansão, em glamour e valores, dos camarotes. As medidas são creditadas ao responsável pelas estratégias digitais naquele momento, Gabriel David.
O desempenho, em números, demonstra o impacto das alterações, inclusive na comparação com outros circuitos musicais. Um dos competidores deste ano conseguiu chegar ao topo das canções virais no Spotify: à frente de MCs de funk ou trap, a faixa alcançou a liderança do ranking sem conquistar o troféu do Carnaval. A agremiação ao ritmo do samba bem-sucedido no streaming, no caso, nem chegou ao sábado das campeãs – que reúne as mais bem colocadas do Grupo Especial e a agremiação que ascendeu da divisão de acesso.
Com as novas maneiras de acompanhar o que se desenrolava na Sapucaí, ficavam para trás hábitos recentes. Esteticamente, começa a se esvair uma plasticidade monumental, quase acrobática, nos desfiles. Símbolo maior dessa proposta para a festa, Paulo Barros havia sido hegemônico: campeão em 2010, 2012 e 2014 com a Unidos da Tijuca, dividiu ainda o título com a Mocidade quando liderava como carnavalesco a Portela em 2017. O espetáculo tinha tudo a ver, em sua grandiloquência, com a cobertura televisiva.
São conhecidos os efeitos devastadores da plataformização da economia em outros setores. Ainda no vórtice de alterações, em 2024 a apuração que anunciou a campeã do Grupo Especial se apartou do Sambódromo. A decisão se conjuga a outras, como a que definiu que as disputas de 2025 transcorrerão em três dias, não apenas em dois. Com isso, novas regras para a duração dos desfiles foram apresentadas. As reformulações recuperam o histórico de esforços para reordenar manifestações populares por motivos econômicos, de mercado.
***
Estranha fascinação – talvez a única classificação possível para o processo que recolocou o Jogo do Bicho nas manchetes de entretenimento. Contraventores, caçadas, execuções e conflitos pelo controle de regiões foram redimensionados com a explosão de livros, filmes e séries sobre as apostas e os seus líderes. É também no intervalo a partir de 2013 que nacionalmente e para as classes médias voltaram à tona as intenções dessas lideranças com a cultura popular: em especial, por meio do futebol e do Carnaval.
É possível alegar que a curiosidade tem origem no alcance de paramilitares na política institucional durante essa escalada. A mentalidade miliciana e a proximidade dos grupos de execução com o Jogo do Bicho justificam realmente as tentativas de explicar a militarização do Legislativo e o domínio territorial em áreas carentes de serviços públicos. A profusão de imagens tem inegável efeito colateral: certa idealização dos episódios de violência na cronologia dos bicheiros.
Usos da documentação dos confrontos os alçam à condição de gangsters tropicais. Uma mitologia incensada, com reflexos para a exaltação dos próprios contraventores, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos depois de produções sobre serial killers. No audiovisual, montagens recorrem a recortes de jornal e depoimentos, combinados aos instantes capturados pela televisão à época – e até Gabriel David aparece, como entrevistado, na onda de produções. É recuperada com sinais trocados a apoteose dos bicheiros nos anos 1980.
Foi a década que definiu a conversão do Carnaval da administração pública para o domínio privado da Liesa. Os líderes da nova liga apostaram em mais recursos para os times de futebol e os desfiles e, como resultado, conseguiram ser recebidos por outros poderosos, de empresários a políticos, com pompa e circunstância. É curioso que as séries documentais se valham das dinâmicas digitais: são as plataformas que tornam possível que os usuários, sob demanda, assistam às peripécias desde a gênese do Jogo do Bicho.
Com ênfase histórica ou lúdica; personalista ou dramática; centrada nos conflitos entre clãs ou no noticiário policial – os registros em vídeos são centrais por reviverem a opulência dos dias de glória e principalmente por reavivarem a sensação de perigo para os eventuais inimigos. O clima de suspeita reencontra o Carnaval: a vereadora Marielle Franco, mencionada na elogiada composição da Mangueira de 2019, foi executada por atiradores com passagem pela Polícia Militar, que prestavam serviço por anos para contraventores.
Helcio Herbert Neto é autor do livro Palavras em jogo (2024). Atualmente, realiza pesquisas sobre cultura popular em âmbito de pós-doutorado no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF, instituição pela qual também se tornou mestre em Comunicação. Formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ), é ainda professor e doutor em História Comparada pela UFRJ.